Navegando Posts publicados em novembro, 2010

Travessia, Sereias e Amarras

Crayon de Carlos Oswald (1882-1971). Clique para ampliar.

A vida é como uma vela
que vai ardendo,
quando chega ao fim
lança uma chama
mais forte antes de
se extinguir.

José Saramago

Muito me reprovo e o aprovo tanto
quanto outrora aprovei o que hoje me reprovo.

Agostinho da Silva

A cerimônia que marcou minha admissão como acadêmico honorário na Academia Brasileira de Música, no Rio de Janeiro, teve sensível saudação ao ingressante nessa categoria especial nos quadros da ABM proferida pelo ilustre acadêmico efetivo e notável compositor Ricardo Tacuchian. Seu texto me emocionou muito ao considerar a Arte como sendo uma metáfora da Vida. O tempo nos torna mais sensíveis e a comoção advém como inevitável.
Sinto-me impedido de transcrever o texto na íntegra, não pela qualidade impecável do escrito, mas por não me pensar merecedor. Ao lê-lo, Tacuchian mencionou uma frase que me levaria às reflexões. Não as externei em minha imediata palestra, pela simples razão de que elucubrações já estavam a se formar em minha mente.
A certa altura do texto, Tacuchian comenta: “José Eduardo Martins abriu mão dos holofotes dos repertórios standard para a luz de vela da música brasileira. E quanta luz ele nos revelou com sua corajosa opção !” Desde os anos 1980 tenho-me referido aos holofotes como um dos maiores males para o auto-aprimoramento. Os holofotes inebriam tantas vezes aquele que se submete à sua intensidade. Tratar-se-ia de um processo de submissão. Diria que metaforicamente, têm eles a força de sedução das Sereias, essas figuras marinhas de alta periculosidade e perdidas no tempo. Contra os holofotes deve-se, porém, tomar as precauções outrora asseguradas por Ulisses na Odisséia de Homero, que, aconselhado pela feiticeira Circe, faz-se amarrar ao mastro de seu barco e atravessa o mar povoado pelas Sereias, sem deixar, contudo, de ouvir o canto sedutor. Não cede ao encantamento, mas desfruta o prazer de ouvir. Para o intérprete, esse posicionamento poderia representar a autorepressão: amarrar-se para não sofrer a sedução. Todavia, Ulisses não deixou de ouvir as melodias do encantamento. Seria uma questão de vontade para que um outro tipo de sedução nessa metáfora não conduzisse o intérprete a uma “morte” das intenções. Os holofotes existem, não se pode evitar. Ulisses ouviu o mavioso canto, diferentemente dos remadores do barco que tiveram ou ouvidos tampados com cera para não se jogarem ao mar, seduzidos. Fugir dos holofotes seria escapar da realidade. Submeter-se à sedução constituiria o perigo. Ponderaria, o amarrar-se unicamente visando a essência essencial da música, e não à virtuosidade pela virtuosidade, poderá evitar o entorpecimento mental. E o amarrar com os ouvidos atentos faria o músico realizar a travessia sem traumas, mas enriquecido. Ficariam ao largo, bem distante do barco, a vaidade – uma doença, segundo Saint-Exupéry -, a mesmice repertorial ad aeternum, o gestual acrobático para a platéia e, como tentáculo voraz, a composição entendida como inferior ao ato da execução. O intérprete a vencer as águas povoadas pelas mortíferas Sereias.
Sob outra égide, os holofotes têm ímpar idiossincrasia pelo inusitado. Procuram mesmo desviar o seu foco. São antagônicos. O Sistema abomina o repertório pouco frequentado. Seria este, para o status quo, o anátema de suas pretensões constituídas de agentes, mídia, público conduzido e, a finalizar, o lucro como desiderato maior. Holofote é sinônimo de concessão. Palavras irmanadas que ad nauseam provocam a repetição repertorial como fator único de sobrevivência do Sistema.
A vela tem infindáveis interpretações desde a antiguidade. Chama que mantém a vida e que, pouco a pouco, ao se extinguir, leva à morte; agrupadas, estimulam a devoção coletiva; contempladas, conduziram a pena de compositores, poetas, escritores, teólogos, pensadores…; acesas na união dos amantes, alimentaram a flama da paixão; oscilando nos berços, despertaram a esperança. A aparência de fragilidade da tênue iluminação foi responsável pelo caminhar pensante das civilizações. A luz de uma vela tem como sinônimos meditação, concentração, humildade. Não se coaduna com a superficialidade ou com o desamor. Pressupõe, em suas oscilações motivadas por mínima respiração, a possibilidade da serenidade que virá a seguir, quando a chama retornar ao impassível. A luz de uma vela tem propriedades que sempre entendi surdamente musicais. A chama dança, transfigura-se em suas contorções; enriquece o prisma das cores ao modificar, como em um caleidoscópio, as suas intenções de luz; dimensiona os contrastes da sombra; proporciona-nos a metáfora da dinâmica sem som, pois suas intensidades variam sempre.
Estava ainda a refletir sobre esse binômio antagônico quando encontro meu dileto amigo e colega uspiano Gildo Magalhães, Professor Associado da FFLCH da Universidade de São Paulo e um dos mais requisitados mestres da Academia para participações em congressos e colóquios no Exterior. Retornara de Genebra há dias, onde esteve a coordenar grupo reunindo dezenas de representantes de vários países, que lá estavam a tratar propostas para minimizar dificuldades na vida de deficientes físicos. Mente tranquila, mas ágil e brilhante. Fomos tomar um curto. Cientista, sabe apreender conteúdos técnicos. Disse-lhe que estava a pensar sobre a dialética holofote-vela. Fiquei surpreso. Gildo começou a expor o multum in minimo que a chama de uma vela contém. Disse-lhe que anotaria suas precisões na matéria. Sorriu e continuou: “… a chama da vela transforma o ar em plasma, no qual os elementos constituintes se separam. Isto provoca a dinâmica da forma, das cores e do próprio brilho. O plasma é o quarto estado da matéria, além dos sólidos, líquidos e gases. Só há esse fenômeno visível a olho nu no Sol, pois ele tem toda a dinâmica – manchas solares, protuberâncias representadas pelas explosões. O Sol com o fenômeno da larga irradiação é responsável pelas perturbações na ionosfera terrestre.” Entusiasmava-me o relato espontâneo de Gildo, que continua: “A vela quando queima é também um microscópico Sol, com propriedades tão interessantes que levaram o inglês Michael Faraday (1791-1867) a escrever um dos maiores clássicos da história da ciência, ‘A história química de uma vela’, sem conhecer ainda a teoria moderna do plasma”. Nossa conversa se prolongou e, ao despedir-me do amigo, senti-me enriquecido.
Ricardo Tacuchian proporcionou-me encontrar uma chave que leva ao enigma pessoal. Vela. Enquanto a chama estiver acesa, continuarei a buscar o inusitado e a difundi-lo, repetindo-o nessa tentativa de mostrar a qualidade de autores que permanecem injustamente pouco frequentados, do passado e do presente. A própria vela está a queimar há muitas décadas. Sua chama ainda tem intensidade.
Jean Christophe, músico e personagem central da saga que marcaria gerações de leitores através desse romance notável de Romain Rolland, já a morrer diria sobre a música: “Eu nunca te traí, você jamais me traiu, nós estamos seguros um do outro. Partiremos juntos, minha amiga. Fique comigo, até o fim !” A minha senda continuará a ser trilhada. A musa permanece ao meu lado, pois a chama ainda ilumina. Que assim seja até o fim !

