Sensíveis Recordações de Leitores

Popopô, barquinho de Belém do Pará. Clique para ampliar.

Aquilo que distingue uma criança
de todo o resto que é vivo no Universo
é a capacidade enorme de sua absorção no jogo.
A capacidade enorme de imaginar
que as coisas efectivamente estão surgindo
como ao toque mágico de uma vara de fada
e fazer que perante isso o tempo não exista.
O milagre que uma criança faz quotidianamente no mundo
é aquele milagre de conseguir que o tempo
desapareça de sua vida na realidade.

Agostinho da Silva

O tema a abordar reminiscências da infância e adolescência teve guarida. Recebi inúmeros e-mails de leitores que tiveram suas experiências, conservando-as em relicários. A geração à qual pertenço teve essa dádiva da matéria, e o brinquedo ou jogo integrava nossa vida de maneira definitiva. Internet, celular, ipod e outras “tentações” hodiernas canalizam a atenção dos miúdos e, consequentemente, do jovem. A parafernália eletrônica, retirando a magia do brinquedo sólido, palpável, insubstituível, tantas vezes artesanal, encaminha a novíssima geração ao prazer da troca constante de todos esses aparelhos. Mentes que desabrocham sem a possibilidade da memória do objeto perene. Conversei com um menino em seus doze anos, que realizava um joguinho no celular. Disse-me que já teve vários. Insisti, a perguntar se ele se lembrava dos modelos anteriores. Jogava-os nos lixo, respondeu-me sem alegria. E a memória se estiola. E esse milagre de que nos fala o pensador Agostinho da Silva, não estaria a perder encantamento e magia?
Selecionei para esses Ecos três e-mails expressivos. Partilho-os com meus leitores, pois revelam impressões sensíveis que permaneceram.
A mensagem de Flávio de Araújo, impecável narrador esportivo das décadas de 50-80, traduz o paralelismo da alegria dessa fase não esquecida por nós ambos. Mesmos botões de vestimenta, idênticas bolinhas de papel aluminizado, técnicas para lixar os “jogadores” e, a prevalecer, o universo mágico que estabelecíamos com a matéria que transcendia em nossos toques sutis ou mais abruptos:
“A mim só restaram as alegres lembranças que seu excelente blog desta semana proporcionou, já que não mais tenho a latinha com os botões que encantaram minha infância e que eram iguaizinhos aos seus. Jogava entre os meninos de minha patota, organizávamos campeonatos e, quando não havia parceiro, a bolinha rolava de mim para comigo. E posso jurar que não ‘roubava’ para este ou para aquele. Meus 2 times eram o Palmeiras e o Penharol, do Uruguai. Mas nada desses industrializados a que se refere seu amigo Otake. Somente aqueles de nossa produção caseira e que lixávamos para permitir que as bolinhas, do tipo das suas, deslizassem com facilidade ou subissem exatamente à altura desejada para cobrir o goleiro de caixas de fósforos (uma maior, outra menor, coladas e reforçadas com um peso dentro). Fui bom na brincadeira e só deixei de praticar o jogo quando a vida me chamou para as necessidades mais urgentes de ajudar no reforço dos parcos ganhos familiares. Mais tarde tentei recomeçar jogando com meus filhos, mas aí já era outra a estória. E muito diferente. Seu blog, como sempre, me encanta”.

roda roda pião. Clique para ampliar.

