Saint-Exupéry e Aspectos Ligados ao Futuro
La pierre n’a point d’espoir d’être autre chose que pierre.
Mais, de collaborer, elle s’assemble et devient temple.
Saint-Exupéry
Quão impossível se possa prever, o futuro, palavra impregnada de mistério está perene durante toda nossa trajetória. O termo adquire metamorfoses na medida em que o afunilamento etário delimita fronteiras. Mas a palavra se adapta a todas as situações previstas: família, comunidade, profissão e almejos os mais variados. Estamos sempre a delinear projetos de toda a ordem, neles acreditando ou até sonhando, e revés ou desiderato atingido farão parte desse caminhar olhando o passo à frente ou o final da senda. Porvir imediato ou longínquo são salvaguardas para aspirações e aprimoramentos ou, hélas, desejos menos nobres. Faz parte do gênero humano pensar naquilo que virá, esse vir a ser que tantas vezes pode ser obliterado pelo inesperado. E ele acontece sem que o queiramos.
A noção que se tem do futuro é elástica e mais será encolhida à medida que as décadas se acumularem. Outra configuração, essa transcendental, pode dirigir o homem às reflexões espirituais. É absolutamente normal, pois tensões, provocadas pelas vontades de toda ordem nas fases que precedem a idade mais serena, estimulam eflúvios para que o futuro possa acontecer e que intenções se realizem.
Estava a folhear Citadelle, de Saint-Exupéry, obra de constantes visitas, mormente nos momentos voltados à meditação. Há precisões do autor quanto ao tema a envolver o futuro. Ele, que nos voos noturnos nos céus da África do Norte, do Atlântico e da América do Sul, previa sempre chegar bem, a ter como bálsamo a atividade cumprida e as correspondências distribuídas pelas casas e empresas, levando toda espécie de mensagem. Em pleno voo, ao sobrevoar o sul do continente americano, ficava a imaginar guaridas para a correspondência esperada. Visão do alto, a pensar em anseios acalantados em terra. Pensamentos que ocorriam ao piloto escritor quando se aproximava da temível aterrissagem, naqueles tempos históricos em que tantos monomotores soçobraram sem missão cumprida.
Saint-Exupéry entendia que o futuro se constrói. Não haveria em Citadelle a visão do progresso material, esse encaminhamento na busca de um bem-estar sem a presença humanística, responsável e ética. Seu ceticismo quanto à preocupação do homem voltado preferencialmente ao ganho é notório. Há nítida preocupação moral que perpassa Citadelle, obra que teria sido citada como uma Bíblia do século XX. Abundam metáforas nesse reino imaginado por Saint-Exupéry e poder-se-ia considerar tantas delas como verdadeiras parábolas.
Os textos reunidos que compõem a obra têm, inclusive, apesar de não sequenciais, um norteamento seguro. O futuro lá está, exemplificado em vários segmentos, mas a obedecer apreensão humanística. A presença, nesse Império imaginário representado por Citadelle, do velho jardineiro que estava a regar com carinho uma pequena muda de carvalho não transcende expectativas? Ao ser perguntado do porquê de tanta devoção a cuidar de uma árvore que teria lento crescimento, a durar décadas somadas, se a vida estava a se estiolar, o homem respondeu que pensava nas gerações que desfrutariam da sombra do cedro quando crescido. Em outro segmento, nessa alegoria à vida vegetal, Saint-Exupéry observa que “nada significa para ele a primavera que não desenvolveu flores”, numa referencia à ilusão do almejar se não houver a expressão verdadeira do presente, ou ainda na menção a outra árvore que vê crescer pouco a pouco os seus ramos: “De presente em presente a árvore terá crescido e chegará, ciclo concluso, à morte”. Citadelle leva-nos a surpresas, e apreende-se que preparar o futuro nada mais é do que fundamentar o presente, “pois a única invenção verdadeira é a decifração do presente sob seus aspectos incoerentes e sua linguagem contraditória”. E em seu idiomático literário surge a metáfora “criar um navio é exclusivamente fundamentar a rampa em direção ao mar”. Para Saint-Exupéry, sonhar o amanhã pode implicar antevê-lo sem bases concretas, o que levaria ao equívoco: “ O futuro não se pode prever, mas permitir”. Ou ainda, recorrente: “Construir o futuro é construir o presente. É criar um desejo pertinente ao hoje. Que é hoje em direção ao amanhã.” Estar focalizado no presente destrói a antevisão que poderia configurar o sonho, a idealização sem bases, a vontade sem esforço. Esse presente de que nos fala Saint-Exupéry não seria o stress preocupante em direção ao amanhã perturbado, mas a construção pedra por pedra, que se realiza no hoje “O passado é irreparável, mas o presente nos é apresentado como material a granel aos pés do construtor. Compete a você forjar o futuro”.
