Navegando Posts publicados em setembro, 2010

Enfrentar Instrumento Desconhecido

 Foto Elson Otake. Clique para ampliar.

Contra um piano difícil, não adianta lutar,
pois ele sempre sairá vitorioso.

Yara Bernette
(frase colhida por JEM,
durante conversa amistosa em Belém do Pará)

O promissor intérprete que motivou o post Carta a um Jovem Pianista – A Qualidade como Destino (13/02/10) tornou a escrever-me, questionando-me sobre um tema que aflige basicamente a todos os pianistas que se apresentam em determinadas cidades onde o instrumento não oferece condições ideais. Em termos de Brasil, essa é uma triste realidade, mormente se considerarmos os impostos abusivos que incidem sobre a importação de instrumentos. Quando um piano de concerto novo chega ao Brasil, todos os que pertencem ao métier ficam a saber. Isso não é bom, pois retrata a excepcionalidade e não aquilo que deveria ser rotina. Sob aspecto outro, dos poucos que aqui chegam, alguns ainda não estão devidamente “amaciados” e isso pode provocar dissabores. Apesar dos esforços ainda não atingimos o nível de excelência na fabricação de pianos no Brasil. Estou a me lembrar que, nos meus 16 anos, fui indicado por meu professor José Kliass para “amaciar” um piano novíssimo que a Sra. Luba Klabin recebera da Steinway & Sons de Hamburgo. Estudava das 10 às 13 horas todas as quartas-feiras e no fim do mês recebia das mãos do mordomo meus “honorários”. Morava essa Senhora ligada à música erudita em São Paulo, na imensa casa que deu lugar à construção futura do MuBE na Av. Europa.
O jovem talentoso – não o conheço pessoalmente – escreve a respeito da preparação para uma apresentação: “ No ensaio tentei de todas as formas tocar com o toque de Mozart normal, mas as notas falhavam muito, então tive que pressionar muito sobre cada nota. Não tive outra escolha senão abrir mão parcialmente da delicadeza do toque natural de Mozart, infelizmente”. Narra a experiência durante o concerto: “O toque não estava dentro do estilo de Mozart porque fui literalmente obrigado a tocar muito sólido (tratava-se de um piano zero km duríssimo – o mais duro que já toquei na vida).” E conclui “Realmente precisamos de pianos melhores no Brasil, não é verdade”???
Vários são os problemas relacionados ao piano em nosso país. Independentemente da dificuldade quanto à importação de número maior de instrumentos novos, mercê dos escorchantes impostos, o material de reposição, a sofrer taxações igualmente altíssimas, é pouco procurado pela grande maioria de alunos, amadores e mesmo profissionais. Nossos afinadores, alguns competentes, buscam soluções as mais variadas, quiçá criativas, e atendem dentro do possível.
O piano, sendo o mais abrangente dos instrumentos, impõe uma série de obstáculos aos intérpretes. Fiquemos restritos à problemática brasileira. Quantas são as cidades que têm pianos realmente bons? Poucas. Nas urbes maiores há instrumentos de qualidade, mas em que quantidade? Se levantamento fosse feito, chegaríamos a cifras constrangedoras. Qualquer comparação com países outros que cultuam a música de concerto, clássica ou erudita como continuidade de cultura enraizada, é desfavorável ao Brasil. A particularizar o exposto acima, quando uma Universidade recebe alguns instrumentos, festeja-se. Ao receber um piano denominado de “cauda inteira”, determinada sociedade de concertos organiza inclusive série de recitais para celebrar o feito. A esporadicidade desses acontecimentos faria supor que vivemos melhores dias, mas, infelizmente, tem-se a “aparência” da verdade. Não só existem bons pianos em centros grandes ou pequenos do Exterior, como periodicamente são eles trocados por outros em melhores condições, sendo que muitos instrumentos “descartados” estarão a servir outras instituições de ensino menos aquinhoadas.
A escassez leva fatalmente à manutenção – ou à falta dela – dos pianos existentes no país. O mesmo se dá com os carros, pois quão mais velhos, mais visitam as oficinas. Independentemente do número cada vez menor de jovens que sonham um dia tornar-se recitalistas ou concertistas e que se dedicam com afinco ao estudo de piano, o desestímulo diante de instrumentos velhos ou sem manutenção é fato a ser registrado.

