“Subsídios para uma Revisão Musicológica em Villa-Lobos”
“Eu não tenho tempo para fazer revisão,
tenho muitas ideias para colocar no papel…”
Villa-Lobos (frase recolhida pelo violonista Turíbio Santos)
O gênio nunca erra; as pessoas comuns são quem,
às vezes, têm dificuldade em compreendê-lo.
E o editor facilita essa tarefa,
traduzindo, em caligrafia legível e fiel,
os “palimpsestos” deixados pelo artista criador e que,
depois de corretamente editados,
serão divulgados pelos intérpretes de hoje.
Ricardo Tacuchian
A noção do erro sempre despertou a curiosidade em todas as áreas do conhecimento. Equívocos, falhas, distrações, cansaço, quiçá esgotamentos físico e mental perpetuam-se entre aqueles que criam. Frequentam sub-repticiamente o universo misterioso das ideias, incorporando-se a elas. No ato insondável da criação, o deslize ocorre sem ser notado pelo autor. Pode o erro até ser intencional, como o fio preto que atravessa determinados tapetes persas de extraordinária feitura, a demonstrar que, ao percorrer a obra de arte, mais fica evidente que a perfeição só existiria em Alá.
Na área musical, o erro, a ter tantos sinônimos, perpassa em menor ou maior quantidade as composições. Todos os autores cometeram lapsos ou senões. Se pensarmos em Mozart, que escrevia como respirava, impossível a não detectação de pequenos enganos. Debussy, possivelmente o primeiro compositor a tudo assinalar nos campos da agógica, articulação e dinâmica, visando a interpretação a mais adequada, cometeu seus mínimos equívocos. É humano e esses descuidos devem ser entendidos como irrelevantes no todo. O trabalho mais recente sobre cópias de manuscritos autógrafos para piano do notável compositor português Fernando Lopes-Graça, levou-me a constatar pequenas incorreções, mormente mercê da intrincada mudança de compassos proposta pelo autor e de uma escrita extremamente densa em segmentos precisos. Minimiza a criação? Rigorosamente não. O revisor tem que estar atento e corrigir, sem nada alterar. Se pensarmos na composição interpretada, não há uma só gravação musical “humana” em que mínimos ou não tão mínimos equívocos existam. É só seguir pormenorizadamente uma partitura para verificar essas falhas ou enganos, que tantas vezes se confundem com o próprio ato da interpretação. Valores e tantos outros sinais propostos pelo compositor podem, em determinado momento, não ter a resolução adequada. Entender-se-ia como falta grave? Melhor seria compreender essas “distrações” interpretativas como a fazer parte de respirações diferenciadas. E, felizmente, essa é a salvaguarda do interpretar. Contudo, há extremos nefastos, e esses são detectáveis. Cai-se nesses casos na sombria irresponsabilidade, que sequer merece um pormenor.
Roberto Duarte é pesquisador de mérito. Um de nossos mais importantes maestros, tem como qualidades irretocáveis a grande competência musical e a contenção dos gestos. Debruçou-se, como uma de suas missões de vida, sobre a obra de Villa-Lobos, gravando no leste europeu, com qualidade insofismável, CDs referenciais contendo segmento considerável de suas composições orquestrais. O aprofundamento levou-o a apreender a intimidade da escrita de Villa-Lobos, mormente quando surgiu a possibilidade de edição de partituras de nosso grande compositor. Relação amorosa com a obra de Villa-Lobos e com o ato da criação envolto em névoas, mistério insondável que exala segredos possíveis de serem desvelados.
A leitura de Villa-Lobos errou? – Subsídios para uma revisão musicológica em Villa-Lobos (São Paulo, Algol, 2009), apenas ratifica posicionamento que defendo desde sempre, ou seja, livro sobre música tem de ser escrito por músico competente. Mencionei recentemente que as estantes de nossas livrarias comerciais e bancas de jornais estão inundadas por livros e artigos escritos por amadores, que jamais poderiam responder a um questionamento concernente à intrincada criação musical. O leigo, cada vez mais acentuadamente, mergulha nessa literatura, compilação maquilada extraída de livros outros e, pior, com o acréscimo emanado do livre arbítrio. No caso, pai de todos os malefícios.
Primeiramente tem-se de considerar a seriedade do Maestro Duarte. Suas revisões traduzem aspecto fulcral de sua personalidade. “Revisar não é alterar a ideia do compositor, não é achar que deva ser desta ou daquela maneira”, escreve. Continua: “Revisar é estudar a fundo não só a partitura mas o conjunto da obra do compositor. É limpar aqueles pequenos, porém incômodos lapsos, com o único objectivo de fornecer aos intérpretes e, finalmente, ao público, partituras dignas da grandeza do compositor”. E Roberto Duarte desvenda, sugere teorias quanto ao ato de compor, apresenta provas insofismáveis que o credenciam como pioneiro em uma vertente analítica a ser considerada.
