Futebol de Botões e Outros Jogos Mais
É lícito concluir-se imediatamente
que a criança pode ser muito diferente do adulto
e estar, no entanto,
preparando com todas as garantias de êxito esse mesmo adulto,
exactamente como a lagarta de couve prepara a borboleta…
Agostinho da Silva
Comentara em posts bem anteriores sobre jogos da infância e da pré-adolescência que permaneceram vivos em nossa memória. Faço-o hoje, mais pormenorizadamente, após estímulo advindo de conversa descontraída com Elson Otake, o maratonista.
Gerações têm suas lembranças. Mais evidentes elas se tornam quando há comparações. À medida que as décadas passam, o adulto entende como distantes suas diversões infantis, que sequer permeiam a vida dos miúdos de hoje. Outros são os impactos da criançada atual. Os que precederam a era da tecnologia sabiam que filhos e netos teriam suas satisfações de infância em brinquedos e jogos idênticos aos que os fizeram brincar e sonhar. Hoje, essa realidade não mais existe, pois diferente, mas a trazer alegria também à meninada. Nossos prazeres como crianças que fomos não são entendidos pelos que vieram. É real, até certo ponto nostálgico, mas irreversível. O mesmo deverá ocorrer com nossos pósteros de maneira ainda mais acentuada. Jogo de botões, bolinha de gude, pião, futebol com bola de meia, dominó, pipa ou papagaio, carrinho de rolimã, tudo encantava o nosso imaginário infantil.
Em determinado momento do diálogo com Elson, disse-me ele que, em passagem recente pela cidade de Porto Alegre para participar da Maratona da cidade, viu em uma casa comercial bela exposição de peças do chamado jogo de botões. Traduzindo, jogo de futebol de mesa em que botões são as peças fundamentais. Contou-me que aqueles da loja ostentavam os distintivos dos muitos times de futebol de campo existentes por este país e que eram muito bem feitos em vários materiais. Lembrou-me dos campeonatos espalhados em nosso vasto território. Motivo para recordação saber dessa permanência lúdica de jogo que fascinou minha geração e que era praticado com botões tirados de sobretudos masculinos, mantôs das mulheres e vidros ou plásticos que cobriam mostradores de relógios de bolso. Não poucas vezes a retirada dos futuros “jogadores” das vestes originais levou-nos a reprimendas de pai e mãe. Botões de fato e de “direito”.
João Carlos e eu tinhamos os nossos times. Jogávamos ambos, ou a treinar ou a competir com colegas e vizinhos. A molecada realmente se empolgava com essa brincadeira levada a sério. Estou a lembrar de meu “esquadrão” que obtinha, geralmente, bons resultados. Tinha eu meus doze anos e cuidava com carinho dos “jogadores”. Para aqueles que ficavam no ataque, raspava-os no piso do quintal, a fim de que ficassem finos e bem deslizantes. Essa “técnica” permitia ao jogador de frente (ataque) a possibilidade de encobrir o goleiro adversário – caixa de fósforo com o distintivo do time – e marcar seus gols, desde que habilidade e tranquilidade houvesse no momento final. Tempos outros em que a bola era feita de papel aluminizado de bombom. Bem amoldadas, possibilitavam as jogadas com até certa dose do imprevisível. Tempos que não são esquecidos. A lembrança de Elson levou-me a procurar a latinha em que guardei, nestes últimos 60 anos, o meu “esquadrão”. Alguns dos nomes de jogadores daquele período estão apagados pela inexorabilidade das décadas. Outros, minimamente legíveis, permaneceram: Dido, Romeuzinho, Salvador, Amendoim, Pavão, Antônio, Clovis, Rui, Ratinho… Uma mistura generalizada. Enlatados, esses botões hibernados fizeram parte de nossos encantamentos. Universo lúdico. Intocável. Guardei-os todos, titulares e reservas. Só o goleiro, em seu formato fragilizado, não resistiu ao tempo. Um destes botões tem pequena lasca, o que fez Elson observar jocosamente que “esse está contundido”. A latinha a que me refiro era amarela e continha primitivamente cápsulas de Vitamina B do Laboratório Squibb, que meu pai tomava religiosamente.
