“A Nova Ordem Estupidológica”

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… a exuberância dos fenômenos estupidológicos,
a sua extrema variedade,
a riqueza das suas realizações
ou a elegância dos seus refinamentos,
tudo nos faz encontrar na estupidez mais,
muito mais do que uma vacuidade,
uma ausência de inteligência.

Vitor J. Rodrigues

Sentados em uma praça no centro da Évora murada, Idalete Giga e eu tomávamos um café em tarde amena de fins de Maio último, horas antes de meu recital no Convento Nossa Senhora dos Remédios. Da música fomos para a irracionalidade encontrável hoje, em sentido ascendente, na sociedade moderna, onde valores são desprezados. O homem sofre crescentes aviltamentos de toda ordem, lamentáveis chagas rotineiras. Parte pulsante da coletividade está a entender que o ser humano vil não mede esforços no intuito de prevalecer sobre a sociedade. Diariamente convive-se com o descalabro, a mentira oficializada e os tacões, não só de coturnos periódicos, mas de calçados de grife, assim como com a insegurança ostensiva provocada por meliantes rápidos, espertos, insanos, estes a calçarem tênis. Foi quando a amiga e ilustre colega falou-me sobre dois livros do professor universitário e psicólogo clínico Vítor J. Rodrigues, Teoria Geral da Estupidez Humana (Lisboa, Livros Horizonte, 1992) e A Nova Ordem Estupidológica (Lisboa, Livros Horizonte, 1995). Ela entendia-os esgotados. Fomos a uma livraria na cidade alentejana e a funcionária conseguiu achar no almoxarifado os dois últimos exemplares. Idalete ainda tentou, via telemóvel, convidar o professor para o recital, mas este se encontrava em Paris, a participar de reunião científica.
Empregando uma metodologia a fazer certa a presença da “estupidez humana” – onipresente nas duas obras – frente à inteligência até indefesa, Vitor Rodrigues constrói uma teia em que majoritariamente a manifestação do homem passa por formas de estupidez x inteligência de toda ordem: individual, coletiva e nos mais diversos ramos da atividade. A estupidez estaria enraizada em todas as áreas, segundo ele. Contrapõe-se à inteligência sem aspirações ao carreirismo e ao poder. Como afirma o autor, “A estupidez, rainha dos assuntos humanos contemporâneos, faz sentir a sua superioridade confirmando, passo a passo, a incapacidade adaptativa dos inteligentes que, decididamente, continuam a ter grandes problemas sempre que procuram fazer valer a sua característica dominante”. Esses cidadãos teriam diretrizes quanto aos desideratos, mas, mercê da inteligência despojada, não procuram benefícios pessoais e poder. O contrário leva à instauração daquilo que Rodrigues admite como estupidologia. O termo e seus derivados, existentes ou neologismos, frequentam abusivamente as duas obras. Há fixação clara, compulsiva, a não permitir a possibilidade do desvio. Os parágrafos não se esquecem da palavra. Seguir o roteiro parcial dos dois livros permite ao leitor acompanhar e entender o discurso do psicólogo clínico como, até, visionário. Se sob um aspecto dialoga com a inteligência e a estupidez, friso, por ele proposta, sob aspecto outro por vezes realiza a “sinistra apologia” dessa estupidez como realidade absoluta, hélas, sem retorno.
Faz-se necessária pois, neste post, a menção de inúmeros segmentos das obras, a fim de que o leitor capte essa imersão realizada pelo professor em tema polêmico. Entende que a humanidade está frente à decisiva era da estupidez humana. Essa ordem estupidológica tenderia à antropofagia. Para se obter algo na sociedade, a mentalidade estúpida deveria ser a regra. Afirma Vitor J. Rodrigues sobre os inteligentes: “Andam isolados porque ninguém os entende, quando não os põem de quarentena para evitar que alguém chegue a entendê-los. Por sua vez, a obra que deixam é quase sempre deturpada e utilizada para fins que nem afloravam à imaginação de seus autores”.