O respeitado regente, ao mencionar que o autor não é o melhor revisor de sua obra, faz-me lembrar o nosso compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), que, ao escrever a Furio Franceschini, notável organista que estava a revisar a Sonata para órgão do criador de Il Neige !, afirmou igualmente que o pior revisor é o autor e, ele, Oswald, o pior deles. Seria possível entender essas distrações de Villa-Lobos pois, de acordo com suas próprias palavras transcritas por Duarte: “Eu confesso que não me deixo dominar pela meticulosidade. Quando estou trabalhando não me importo que crianças entrem pela casa, liguem o rádio, cantem ou dancem…” Questão de estilo.
Seleciona seis enganos mais comumente presentes na obra orquestral de Villa-Lobos “ ‘erro’ de ritmo; ‘erro’ de nota; ausência de clave; ausência de nome de instrumento; ausência de instrumento(s) nas mudanças de página; problemas de orquestração”. Como modelo, Duarte utilizou-se de obra referencial para orquestra de Villa-Lobos, A Floresta do Amazonas (1957-1958). Disseca esses “deslizes”, que não agem no todo da criação. A minimizar o fato, enumera os milhares de sinais em uma obra, que se expandem da notação às indicações relacionadas aos intentos quanto à interpretação. O número ínfimo de “erros” ou enganos viria corroborar a irrelevância.
O autor considera fundamental o conhecimento das técnicas de um compositor, a fim de que a revisão tenha embasamento sólido: “Villa-Lobos utilizou várias técnicas, desde as escalas tonais tradicionais até uma espécie de atonalismo a seu modo, passando pelas escalas modais, algumas escalas exóticas, escalas por tons e utilizando fartamente os acordes de sétima e nona além dos encadeamentos não ortodoxos. Passeou, não com muita frequência, pelo bi e pelo politonalismo e empregou acordes feitos por superposição de intervalos determinados, principalmente os de quarta e de quinta”.
A criatividade de Villa-Lobos teria sido ilimitada. Roberto Duarte menciona a utilização daquilo que o compositor denominaria “a linha das montanhas”, sistema sui generis empregado pelo compositor na criação de melodias, mormente na obra orquestral. Através de foto de uma montanha, gráficos em escala milimetrada, folha quadriculada e pantógrafo, Villa-Lobos determinava contornos melódicos. Dir-se-ia, uma analogia musical com os picos das montanhas. Roberto Duarte pormenoriza-se igualmente no inusitado instrumental empregado por Villa-Lobos: viololinofone, solovox, tambu-tambi e alguns outros. Apresenta as maneiras diferenciadas propostas pelo compositor para se tocar determinado instrumento. Dá ênfase aos cuidados necessários, nesses casos especiais, durante a revisão.
Duarte revela ter sido o piano uma fonte inesgotável para as criações orquestrais, e que inúmeras formulações instrumentais surgiram dessas “fôrmas” pré-construídas no piano e transferidas para a orquestra. Sabe-se que quantidade expressiva de compositores tiveram o piano como laboratório primeiro para a destilação de suas ideias. O autor analisa e vai às profundezas da criação ao elaborar inúmeras ilustrações, onde ficaria evidente o comprometimento de Villa-Lobos com essa passagem do teclado à grande orquestra.
Modestamente, Roberto Duarte, cônscio da imensidão que representa o criador das Bachianas, entende que o trabalho de décadas não está terminado. Há muito por fazer. Contudo, Villa-Lobos Errou? passa doravante a ser livro referencial para todo estudioso que busca apreender parcela da genialidade do grande compositor brasileiro, um dos maiores do século XX em termos mundiais. Um extraordinário e original contributo ao desvelamento do ato de compor em Villa-Lobos. A edição trilíngue e muitíssimo bem cuidada, ricamente ilustrada, enriquece a bibliografia villalobiana. Livro a merecer todos os louvores.
An appreciation of the book Was Villa-Lobos Wrong?, written by the accomplished conductor and musicologist Roberto Duarte, who dedicated part of his life to studying, editing and promoting Villa-Lobos’ works. It is thus with authority that Roberto Duarte analyzes the composer’s creative process, proposing new ways to approach the great composer’s scores. A tribute to Villa-Lobos and, at the same time, a guide for conductors, interpreters and researchers in the future.