Há teclados bem duros. Foto Elson Otake. Clique para ampliar.

Se pensada for a relação de outros músicos que transportam seus instrumentos, no caso daqueles de corda, madeira ou metal, há como acréscimo a proximidade. O contato direto, aconchegado, proporciona uma relação íntima que pode, se talento e dedicação existirem, resultar num belo amálgama. Quanto ao piano, o instrumentista tem a relação afetiva com a sua arte, com o som e com o repertório. O teclado está distante das cordas, e o intimismo é criado em outro universo de proximidade. O instrumento de convívio, aquele doméstico, que recebe horas de dedicação, não será o das apresentações. Uma primeira separação se faz. Em outro contexto, a surpresa é o fato constante quando das performances. Sabe-se onde haverá o concerto ou recital, nunca se sabe qual a empatia que haverá com o instrumento a ser desvendado. Se afinidade houver, tem-se o maravilhamento; caso contrário, um “combate” permanente. Notável pianista belga disse-me certa vez que deparar-se com pianos de certas salas de concerto é como desafiar um touro miúra. Ou entramos na arena e o enfrentamos, ou desistimos.
A possibilidade de um entendimento só pode concretizar-se se, acima de todas as dificuldades, o intérprete assumir a sua relação com a música como uma missão. Enfrentará os seus miúras durante a trajetória e saberá combatê-los. Se vence ou não, vai depender inclusive do estado bom ou mau do piano. Não poucas vezes será subjugado pelo instrumento. É o tributo a pagar. Longe estamos do pianista legendário que fazia transportar seu próprio piano para as salas de concerto. Guiomar Novaes o fez inúmeras vezes, Vladimir Horowitz, sempre, e outros tantos também. Mas os tempos do tapete vermelho a recepcionar a lenda viajante passou. O Japão recebeu Marguerite Long e, em outra oportunidade, Alfred Cortot, dois nomes referenciais do piano daquela maneira. Família Imperial a recepcionar artistas. Foi ofertada a Cortot, como presente do Imperador, uma ilha, Cortoshima. Outros tempos, rigorosamente impossíveis nos dias atuais. Em aeroporto da Europa vi, ainda este ano, um dos maiores instrumentistas da atualidade a carregar suas malas e pegar o autocar, como um cidadão absolutamente comum. Situação impensável naqueles tempos. Enfrentam-se malas e, por vezes, teclados desiguais ou duros. Faz parte da opção de vida. O importante é jamais tergiversarmos com a qualidade. Só ela importa. A gravação em países conceituados nessa atividade possibilita a escolha certa do instrumento. Já na sala de concerto, a depender do local, deparar-se com o piano ideal é apenas esperança. Talvez seja pedir muito.

A young pianist wrote to me pointing out the poor conditions of a piano he had been offered for a recital. This is a routine problem faced by pianists in Brazilian concert halls: inferior or worn-out pianos, out of tune, in need of good repairs. This widespread neglect of many instruments is mostly due to the astronomic price of a new one. Few organizations can afford to buy a new concert grand and keep it in top playing conditions. When a performer sits down at the piano in front of an audience, the unexpected is the rule and he can only pray for a reliable instrument.

O Leitor, Estímulo Maior

Desenho de Luca Vitali. Clique para ampliar.