Através de constantes imagens, muitas delas repetitivas, mas sob outra vestimenta, Saint-Exupéry constrói e solidifica seu pensamento. Explicam seus escritos a insistência da pedra que, trabalhada, tornar-se-á templo, da semente que será cedro. Essas metáforas servem à explicação de seu edificar um mundo responsável, amoroso e solidário.
No reino imaginado por Saint-Exupéry não há acolhida para o pragmatismo voltado à exatidão dos números, a geometria a serviço da construção sem fervor, o general que entende a guerra pela guerra. O futuro idealizado com alicerces no presente consciente, mas não direcionado ao determinismo imediatista do amanhã, revaloriza o estado do homem, posiciona-o como ente a entender o desenvolvimento natural em direção ao aperfeiçoamento. O ser humano e seus valores, preocupação constante do autor. Esse futuro entranhado no presente estabelece a relação que liga o homem a Deus. Valores como a família – prioritário –, o semelhante, a profissão amorosa, a casa onde tudo acontece e a comunidade como entidade onde todos devem ser responsáveis. A responsabilidade como respiração. Cresce o homem. A grandeza se edifica lentamente, e a força e o fervor, concentrados nesse dia a dia com pleno sentido, estabelecerão as bases em que o futuro será consequência. Se o inesperado acontecer, a obliterar aspirações, haverá outro comungante a levar o estandarte. A metáfora dos galhos de uma árvore, tema caro ao autor de Vol de Nuit.
Poder-se-ia pensar em utopia. Tantas décadas se passaram após Citadelle e vê-se que o homem permanece basicamente voltado aos seus princípios egoístas e direcionados à auto satisfação. A legião operante e trabalhadora continua à mercê de interesses de uma minoria. Pensar o futuro? Infelizmente, parte considerável dos povos mal pode “prever” o presente, mas os poderosos, tantas vezes em ligações espúrias lobby-empresa-poder, levam àqueles que ainda acreditam o gosto amargo ao ver o homem, que deveria ter como aspiração maior a semelhança com Deus, corrompido em suas entranhas. Todas as decorrentes quedas em direção ao abismo mostrar-se-ão evidentes. Todo o mal estará perpetrado. E a degradação do planeta, nesse permanente, denunciador e lamentável day after ocorrido pós Kyoto e Kopenhagen, persistirá, pois os poderosos teimaram e teimam em não ouvir os lamentos da Terra. E o planeta reage nos limites da agonia. Não foram as desmesuradas enchentes que invadiram São Paulo nestes dois últimos meses, a imprevisão do amanhã? A incúria de governantes e empresários gananciosos não seria a causadora de desordenada construção de prédios cada vez mais altos – lucros igualmente – e da incorporação de cerca de 1.000 carros novos à frota da cidade, diariamente? Ouvi há poucos dias especialista na área viária dizer que, em determinadas horas, não mais se vê asfalto num sobrevoo sobre a urbe, apenas um mar de tetos metálicos, em alusão aos carros que trafegam, ou tentam fazê-lo, ao menos.
Aos que acreditam na integridade do homem, o tempo que está por vir alicerçado no presente poderá ser menos caótico, na medida em que consciências ajam em defesa de um Bem que o Sistema tenta sempre escamotear, a confundir as mentes. Futuro, está ele aí, no amanhã que poderá apresentar, ao alvorecer, a luz de um céu de esperanças – oxalá isso ocorra. Em metáfora outra, a sombria manhã sem brilho, apenas a mostrar no cerceamento de nuvens e terra sem luminosidade, a névoa das poluições físicas e, sobretudo, morais.
Worried about the future and about our planet at risk thanks to men’s greed for power and wealth, I took refuge in Saint-Exupéry’s masterpiece Citadelle (The Wisdom of the Sands), in which he demonstrates his personal philosophy, stressing the importance of individual responsibility and moral soundness as our only safeguard for the future.