Mario Benedetti
Estão em mim as estações
como se fossem uma só as quatro
sempre estão em mim
são quatro faixas de um abismo
da aurora até o ocaso…
Mario Benedetti
O espírito de síntese seria talvez uma das maiores dificuldades de um escritor. Romances caudalosos ou não, mesmo que granjeiem reputação, tantas vezes se perdem nos meandros das histórias e dos personagens. Poder-se-ia afirmar que, seja qual for a dimensão de um texto, ter um norte como meta torna-se relevante. Entendido sob esse prisma, a literatura novelesca, como exemplo, que frequenta os televisores em tantos horários, perde um sentido básico, pois estaria a depender das marés representadas pela opinião pública. O autor do texto estaria sempre sob a tensão que o alterar enredo provoca.
Recebi de minha dileta amiga Jenny Aisenberg o livro Correio do Tempo, de Mario Benedetti (Rio de Janeiro, Alfaguara, 2007. Tradução Rubia Prates Goldoni), acompanhado de referências elogiosas da também colega acadêmica. Esperei o meu tempo e Correio do Tempo acompanhou-me em minha recente viagem. À medida em que os contos curtos e as missivas ficcionais vão sendo percorridos, um tipo de sedução contagia o leitor.
Mario Benedetti (1920-2009), nascido no Uruguai, é um dos grandes escritores latino americanos. De origem simples, desempenhou várias atividades antes de se tornar jornalista. Suas convicções o levariam ao exílio em 1973. Permaneceria durante doze anos “migrando” para Argentina, Peru, Cuba e Espanha. A Trégua é seu romance mais ventilado no vasto repertório de suas obras.
Transitar pela livro de Benedetti é percorrer o universo do conceitual simples e de conteúdo. Não tergiversa ao abordar o cotidiano. Amor, desalento, sarcasmo, solidão, humor em várias roupagens, velhice inexorável, contos e cartas ficcionais vislumbram a rotina, a lembrança ou o passado que traz amarguras, mormente quando a temática é o regime político ditatorial que, à medida que lança tentáculos, mais cruento se torna. A preponderar, possivelmente, uma explícita nostalgia que passeia pelo livro em muitas tonalidades. Se o humor emerge, não se descarte uma dose desse nostálgico sentir. Um passado pleno de incontáveis experiências possibilita ao autor, um agudíssimo observador, metamorfoseá-las ao sabor das circunstâncias. Não seria Benedetti a recordar ficcionalmente cenas vividas em muitas narrativas de Correio do Tempo?
O escritor e poeta tem o dom da metáfora decodificada. Como flash, ela surge e ao leitor captar instigantes mensagens. Pormenoriza partidas e chegadas. Dir-se-ia que, aos que ficam, restaria um conformismo surdo; aos que partem, a incógnita, em situações marcadas por resultados, ideológicos ou não.
