Nuances e Percepção
Seria preciso não viver para negar que o mundo seja mau;
mas é nessa mesma maldade que devemos procurar
o apoio em que nos firmamos
para sermos nós próprios melhores
e, como tal, melhorarmos os outros.
Agostinho da Silva
Estava a conversar com Júlio, motorista de táxi. Tem ponto fixo não longe de minha casa. A série de descompassos, neste cotidiano que deveria ser menos amargo, fez com que o bom profissional, que encontro praticamente todos os dias, me questionasse: “o homem está se tornando de pior índole”? O tema surgiu como última gota em um copo, após o infausto acontecimento em torno de mulher desaparecida a envolver uma série de personagens, inclusive um esportista renomado. Sentei-me no banco dos motoristas e iniciamos boa troca de conceitos, ele a me propor perguntas inteligentes e eu, na medida do possível a tentar respondê-las. E assim permanecemos por um bom quarto de hora, sempre a comentar fatos últimos em que a tragédia foi epílogo, ou em que a corrupção teve mais um capítulo. Ao chegar diante do computador, a essência da conversa desfilou com dados complementares.
Desde a antiguidade discutiu-se a respeito de caráter, gênio, predisposição a ânimos. Nasce o homem já configurado em suas inclinações aos denominados bem ou mal, ou a sociedade que o circunda interfere, a modificar tendências? É como a história da origem, ovo ou galinha? Inclina-se o ser humano a apontar índoles ascendentes, generosas ou nocivas, assim como meio estável ou desestabilidade absoluta, a fim de explicações. Seria compreensível a existência de interpretações as mais díspares em defesa de uma vertente ou a conclamar as duas, ou outras mais ainda.
A sociedade atual tende, em quase todos os setores, à anestesia parcial, mas intensa, que faz vislumbrar apenas uma parte da consciência. Políticos têm o verbo mentir como verdade absoluta; a corrupção é endêmica; a máquina pública sempre em expansão é o Leviatã, o monstro que tudo devora; os impostos batem recordes a todo instante; empresários rotulam produtos com peso menor, sem contrapartida no preço, e nada acontece; a indústria automobilística alardeia aumento da produção, mesmo a saber que já não há mais espaços nas vias públicas das grandes cidades e que, celeremente, caminhamos em direção ao caos viário; o boom imobiliário chega a ser insano numa urbe sufocada como São Paulo; bancos fazem propaganda de balanços sempre ascendentes “geometricamente”; Saúde, Educação e Segurança estão sucateadas; a Justiça é lentíssima e grassa a impunidade como uma das consequências; a grande chaga da droga; a desarticulação da família. Perguntou-me Júlio se tudo isso poderia influir na índole do jovem. Claro que sim, respondi-lhe. Na medida em que células mestras da sociedade se decompõem, toda uma cadeia degenerativa se acentua. As fronteiras entre o bem e o mal já não se mostrariam precisas, mas envoltas em nuances e, ao brotar a permissividade como erva daninha, dificilmente haverá retorno. Conceitos foram alterados, a maneira de viver transformou-se. Todos os nossos sentidos têm sofrido o impacto dessas metamorfoses.
A certa altura passa diante de nós um casal de jovens com roupas estranhas, piercings e tatuagens. Júlio observa: “é isso?”. Sim, meu amigo, eis mutantes diante de nós. Tudo o que estão a evidenciar diante de nossos olhos é uma forma de auto-afirmação ou provocação. Uma mistura total. Tantas vezes essa aparência, a ser mostrada diante de seus pares nas intenções, leva o jovem aos chamados megashows, aos bailes funk, às estranhas reuniões de “tribos” ou mesmo – tênue linha a separar – à droga.