O psicólogo clínico realiza as suas experiências e as traduz. Caso típico é a interpretação feita pelos vários grupos de indivíduos, previamente selecionados, a respeito da Alegoria da Caverna, do pensador grego Platão. Os resultados para ele são significativos e ajudam, em parte, a construção de seu discurso.
Se o primeiro volume apresenta-se doutrinário, o segundo pormenoriza diversas áreas. A extensão da obra levou-me a escolher três capítulos essenciais e atemporais: A Estupidez Artística, do primeiro volume, O Assalto ao Poder e O Assalto às Universidades, estes, do segundo. Há, contudo, outros “assaltos” que, na essência, têm no vocabulário monotemático do professor – mas a levar à reflexão – o debruçar atento: Religião, Psicologia, Medicina e, a finalizar, A Arma Nuclear da Inteligência.
Vitor Rodrigues aborda em A estupidez Artística, o que considera o “… lado estético da estupidez, sem dúvida uma das suas manifestações simultaneamente mais diáfanas e mais poderosas”. Haveria sempre aqueles que se sobrepõem a outros, não pelo talento real, mas por caminhos estranhos: “Assim, a arte estúpida deve tomar a aparência de busca da beleza inteligente para poder conduzir o Homem ao estreitamento mental”. É cáustico ao afirmar que “… o artista estúpido não tem musa: tem-se a si mesmo enquanto personalidade curta.” Ao se debruçar sobre a música não poupa crítica à sua massificação exacerbada, graças a um tipo de “músico” que visa diretamente à grande aceitação pública. Esse músico estúpido, assim nomeado pelo autor, prende-se a oito preceitos: Exclusão da verdadeira criatividade; Semelhança (“… o artista estúpido se esforça por estar atento aos fenômenos do seu egocentrismo naquilo que eles têm de ressonante em relação às mais baixas paixões susceptíveis de agitar a multidão”); Ritmo; Harmonia (“… mesmo quando pareça harmônica, a música estúpida deverá conservar um caráter de excesso desequilibrante”); Mensagem a (“… apelar sempre para a agressão, a revolta, a depressão, a sexualidade física e o exagero entendidos como finalidades essenciais”); Intervenção vocal (“… alguém capaz de cantar sempre com um tom de voz muito excitado, muito irritado, muito obsceno…”); Sensações físicas (“… mais ou menos ligados à agitação emocional e ao estreitamento mental”); Efeito zumbi (“… toda a música estúpida deve, evidentemente, conduzir a estados de apagamento da inteligência e escurecimento da consciência”). E essa “música” de massa tem como “poeta estúpido” alguém que, ao utilizar palavras-chave, pouco se interessa pela construção das frases, pois o que será vociferado tem como alvo excitar os destinatários, populações catalogadas em várias categorias pelo autor. Não se pode vislumbrar nesses oito itens o quadro de determinados mega shows, nos quais todas as propostas se encaixam à perfeição?

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Em Assalto ao Poder, quarto capítulo de A Nova Ordem Estupidológica, o escritor traça perfil que faz pensar no que se propaga da política nos últimos tempos. Trata-se de radiografia au point. No segmento Pressupostos de base da Ciência Política Estupidológica, o autor menciona sete, entre os quais aquele em que se mede a capacidade do político obter votos, “… maquilhados e, numa boa parte dos casos, transaccionáveis”. No número três, Os estúpidos são donos da Verdade e proprietários da Realidade, comenta “Esta é, sem dúvida, uma das razões pelas quais eles preferem largamente vencer um debate a conquistar uma vitória para a Verdade (seria ridículo curvarem-se dessa maneira perante uma subalterna sua)”. O item A gestão do poder é um jogo: o jogo do poder tem a seguir Quando não podemos vencê-los, é preferível juntarmo-nos a eles, em que o psicólogo clínico traduz essa tendência de se encontrar “… da parte de muitos políticos estúpidos, uma habilidade excepcional para, antes de serem derrotados, se aliarem ao partido, movimento, ideia ou pessoa que iria derrotá-los. Convenhamos que isto é mais saudável do que a opção dos inteligentes que nunca se rendem perante a estupidez das ideias e procedimentos mesmo quando elas têm por si a força dos tempos e das ações eleitorais”. Verifica-se que o professor joga por vezes com a ironia, a justificar essa “era da estupidez”.