Ascender requer força da mente.
Provérbio himalaio

Às vésperas de atingir 100.000 acessos partilho com os generosos leitores que não pensava atingir essa cifra. Há blogs e blogs. Muitos conseguem esse número, ou bem maior, em apenas um dia, mercê da temática imediatista encontrável em quaisquer áreas de impacto: política, esporte-futebol, cotidiano agressivo, economia, bolsa de valores, celebridades… Tantos mais são publicados inúmeras vezes ao dia, mormente na área política, e são avidamente sorvidos por legiões de interessados. Não se trata de juízo de valor, mas de constatação. Sob aspecto outro, para determinado grupo da inteligentzia, blog representa uma categoria menor do pensar. Em parte, não sem razão.
O que me leva a esse veículo virtual formidável é a possibilidade do contacto com leitores que buscam uma outra espécie de percepção do cotidiano, não aquela desse mundo tão desvalorizado moralmente; tampouco a do sangue que escorre pelas rádios, TVs, jornais e revistas concernentes à criminalidade em expansão e sempre impune; muito menos a do consumismo exacerbado e a do sucesso pelo aplauso ou outras tantas vertentes assiduamente procuradas na internet.
Observei, no post referente aos 50.000 acessos, que já fui tentado a colocar publicidade em meu blog. Esporadicamente continuo a ser contatado. Implicaria a aceitação de um tipo velado de controle, não apenas relativo ao número de acessos, como também à possibilidade de interferência mínima nas sugestões temáticas. Por outro lado, periódicos e jornais, pragmatizados em relação a preciosos espaços, podem ter influência sobre seus articulistas habituais, a enquadrar textos ao número de dígitos por eles propostos. Estou a me lembrar que, após 10 anos a escrever regularmente para determinado suplemento cultural de jornal de grande circulação, recebi tout court orientação no sentido de que doravante caberia ao importante diário interferir na dimensão e em outros mais processos, inclusive na revisão, a suprimir frases ou segmentos naquilo que entendesse pertinente. Imediatamente deixei de colaborar, assim como outros articulistas por quem tenho o maior respeito. O pensamento cerceado é um desastre irremediável, sobretudo se considerado for que, através da década, recebera o maior respeito por parte de comissão que deliberava com os autores sobre as matérias do ano. Não haveria necessidade de dizer que esse conselho ilustre foi totalmente alterado, fatalmente não ao nível de excelência. Tempos outros vieram e não me entusiasmaram.
A realidade pessoal me impulsiona a escrever, e o ato tem de ser livre. Assim como uma composição musical a obedecer forma determinada pode ser maior ou menor, assim como um gesto de amor não pode ser mensurado, creio que, a depender do tema, torna-se imperativo o livre escoar das ideias, à la manière do rio que corre para o mar, sempre em vazão mutante. O não confinamento do espaço não implica a inexistência do espírito de síntese, apenas o redimensiona.
As nossas preferências dependem de diversos fatores. Os meus leitores, cúmplices ao captarem solilóquios vertidos em vários compartimentos da observação, têm compreendido o direcionamento voltado a categorias não muito diversificadas, mas a contemplar, no limite individual, o tema a ser comentado. Se a leitura sempre foi amiga, a resultar recensão ou interpretação do que foi apreendido, se a viagem é estímulo e fascínio, se o cotidiano – com todas as possibilidades boas e más – pertence aos passos que impulsionam e aos olhos que contemplam, seria, todavia, a “música – minha antiga companheira desde os ouvidos da infância”, no dizer do notável poeta português José Gomes Ferreira, a constância sem a menor intenção de desvio.
O fluir dos textos sem represamento dá-se em prazo certo. A gestação pode durar e durar. Temas são como a natureza. Sabemos que as estações existem, mas ignoramos qual a vestimenta precisa que elas devem exibir no quesito intensidade. Um tema que me leva à reflexão mais ampla vai sendo moldado através das semanas. Repentinamente, uma ideia complementa o raciocínio. Incorporo-a ao post e este continuará em processo de maturação. Outros, mais leves ou mais espontâneos, surgem inesperadamente ou durante os treinos solitários para as corridas. No caso, diante do computador, as ideias descem para a ponta dos dedos, e em poucos minutos o texto nasce. Mistérios do pensar.
Fábio, meu vizinho, questiona-me a respeito da ininterrupção desde Março de 2007. “Haveria compulsão”? Respondo-lhe que o escrever semanalmente, sem quaisquer pressões, é ato de respiração. E de fervor. Se um tema me interessa, continuei, naturalmente tem guarida, sendo apenas uma possibilidade de post. Quantos não são aqueles outros “enredos” que afloram ao pensar durante os sete dias? Os que podem ser convertidos permanecem no baú mental, já assinalado em posts anteriores. O desfilar dos textos não seria, em parte, a transmissão ao leitor do longo caminhar? Ao reler escritos do início dos blogs, senti-os como instrumentos da coerência e da transformação. “Todo mundo é composto de mudança”, já dizia o vate maior da língua portuguesa. E ela existe a partir dos impactos que sofremos durante a jornada. “Diário”?… insiste Fábio. Não há um só dia em que deixe de escrever algo para o blog da semana ou algum outro, bem posterior. Que seja um parágrafo apenas de post a ser publicado tanto tempo após. Essa constância estabelece parâmetros contra o esquecimento. Quantos não são os temas que surgem fulgurantes e dos quais não mais nos lembramos horas após? Se o acúmulo do viver tem seus maravilhamentos, tantas vezes coloca uma nuvem que oblitera o escoar do pensamento. Daí ter vários posts sempre em ebulição. A depender do tema, acrescento algo, e meu cotidiano se orienta para o estudo pianístico, para as leituras, para os treinos e para o viver o dia em todas as suas implicações.
Sobre a ilustração há história. Luca Vitali e eu fomos à uma reunião na Casa de Portugal de São Paulo. Durante o lento trajeto em horário de rush, perguntou-me: “Desde quando você usa gravata borboleta?” Curiosa observação. Respondi-lhe que desde a mocidade, mas com diferenças. Existem as fixas, mero ornamento masculino sem anima, pois imutáveis em seu posicionamento. Empalhadas. Aprendi naqueles tempos a fazer o nó e tenho lá meus papillons, que me dão prazer no momento de ajustá-los. Conservo-os. Um nó feito jamais é igual a outro. Estiolou-se o uso dessas gravatas, mas permaneço fiel aos meus hábitos. Luca sorriu, sem mais. Durante a conversa, surgiu o tema dos 100.000 acessos que se aproximavam. Enviou-me o desenho que ilustra o post.
Chegar aos 100.000 acessos causa-me um “santo orgulho”, parafraseando o que pensava D. Henrique Golland Trindade, ilustre prelado. Sinto-me livre ao colocar o que penso, espécie de erupção do de profundis, a guardar contudo certos cuidados.
Continuemos nessa cumplicidade. Terei imenso gosto em receber comunicação do leitor que acessar o nº 100.000. O e-mail encontra-se no contact, último item do menu do site www.joseeduardomartins.com .
É você, generoso leitor, a salvaguarda que me leva a prosseguir. Os posts fluirão. Teremos muitos outros encontros. Bem Haja !!!