De Mônica Sette Lopes, professora universitária, juíza e escritora, recebi pormenorizado comentário:
“O post de hoje reflete bem o que é a sensação da infância (e por isso gostei tanto dele). Numa das edições do meu programa (Direito é Música), sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, usei uma canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, que se chama Bola de meia, bola de gude (Vai o link porque sei que música popular não é a sua praia). Tem uma parte em que eles dizem que toda vez que adulto balança, é o menino que vem dar-lhe a mão.
O objetivo primeiro do Estatuto da Criança e do Adolescente não é punir, não é impor sanções aos menores, mas possibilitar que cada criança ou adolescente, independentemente de onde tenha vindo, possa, antes de delinquir, ter a chance de brincar de bola de meia, bola de gude, para que o adulto tenha a quem dar a mão mais tarde.
A menina que me dá a mão brincava com o irmão no terreiro. E com ele aprendeu a conviver com os homens (assim mesmo, no masculino) e a fazer amigos. Era assim. Como sou mais velha (eu, de 1961, ele, de 1965), meu irmão sempre começava brincando de casinha, com boneca e tudo o que faz parte do jogo das meninas. Ele não ligava. Isto não significava nada dentro do contexto do que deve ser o brinquedo masculino (que ele brincava sozinho e depois passou a brincar com os amigos na rua, quando fiquei grande demais). O que me lembra disto, lá no fundo, é que, de repente. a casinha e toda a parafernália da menina viravam disco voador, carro de super-herói, cavalo de mocinho e nós já estávamos correndo pelo terreiro, que era grande, caçando bandidos, imitando guerra, matando e morrendo, gritando de lutar. E, naquele dia, nunca mais voltaríamos ao brinquedo puro da menina. Sempre que retomamos este tempo, digo ao meu irmão querido demais, amado demais, que se não fosse a experiência dos dias de brincar não entenderia tanto este lado de lá da espécie. Quando vejo as políticas das instituições, as brigas e as disputas sempre tão masculinas, retorno a essa reminiscência infantil e, mesmo quando isto me faz sofrer, tenho sempre um certo gosto em constatar o já sabido: Lá vão eles para a guerra, para o disco voador, para a luta. Lá vão eles correr de novo, terreiro afora, atrás de algo que nem sabem o que é.
Não é bola de meia, nem bola de gude. Todavia, é como se a menina que me dá a mão dissesse: ‘Não se assuste, você sabia que era assim, essa transformação do nada e que não voltava mais. Você sabia que de repente eles caem numa luta que não acaba mais’ ”.

Bydlo, o pequeno caminhão de madeira. Clique para ampliar.

Saúl Mendes Migliacio enviou e-mail – pela primeira vez – não desprovido de forte comprometimento com esse passado presente:
“O que dizer, professor. Tive meus momentos fascinantes. Ainda bem pequenino puxava um caminhão de madeira, com rodas de plástico. Nele colocava meus tesouros, dados, bolas de gude brancas com faixas coloridas – as mais bonitas -, botões e carrinhos de corrida de metal e de dar corda. Saía correndo pelo jardim da casa de meus pais puxando o caminhão preso a um fio de barbante branco, daqueles grossos. Conservo-o ainda como um troféu, apesar da aposentadoria do veículo que tantas alegrias me trouxe nos tempos da Segunda Grande Guerra. Bola de meia, rolimã, tudo isso também conheci. Havia também soldadinhos de chumbo, álbum de figurinhas… Nossos netos terão lembranças tão intensas e materializadas? Dúvidas, só dúvidas.”
O mergulho no passado feliz desperta emoções hibernadas. Todos nós temos as nossas lembranças. Aquelas dos brinquedos, jogos e folguedos seriam, possivelmente, as mais intensas. A simplicidade perdida, eis uma realidade que parece ter penetrado os tempos de hoje. Estou a me lembrar de documentário recente divulgado na TV a cabo. Crianças contando suas histórias e seus sonhos através de carrinhos de corrida puxados por barbante ou arame. Passa-se em Cabo Verde e essa meninada constrói os veículos, sobe e desce as colinas e, apesar dos parcos recursos do arquipélago, encontra a magia que leva ao encantamento. E a esperança ressurge. Milagre.

We all have our memories and those of toy playing are among the most intense and emotionally charged. Some readers of my last post wrote me to recount their own experiences with classic old fashioned toys and how meaningful they were to them. They all express a feeling of nostalgia for the simplicity of design that does not exist anymore. The post of this week is a selection of some of the messages I received.