No subcapítulo Perfil do Político Estúpido Elegível, considera o autor seis itens aos quais se adequa: flexível; magnético, carismático: “… não esqueçamos: o carisma de um estúpido depende da sua aptidão para mobilizar, galvanizar e encaminhar populações com as armas da estupidez”; esgrimista verbal: “… a relação com a Verdade ou a Realidade não é importante devido aos direitos políticos sobre elas”; bom vendedor; bom líder.
Outro segmento é dedicado à Propaganda Eleitoral, onde encontramos duas menções a sedimentar o discurso: “… a arte do político estúpido assemelha-se, em parte, à do ilusionista: trata-se de fazer as pessoas acreditarem que está a acontecer aquilo que, na realidade, é bem outra coisa.” E continua: “… os únicos objectivos dignos da Nova Ordem Estupidológica são a conquista e a manutenção do poder – pagando por isso, os preços que haja a pagar; ora, nos dias que correm, a inteligência está tão desvalorizada que até sai barato aos políticos sacrificarem os valores dela…”
Nesse capítulo do Poder, aborda a Acção Governativa. Para a perpetuação dos governantes, o autor fundamenta serem necessários: consolidar o poder; convencer o público de que os seus interesses estão a ser objeto de um zelo desvelado; justificar cuidadosamente as decisões tomadas; afastar do poder as pessoas inteligentes: “Além disso, mesmo quando estão dispostos a percorrer os caminhos do acesso ao poder, os inteligentes não estão dispostos a optar pelos atalhos ditados pela estupidez e, com isso, perdem a vez face a estúpidos que, graças a esses atalhos, chegam lá mais depressa”. Sobre a convivência, observa que os políticos “… raramente se mostram tolerantes, colaborantes ou complementares frente a outros políticos – o que seria inteligentemente possível se o objectivo da campanha fosse eleger o melhor e, sobretudo, as melhores ideias governativas face a uma realidade socio-económica e cultural devidamente investigada”. Crítico, comenta: “… não se vence uma eleição com preocupações altruístas e desinteressadas (que levam imediatamente os estúpidos à desconfiança)”. Nesse critério avaliativo, enfatiza: “… um bom comando anti-inteligente na política deve, antes de tudo, assegurar-se do uso dos meios que forem precisos para atingir a finalidade de subir ao poder e ficar lá”. Conclui neste capítulo: “Obviamente, uma das preocupações dominantes consiste em conservar as pessoas inteligentes fora dos partidos”. Neste ano em que as eleições batem à porta, as considerações de Vitor Rodrigues não estariam a ter parentesco com o que se presencia? Não haveria um antropofagismo em toda essa realidade que estamos a viver?
Em post anterior abordei livro de Russel Jacoby (“Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas, 18/03/09), em que o autor tece duras críticas à Universidade. Não distante do discurso proposto por Jacoby, Vitor Rodrigues envereda, sempre a insistir na palavra paradigma de sua exposição, nessa avaliação não desprovida de forte interesse. No capítulo Assalto às Universidades, mostra-se absolutamente cônscio de suas experiências junto à Academia e argumenta que a emergência do que ele nomeia “Comandos Anti-Inteligentes Universitários” estaria a “… desmoralizar ou obstaculizar a actividade dos inteligentes”. Observa que, na Universidade, a inteligência dedicada ao aprofundamento está sempre a correr riscos “… as ideias inteligentes têm-se visto ameaçadas de extinção (e, nalguns casos, têm-se extinto) por não serem capazes de se adaptar ao mundo humano. Pelo contrário, as ideias estúpidas, feitas à imagem e semelhança de uma parte da sociedade humana passada e actual, prosperam e desenvolvem-se em mil variantes”. O psicólogo clínico entenderia que a inteligência provoca a ira daqueles dela não possuidores.