On the eve of reaching 100.000 visitors to my blog, I reflect on how good it is to write with freedom, on the pleasure of posting an entry every week – a way to ponder upon life – on my love of music, a subject always present, and on how proud I am for garning such an extensive following without any advertising.

“Subsídios para uma Revisão Musicológica em Villa-Lobos”

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“Eu não tenho tempo para fazer revisão,
tenho muitas ideias para colocar no papel…”

Villa-Lobos (frase recolhida pelo violonista Turíbio Santos)

O gênio nunca erra; as pessoas comuns são quem,
às vezes, têm dificuldade em compreendê-lo.
E o editor facilita essa tarefa,
traduzindo, em caligrafia legível e fiel,
os “palimpsestos” deixados pelo artista criador e que,
depois de corretamente editados,
serão divulgados pelos intérpretes de hoje.

Ricardo Tacuchian

A noção do erro sempre despertou a curiosidade em todas as áreas do conhecimento. Equívocos, falhas, distrações, cansaço, quiçá esgotamentos físico e mental perpetuam-se entre aqueles que criam. Frequentam sub-repticiamente o universo misterioso das ideias, incorporando-se a elas. No ato insondável da criação, o deslize ocorre sem ser notado pelo autor. Pode o erro até ser intencional, como o fio preto que atravessa determinados tapetes persas de extraordinária feitura, a demonstrar que, ao percorrer a obra de arte, mais fica evidente que a perfeição só existiria em Alá.
Na área musical, o erro, a ter tantos sinônimos, perpassa em menor ou maior quantidade as composições. Todos os autores cometeram lapsos ou senões. Se pensarmos em Mozart, que escrevia como respirava, impossível a não detectação de pequenos enganos. Debussy, possivelmente o primeiro compositor a tudo assinalar nos campos da agógica, articulação e dinâmica, visando a interpretação a mais adequada, cometeu seus mínimos equívocos. É humano e esses descuidos devem ser entendidos como irrelevantes no todo. O trabalho mais recente sobre cópias de manuscritos autógrafos para piano do notável compositor português Fernando Lopes-Graça, levou-me a constatar pequenas incorreções, mormente mercê da intrincada mudança de compassos proposta pelo autor e de uma escrita extremamente densa em segmentos precisos. Minimiza a criação? Rigorosamente não. O revisor tem que estar atento e corrigir, sem nada alterar. Se pensarmos na composição interpretada, não há uma só gravação musical “humana” em que mínimos ou não tão mínimos equívocos existam. É só seguir pormenorizadamente uma partitura para verificar essas falhas ou enganos, que tantas vezes se confundem com o próprio ato da interpretação. Valores e tantos outros sinais propostos pelo compositor podem, em determinado momento, não ter a resolução adequada. Entender-se-ia como falta grave? Melhor seria compreender essas “distrações” interpretativas como a fazer parte de respirações diferenciadas. E, felizmente, essa é a salvaguarda do interpretar. Contudo, há extremos nefastos, e esses são detectáveis. Cai-se nesses casos na sombria irresponsabilidade, que sequer merece um pormenor.
Roberto Duarte é pesquisador de mérito. Um de nossos mais importantes maestros, tem como qualidades irretocáveis a grande competência musical e a contenção dos gestos. Debruçou-se, como uma de suas missões de vida, sobre a obra de Villa-Lobos, gravando no leste europeu, com qualidade insofismável, CDs referenciais contendo segmento considerável de suas composições orquestrais. O aprofundamento levou-o a apreender a intimidade da escrita de Villa-Lobos, mormente quando surgiu a possibilidade de edição de partituras de nosso grande compositor. Relação amorosa com a obra de Villa-Lobos e com o ato da criação envolto em névoas, mistério insondável que exala segredos possíveis de serem desvelados.