Mencionar algumas das imagens criadas pelo literato uruguaio torna-se necessário, pois frases metafóricas ou associativas corroboram a qualidade insofismável do autor nesses breves contos e cartas. Os anos de repressão permanecem em seu pensar: “Ou você não sabe que a democracia não chegou aos cemitérios? Só os vencedores têm túmulos”. Àquele que viu desaparecer nos difíceis tempos a amiga querida “Causava-lhe amargura e assombro ver que as dele eram mãos que não tocavam, não apalpavam, não acariciavam. Mãos solitárias, abandonadas, viúvas”. Outro personagem deixa mensagem gravada ao seu algoz do passado no breve Secretária Eletrônica: “Não sei se algum outro de teus cadáveres vai aparecer, como eu agora, nesta secretária eletrônica. E se não sei é porque aqui não comunicamos. Somos uma congregação de solitários. Sabia que a morte é uma interminável planície cinzenta? Garanto que não voltarei a te incomodar. Isso mesmo, a morte é uma interminável planície cinzenta. Uma planície cinzenta. Sem aleluias. Cinzenta”. Em Bolsa de viagens curtas, mais desalento da parte de quem viveu o período da repressão: “… porque já não mais conseguia viver com os antídotos do medo, e sentia que aos poucos começava a odiar minhas esquinas prediletas e as árvores encurvadas, e já não tinha tempo nem vontade de me refugiar no caramanchão do bairro das Flores, e os amigos de sempre começaram a ser do nunca, e havia mais cadáveres nos lixões que nas funerárias, então abri a bolsa das viagens curtas (embora soubesse que essa ia ser longa) e comecei a enfiar nela lembranças ao acaso…”. Foto antiga leva personagem a recordar grupo que fazia parte de sua vida: “… outros dois se tornaram, com o tempo, finos, elegantes delatores, e hoje gozam do respeito da amnésia pública. O último sou eu, mas também sou outro, quase não me reconheço, talvez porque se me enfrento ao espelho não estou em sépia”. Primavera dos outros traz à superfície o grito dos que não mais creem, o hodierno sem esperanças, mas em processo de progressiva deterioração: “Hoje quando você enfrentar o noticiário na televisão e vir mais negrinhos esqueléticos do Sudão, jangadas com marroquinos naufragando em Gibraltar, índios do Amazonas empurrados para o próprio fim, cursos básicos de violência juvenil, além da desenfreada e programada destruição da natureza, e depois, no mesmo canal ou no seguinte, a arrogância dos governantes, demo ou autocráticos, dá quase na mesma, exibindo sem pudor sua fome de poder; sua indiferença pelo próximo, singular ou plural, e também os grandes salões da Bolsa, com a histeria milionária dos apostadores; quando vir tudo isso, talvez entenda por que não suporto mais o mundo”. Em Não há sombra no espelho, a instigante frase “A sombra é dos corpos, não das imagens”.
Seria engano acreditar que apenas plúmbeos quadros percorrem Correio do Tempo. Impossível para Mario Benedetti não resgatá-los, pois fizeram parte de seu viver. Quando o humor ou o irônico aflora, uma fina camada de sarcasmo pode ser observada. O autor sabe dosar suas emoções. Jamais chega ao humor banal ou insólito, mas sim àquele que leva à reflexão. Perpassa esse despojado humor em contos como Jacinto, Cambalache, Conversa, O dezenove, Assalto à noite. Nostálgico, O Velho Tupi, café tradicional de Montevidéu, fez lembrar O Ponto Chic (vide Frederico Branco (1927-2001) – A revisitação das imagens perdidas, 09/03/07).
Em O inverno próprio, é o professor aos oitenta anos que, “Da sua cadeira de balanço, não consegue ler as letras de cada lombada, mas reconhece a maioria dos livros pela cor, pelo formato, pela encadernação ou pelo logotipo, ou então (e nisso é especialista) por suas marcas de velhice.” Precedentemente citei o autor português António Menéres: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir adivinho o seu conteúdo, e quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para me facilitar outros e novos convívios” (vide “Crônicas contra o Esquecimento” – A Profissão e o Olhar Diferenciado, 20/07/07).
Correio do Tempo seduz. A noção desse tempo, século recém findo, pode ser apreendida em espírito de síntese em seu poema O Acabou-se, que conclui a coletânea de contos e cartas reunidos:
“Eu trago os pés descalços para entrar no século
E o coração despido e a sorte sem asas
Vamos não estreá-lo com quimeras exangues
E sim com a dor da alegria”
The Uruguayan writer Mario Benedetti (1920-2009) is one of the greatest names of the Latin American literature. I’ve just read his book Correio do Tempo (El Buzón del Tiempo in the original), a collection of short stories and poems about love, death, distress, solitude, growing old. The author lived his life fully an was a keen observer, conveying the impression that part of his own experiences have been turned into fiction. A very interesting book, inviting readers to ponder on the theme of the passage of time.