Em subcapítulo, Formas de Governação Universitária, Vitor Rodrigues considera a Ditadura e o Feudalismo intelectuais. Trata-se de um jogo para a obtenção do poder e, este conquistado, atingir-se o controle intelectual dos inteligentes. Quanto ao feudalismo intelectual, o território da Universidade estaria dividido “… em feudos intelectuais (também conhecidos como ‘capelinhas do saber’). O rei, ou reitor, tem grandes dificuldades para assegurar algum tipo de unificação deste território pois cada feudo é muitíssimo independente”. Estaria a referir-se às Unidades e aos Departamentos universitários. Observa que “… esta norma, sobejamente conhecida no feudalismo e assumida por quase todos, é apenas consuetudinária – não está escrita em lado nenhum”.
Metaforicamente, Vitor Rodrigues comenta o que denomina “terrenos tabu universitários”, o que impede a penetração dos inteligentes. Minas intelectuais seriam instaladas, a implicar que “… o transgressor será vítima da explosão da mina – o que, geralmente, implica o estropiamento ou mesmo a morte da sua carreira acadêmica sob o efeito da explosão. Com efeito, uma mina intelectual possui geralmente, no núcleo, um explosivo poderoso – cólera preconceituosa concentrada – encerrado, sob pressão, num invólucro de estreiteza teórica (sem quaisquer aberturas de espírito). Caso exploda, disseminará estilhaços cortantes, sobretudo de tipo administrativo, capazes de reduzir subsídios a nada, retirar privilégios, negar instalações, até mesmo desintegrar contratos. Os estúpidos aprendem desde cedo que a simples referência a certos territórios intelectuais é, também ela, um tabu universitário. Quanto aos inteligentes, a sua imperícia em lidar com essa ordem de subtilezas, bem como a sua impetuosa curiosidade científica, tendem a conduzi-los à perdição…”.
No subcapítulo Modalidades de Assalto às Universidades, o autor observa que as áreas humanas recebem pouco na divisão orçamentária, se comparadas às tecnológicas. Haveria uma minimização do ser humano como tal, considerado até com certo desprezo pelas áreas mais aquinhoadas. Comenta a respeito do carreirismo. Aponta as barreiras que dificultam a ascensão dos mais inteligentes ou dos que, eventualmente capazes, almejam por funções diretivas. Um outro fator seria o acomodamento: “Estar numa Faculdade passa a ser um emprego como os outros, cuja finalidade principal é ‘ganhar o seu’, ou uma carreira onde, claro, alcançar fama, poder e alguma riqueza constituem os principais objetivos”.
Preocupa-se com a quantidade de Congressos, trabalhos apresentados, farto material a servir às carreiras acadêmicas. Aponta dois objetivos básicos: a obtenção de diplomas de presença e a apresentação de trabalhos científicos que pesem no currículo. Observa: ”Quantos mais destes trabalhos obtiverem publicação e quanto menos disserem, melhor será para a causa da estupidez universitária. Por essa razão, muitas das comunicações científicas a que se assiste nas Universidades em todo o lado não visam finalidades de intercâmbio de informações e/ou progresso científico; pelo contrário, ficam fechadas na finalidade de serem apresentadas e de isso poder aparecer escrito num currículo”.
Vitor Rodrigues ao abordar a Inserção activa das Universidades na Sociedade Actual se preocuparia com itens fulcrais: interesses econômicos de instâncias privadas e estaduais, referência às Fundações e Instituições do Governo; competividade desenfreada; ambições máximas; luta pelo poder, incapacidade gerencial na Universidade; outrismo (quer apático quer belicizante) ”, traduzido na perene desconfiança; interesses menores.
Por fim, faz crítica cruenta, a denominar “… mercenários do saber pois, obviamente, estão à venda e recebem dinheiro para travarem as mais diversas guerras intelectuais: a única questão é quem lhes paga, quanto lhes paga e com que paga…”.
Os dois livros são intrigantes. Se as opiniões de Vitor Rodrigues caracterizam-se por extremo rigor frente ao que ele denomina a ascensão crescente da “estupidez humana”, há que se considerar que suas teorias polêmicas levam à reflexão. O que parece evidente é a existência de categoria nada recomendável entre os humanos. Estejamos alertas.