A leitura de Villa-Lobos errou? – Subsídios para uma revisão musicológica em Villa-Lobos (São Paulo, Algol, 2009), apenas ratifica posicionamento que defendo desde sempre, ou seja, livro sobre música tem de ser escrito por músico competente. Mencionei recentemente que as estantes de nossas livrarias comerciais e bancas de jornais estão inundadas por livros e artigos escritos por amadores, que jamais poderiam responder a um questionamento concernente à intrincada criação musical. O leigo, cada vez mais acentuadamente, mergulha nessa literatura, compilação maquilada extraída de livros outros e, pior, com o acréscimo emanado do livre arbítrio. No caso, pai de todos os malefícios.
Primeiramente tem-se de considerar a seriedade do Maestro Duarte. Suas revisões traduzem aspecto fulcral de sua personalidade. “Revisar não é alterar a ideia do compositor, não é achar que deva ser desta ou daquela maneira”, escreve. Continua: “Revisar é estudar a fundo não só a partitura mas o conjunto da obra do compositor. É limpar aqueles pequenos, porém incômodos lapsos, com o único objectivo de fornecer aos intérpretes e, finalmente, ao público, partituras dignas da grandeza do compositor”. E Roberto Duarte desvenda, sugere teorias quanto ao ato de compor, apresenta provas insofismáveis que o credenciam como pioneiro em uma vertente analítica a ser considerada.
O respeitado regente, ao mencionar que o autor não é o melhor revisor de sua obra, faz-me lembrar o nosso compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), que, ao escrever a Furio Franceschini, notável organista que estava a revisar a Sonata para órgão do criador de Il Neige !, afirmou igualmente que o pior revisor é o autor e, ele, Oswald, o pior deles. Seria possível entender essas distrações de Villa-Lobos pois, de acordo com suas próprias palavras transcritas por Duarte: “Eu confesso que não me deixo dominar pela meticulosidade. Quando estou trabalhando não me importo que crianças entrem pela casa, liguem o rádio, cantem ou dancem…” Questão de estilo.
Seleciona seis enganos mais comumente presentes na obra orquestral de Villa-Lobos “ ‘erro’ de ritmo; ‘erro’ de nota; ausência de clave; ausência de nome de instrumento; ausência de instrumento(s) nas mudanças de página; problemas de orquestração”. Como modelo, Duarte utilizou-se de obra referencial para orquestra de Villa-Lobos, A Floresta do Amazonas (1957-1958). Disseca esses “deslizes”, que não agem no todo da criação. A minimizar o fato, enumera os milhares de sinais em uma obra, que se expandem da notação às indicações relacionadas aos intentos quanto à interpretação. O número ínfimo de “erros” ou enganos viria corroborar a irrelevância.
O autor considera fundamental o conhecimento das técnicas de um compositor, a fim de que a revisão tenha embasamento sólido: “Villa-Lobos utilizou várias técnicas, desde as escalas tonais tradicionais até uma espécie de atonalismo a seu modo, passando pelas escalas modais, algumas escalas exóticas, escalas por tons e utilizando fartamente os acordes de sétima e nona além dos encadeamentos não ortodoxos. Passeou, não com muita frequência, pelo bi e pelo politonalismo e empregou acordes feitos por superposição de intervalos determinados, principalmente os de quarta e de quinta”.
A criatividade de Villa-Lobos teria sido ilimitada. Roberto Duarte menciona a utilização daquilo que o compositor denominaria “a linha das montanhas”, sistema sui generis empregado pelo compositor na criação de melodias, mormente na obra orquestral. Através de foto de uma montanha, gráficos em escala milimetrada, folha quadriculada e pantógrafo, Villa-Lobos determinava contornos melódicos. Dir-se-ia, uma analogia musical com os picos das montanhas. Roberto Duarte pormenoriza-se igualmente no inusitado instrumental empregado por Villa-Lobos: viololinofone, solovox, tambu-tambi e alguns outros. Apresenta as maneiras diferenciadas propostas pelo compositor para se tocar determinado instrumento. Dá ênfase aos cuidados necessários, nesses casos especiais, durante a revisão.

