Enfrentar Instrumento Desconhecido

 Foto Elson Otake. Clique para ampliar.

Contra um piano difícil, não adianta lutar,
pois ele sempre sairá vitorioso.

Yara Bernette
(frase colhida por JEM,
durante conversa amistosa em Belém do Pará)

O promissor intérprete que motivou o post Carta a um Jovem Pianista – A Qualidade como Destino (13/02/10) tornou a escrever-me, questionando-me sobre um tema que aflige basicamente a todos os pianistas que se apresentam em determinadas cidades onde o instrumento não oferece condições ideais. Em termos de Brasil, essa é uma triste realidade, mormente se considerarmos os impostos abusivos que incidem sobre a importação de instrumentos. Quando um piano de concerto novo chega ao Brasil, todos os que pertencem ao métier ficam a saber. Isso não é bom, pois retrata a excepcionalidade e não aquilo que deveria ser rotina. Sob aspecto outro, dos poucos que aqui chegam, alguns ainda não estão devidamente “amaciados” e isso pode provocar dissabores. Apesar dos esforços ainda não atingimos o nível de excelência na fabricação de pianos no Brasil. Estou a me lembrar que, nos meus 16 anos, fui indicado por meu professor José Kliass para “amaciar” um piano novíssimo que a Sra. Luba Klabin recebera da Steinway & Sons de Hamburgo. Estudava das 10 às 13 horas todas as quartas-feiras e no fim do mês recebia das mãos do mordomo meus “honorários”. Morava essa Senhora ligada à música erudita em São Paulo, na imensa casa que deu lugar à construção futura do MuBE na Av. Europa.
O jovem talentoso – não o conheço pessoalmente – escreve a respeito da preparação para uma apresentação: “ No ensaio tentei de todas as formas tocar com o toque de Mozart normal, mas as notas falhavam muito, então tive que pressionar muito sobre cada nota. Não tive outra escolha senão abrir mão parcialmente da delicadeza do toque natural de Mozart, infelizmente”. Narra a experiência durante o concerto: “O toque não estava dentro do estilo de Mozart porque fui literalmente obrigado a tocar muito sólido (tratava-se de um piano zero km duríssimo – o mais duro que já toquei na vida).” E conclui “Realmente precisamos de pianos melhores no Brasil, não é verdade”???
Vários são os problemas relacionados ao piano em nosso país. Independentemente da dificuldade quanto à importação de número maior de instrumentos novos, mercê dos escorchantes impostos, o material de reposição, a sofrer taxações igualmente altíssimas, é pouco procurado pela grande maioria de alunos, amadores e mesmo profissionais. Nossos afinadores, alguns competentes, buscam soluções as mais variadas, quiçá criativas, e atendem dentro do possível.
O piano, sendo o mais abrangente dos instrumentos, impõe uma série de obstáculos aos intérpretes. Fiquemos restritos à problemática brasileira. Quantas são as cidades que têm pianos realmente bons? Poucas. Nas urbes maiores há instrumentos de qualidade, mas em que quantidade? Se levantamento fosse feito, chegaríamos a cifras constrangedoras. Qualquer comparação com países outros que cultuam a música de concerto, clássica ou erudita como continuidade de cultura enraizada, é desfavorável ao Brasil. A particularizar o exposto acima, quando uma Universidade recebe alguns instrumentos, festeja-se. Ao receber um piano denominado de “cauda inteira”, determinada sociedade de concertos organiza inclusive série de recitais para celebrar o feito. A esporadicidade desses acontecimentos faria supor que vivemos melhores dias, mas, infelizmente, tem-se a “aparência” da verdade. Não só existem bons pianos em centros grandes ou pequenos do Exterior, como periodicamente são eles trocados por outros em melhores condições, sendo que muitos instrumentos “descartados” estarão a servir outras instituições de ensino menos aquinhoadas.
A escassez leva fatalmente à manutenção – ou à falta dela – dos pianos existentes no país. O mesmo se dá com os carros, pois quão mais velhos, mais visitam as oficinas. Independentemente do número cada vez menor de jovens que sonham um dia tornar-se recitalistas ou concertistas e que se dedicam com afinco ao estudo de piano, o desestímulo diante de instrumentos velhos ou sem manutenção é fato a ser registrado.

Há teclados bem duros. Foto Elson Otake. Clique para ampliar.

Se pensada for a relação de outros músicos que transportam seus instrumentos, no caso daqueles de corda, madeira ou metal, há como acréscimo a proximidade. O contato direto, aconchegado, proporciona uma relação íntima que pode, se talento e dedicação existirem, resultar num belo amálgama. Quanto ao piano, o instrumentista tem a relação afetiva com a sua arte, com o som e com o repertório. O teclado está distante das cordas, e o intimismo é criado em outro universo de proximidade. O instrumento de convívio, aquele doméstico, que recebe horas de dedicação, não será o das apresentações. Uma primeira separação se faz. Em outro contexto, a surpresa é o fato constante quando das performances. Sabe-se onde haverá o concerto ou recital, nunca se sabe qual a empatia que haverá com o instrumento a ser desvendado. Se afinidade houver, tem-se o maravilhamento; caso contrário, um “combate” permanente. Notável pianista belga disse-me certa vez que deparar-se com pianos de certas salas de concerto é como desafiar um touro miúra. Ou entramos na arena e o enfrentamos, ou desistimos.
A possibilidade de um entendimento só pode concretizar-se se, acima de todas as dificuldades, o intérprete assumir a sua relação com a música como uma missão. Enfrentará os seus miúras durante a trajetória e saberá combatê-los. Se vence ou não, vai depender inclusive do estado bom ou mau do piano. Não poucas vezes será subjugado pelo instrumento. É o tributo a pagar. Longe estamos do pianista legendário que fazia transportar seu próprio piano para as salas de concerto. Guiomar Novaes o fez inúmeras vezes, Vladimir Horowitz, sempre, e outros tantos também. Mas os tempos do tapete vermelho a recepcionar a lenda viajante passou. O Japão recebeu Marguerite Long e, em outra oportunidade, Alfred Cortot, dois nomes referenciais do piano daquela maneira. Família Imperial a recepcionar artistas. Foi ofertada a Cortot, como presente do Imperador, uma ilha, Cortoshima. Outros tempos, rigorosamente impossíveis nos dias atuais. Em aeroporto da Europa vi, ainda este ano, um dos maiores instrumentistas da atualidade a carregar suas malas e pegar o autocar, como um cidadão absolutamente comum. Situação impensável naqueles tempos. Enfrentam-se malas e, por vezes, teclados desiguais ou duros. Faz parte da opção de vida. O importante é jamais tergiversarmos com a qualidade. Só ela importa. A gravação em países conceituados nessa atividade possibilita a escolha certa do instrumento. Já na sala de concerto, a depender do local, deparar-se com o piano ideal é apenas esperança. Talvez seja pedir muito.

A young pianist wrote to me pointing out the poor conditions of a piano he had been offered for a recital. This is a routine problem faced by pianists in Brazilian concert halls: inferior or worn-out pianos, out of tune, in need of good repairs. This widespread neglect of many instruments is mostly due to the astronomic price of a new one. Few organizations can afford to buy a new concert grand and keep it in top playing conditions. When a performer sits down at the piano in front of an audience, the unexpected is the rule and he can only pray for a reliable instrument.