No ambiente com oxigenação mental quase nula, em que o pensar individual desaparece, inclusive pelo excesso de decibéis, haverá sempre aqueles que, visando ao lucro a partir de rebanho cada vez maior, terão influência no comportamento desse jovem. Derrubadas quaisquer barreiras que levem a juventude a pensar, ela será presa fácil. Desapareceria a noção da responsabilidade, não mais existiria a aferição de valores. Daí para o gesto premeditado e tresloucado tem-se um caminho pequeno. O cidadão assiste passivamente, nos noticiários televisivos, à apresentação de assassinatos e desvarios cometidos, sendo que as fisionomias dos autores permanecem gélidas, hirtas e sem a menor emoção. O esportista sob suspeita, treinaria a aparentar descontração, poucos dias após ter-lhe sido imputada a possibilidade de mandante de um crime cujos pormenores se afiguram como bárbaros, mas ainda envolto em névoa. A banalidade quanto a esse possível assassinato e os outros 137 que ocorrem diariamente no país – sim, 137 é a média – estarrece ! A mídia tem farta “munição” e, paradoxalmente, vive, em parte, todo esse surrealismo até coletivo. Você, meu caro Júlio, já presenciou no campo ou no mato os abutres a rondarem animal morto? Não se sabe como e nem de onde, mas horas após lá estão eles a sobrevoar o local para a faxina a seguir. Quando acontece um mal absoluto, logo depois a mídia lá está em número enorme. Se uma nave alienígena sobrevoasse ambas as situações não faria diferenças, creio eu. A suposta naturalidade é presença constante, tanto nos hodiendos crimes, como naqueles que inundam os meios de comunicação e concernentes ao colarinho branco, igualmente sórdidos. Toda essa exposição causa impacto e neuroses de várias intensidades. Acredito, Júlio, que estamos diante de tsunamis diários e crescentes. Se você verificar a percentagem altíssima de tempo televisivo que os canais dedicam em seus noticiários ao crime seguido de morte, ao estelionato, à corrupção, à tragédia imposta pela mãe natureza, ficará pasmo. E as boas ações que acontecem todos os dias, ou às culturas? Dedicam espaço reduzido como se estivessem a mostrar a generosidade da rede de televisão. Caminhando pelas ruas de Ghent a conversar com um amigo belga, mostrou-se meu interlocutor abismado quando lhe falei de assaltos seguidos de morte no Brasil. Disse-me que entende inadmissível essa situação, banal e rotineira entre nós. E de pensar, segundo o amigo da região da Flandres, que na Bélgica há cerca de 7 a 10 assassinatos por ano, número considerado altíssimo segundo ele ! Passeávamos em bairro residencial sem grades, situação rigorosamente impossível em nossa megalópole. Chamou-me a atenção por ocasião do deplorável Mensalão, em que todos se auto declararam inocentes, alto mandatário conclamar que ninguém era mais honesto do que ele. Mais recentemente, a seguir a mesma cartilha, um outro político a dizer que não há neste país alguém com ficha mais limpa do que a sua. Faces “afirmativas” de moedas diferentes, mas moedas…
Exemplos incontáveis existem na triste senda do crime. O que me parece preocupante é a aceleração desse degenerar dos costumes. O cidadão pode sofrer os impactos e, pouco a pouco, passar pela metamorfose que forjará outra possível índole. Seria a verdadeira que estava adormecida? Leviano afirmar a respeito. Apesar de avanços, sabemos ainda pouco a respeito da mente humana. De qualquer maneira, ainda há salvaguardas. Famílias bem estruturadas em todas as camadas sociais; noções de solidariedade, respeito e generosidade incutidas desde o nascer; formação cultural como um todo a abranger valores, independentemente das classes, ainda existem. Sim, existem.
Júlio mostrou-se atento e preocupado. Bom cidadão, apregoou que espera continuar a ser o motorista que sempre foi. Que ele é atencioso e educado, eu já sabia desde há muito tempo. A sua índole é das boas. Que permaneça assim, a granjear a admiração de seus amigos e clientes.
A reflection upon the excess of violence and offensive material in the media and its negative consequences on the way people act: numbness in face of human suffering, acceptance of violence as a way to solve problems, antisocial behavior, lack of critical thinking, incivility. It seems the correlation between violent media and aggressive behavior is strong. Our only hope to reverse this trend is the existence in all social classes of families still able to lay a strong foundation for their children, teaching them good values and attitudes that will enable them to interact in a positive way with their environment.