Processo evidenciado por Roberto Duarte da interação piano-orquestra em Villa-Lobos. Clique para ampliar.

Duarte revela ter sido o piano uma fonte inesgotável para as criações orquestrais, e que inúmeras formulações instrumentais surgiram dessas “fôrmas” pré-construídas no piano e transferidas para a orquestra. Sabe-se que quantidade expressiva de compositores tiveram o piano como laboratório primeiro para a destilação de suas ideias. O autor analisa e vai às profundezas da criação ao elaborar inúmeras ilustrações, onde ficaria evidente o comprometimento de Villa-Lobos com essa passagem do teclado à grande orquestra.
Modestamente, Roberto Duarte, cônscio da imensidão que representa o criador das Bachianas, entende que o trabalho de décadas não está terminado. Há muito por fazer. Contudo, Villa-Lobos Errou? passa doravante a ser livro referencial para todo estudioso que busca apreender parcela da genialidade do grande compositor brasileiro, um dos maiores do século XX em termos mundiais. Um extraordinário e original contributo ao desvelamento do ato de compor em Villa-Lobos. A edição trilíngue e muitíssimo bem cuidada, ricamente ilustrada, enriquece a bibliografia villalobiana. Livro a merecer todos os louvores.

An appreciation of the book Was Villa-Lobos Wrong?, written by the accomplished conductor and musicologist Roberto Duarte, who dedicated part of his life to studying, editing and promoting Villa-Lobos’ works. It is thus with authority that Roberto Duarte analyzes the composer’s creative process, proposing new ways to approach the great composer’s scores. A tribute to Villa-Lobos and, at the same time, a guide for conductors, interpreters and researchers in the future.