Entre outros folguedos, fazer rodar o pião necessitava de treino especial, rapidez e precisão no lançamento. Aquele que mantivesse o seu mais tempo a girar era o vencedor. Bolinha de gude era outra atração. Estou a rememorar a alegria que essa prática nos proporcionava: os pequenos e rasos buracos que fazíamos na terra e a habilidade em acertá-los ou então afastar a bolinha do adversário. Jogávamos com bolinhas de vidro colorido ou de aço. Tínhamos técnicas especiais para o lançamento da esfera. Futebol com bola de meia também era concorrido, sobretudo na primeira infância. Meias velhas de minha mãe eram perfeitas para o enchimento necessário.
Outro jogo que permanece entre meus tesouros da infância foi igualmente de meu pai: o dominó. Era de origem alemã, anterior à Segunda Guerra, em material de qualidade com uma caixa de madeira. Costumávamos jogar em momentos descontraídos e rarissimamente conseguíamos derrotar nosso pai, hábil estrategista.
Outra diversão que poderia se traduzir igualmente em jogo ou disputa era a feitura de pipas ou, popularmente, papagaios. Com esmerado carinho escolhíamos as melhores varetas, passando uma lixa para deixá-las bem lisas, preparávamos a armação com precisão “científica”, cortávamos e colávamos papel de seda utilizando para o mister goma arábica, dimensionávamos o comprimento da cauda, a fim de que a pipa não rodopiasse nas alturas e se precipitasse em direção ao solo. Após o justo cordoamento, levávamos ao Parque Ibirapuera de outrora e deixávamos aos cuidados do vento o rápido esvaziamento do carretel que abrigava linha resistente. Rara alegria.
Jogávamos pingue-pongue. Tínhamos certa habilidade, mas destruíamos com facilidade as bolinhas do jogo que, ao passarem por água fervendo, voltavam temporariamente à forma inicial. Em outra atividade da infância, lançávamos com sopro forte em canudo de cobre, papel enrolado de forma cônica, a ter na ponta alfinete, com o propósito de acertar colméias de marimbondos que infestavam a região. Ganhava aquele que mais “projéteis” conseguia fixar na morada cinzenta e arredondada desses himenópteros.
E como não lembrar de um carrinho de madeira com rodas de rolimã ou rolamentos? Havia uma oficina mecânica perto de casa e, quando da troca de peças desgastadas de um carro, seu Tião nos dava não só esses rolamentos sem mais utilidade em um automóvel, mas preciosos para a gurizada, como também esferas avulsas de aço, essas, ótimas para o jogo de gude. O trajeto do carrinho de rolimã era sempre o mesmo, da Rua Humberto Primo à Amâncio de Carvalho, aproveitando a descida da Av. Rodrigues Alves, na Vila Mariana. Essa descida era feita pela parte central da avenida, por onde passavam os bondes elétricos. Bem conservado o asfalto, propiciava um deslizar rápido e suave. Contudo, o fim de minhas aventuras nesse brinquedo da infância deu-se quando, desgovernado devido a quebra do eixo móvel da frente, choquei-me contra um poste à altura da Rua Rio Grande. Um corte profundo na “canela” da perna direita valeu-me reprimendas e a desistência desse brincar que um dia poderia afetar as mãos do pianista aprendiz. Contudo, a cicatriz permaneceria como testemunha implacável de virilidade.
Rememorar tempos tão distantes desperta uma surda felicidade. Ter vivido a infância nessa descontração, em momentos especiais retirados daqueles fulcrais, destinados aos estudos escolares e ao piano. Meus três irmãos, que dividiram um ou outro desses folguedos, principalmente João Carlos, meu companheiro de quarto em período inesquecível, devem ter também lembranças paralelas. A metamorfose provocada pelas décadas causaria interpretações diferenciadas, a depender dos impactos produzidos em cada um. Contudo, em todos nós, marcas profundas ficaram, a dimensionar a imaginação.
Going back to the days of my infancy, I recollect the retro toys that were part of childhood before the invasion of electronic toys: button football team, spinning top, marbles, domino, kite, ping-pong, toy cars and even paper straws to shoot holes in wasp nests. Memories of blissful moments stolen from hours devoted to school and piano practice that left strong marks on me and now make my imagination fly.
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