The speech made by the composer Ricardo Tacuchian at the cerimony of my nomination as an honorary member of the Brazilian Academy of Music led me to reflections upon the differences between the spotlight and the candle light and other thoughts.

Surpresa a Ativar a Memória

Apartamento onde morei entre os anos 1958 (final)-1962. Paris, 16, Rue Jacques Bingen, XVIIème. Foto: JEM. Clique para ampliar.

J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans.
Charles Baudelaire

Comentara em blog recente as opiniões do compositor francês François Servenière a respeito dos impactos que as mãos do pianista podem sofrer com determinadas criações contemporâneas. Ao acessar o site do músico, deparei-me com composições que percorrem o gênero erudito em várias categorias, assim também como um outro patamar mais popular. Foi quando me surpreendeu, entre suas criações, a canção La Rue de Lévis. Fiquei admirado, pois quando estudei em Paris, do final de 1958 a meados de 1962, morei em uma rua a não mais de 200 metros da Rue de Lévis. Trata-se da pequena Rue Jacques Bingen, quase na esquina da Rue Légendre, esta a margear uma diminuta praça irregular de onde nasce uma das extremidades da Rue de Lévis. Percorrendo esta última, igualmente de pequena extensão, mas muito movimentada durante o dia, chega-se à Villiers, onde comércio diferenciado, vias mais largas, cafés, restaurantes e o Metrô caracterizam outra paisagem. Costumava caminhar pela tranquila Rue de Tocqueville, que cruzava a Rue Légendre e me deixava mais próximo de uma das entradas do Metrô Villiers. Está-se em pleno XVIIème arrondissement, maneira distinta como os parisienses nomeiam seus muitos bairros, se assim podemos definir.
Foi no andar superior do nº 16 que permaneci durante esse profícuo período. Do térreo, rez-de-chaussée, tinha-se acesso a um portão central, por onde entravam alguns carros e pelo qual havia interligação de dois prédios, o da Jacques Bingen e o da Rue Légendre, 17bis. Os dois edifícios abrigavam a sede social da firma de essências para perfumaria Roure Bertrand & Justin Dupont, da qual meu pai foi representante no Brasil durante décadas. O andar inteiro era uma espécie de almoxarifado e apenas eu a ocupá-lo. Daí o motivo de lá morar, livre de quaisquer distrações noturnas que caracterizam determinados bairros da bela Paris, pois, após o expediente, todo o entorno mantinha-se bem calmo. Essa paz noturna favorecia meus estudos pianísticos e teóricos, que se estendiam, por vezes, até alta madrugada sem perturbar ninguém, mesmo ao tocar obras de alta intensidade, pois os bons concierges que tomavam conta do prédio moravam no térreo e apreciavam, felizmente, o meu “trabalho artesanal” escutado bem tenuemente, devido à distância. Eu que sofria com as badaladas dos sinos da Église Saint-Charles de Monceau que, a cada meia hora, mesmo noite adentro, não deixavam os cidadãos em paz. Àquela altura havia uma bolinhas de algodão com parafina, denominadas boules quièz, que, colocadas na parte interna da orelha, atenuavam bem os sons.
As lembranças da Rue de Lévis são muitas. Havia e ainda existe uma intensa feira livre durante o dia, o conhecido marché de la Rue de Lévis. Barracas organizadas eram montadas e, na extremidade que dava para Villiers, outras, com roupas a preços populares, eram instaladas. Bem parecidas com as nossas feiras livres (ver Feira Livre – Uma Festa para os Sentidos, 08/08/08). Lá comprava frutas, tomates e queijos, estes difíceis de serem escolhidos, graças à enorme variedade existente em França. Nos primeiros tempos em Paris estranhava o fato de não se poder escolher as frutas, verduras legumes e queijos, como em nossas feiras livres. Era quase uma heresia não deixar essa tarefa para o proprietário da barraca. Os pães encontrava-os numa padaria na praça citada. Na Rue de Lévis também procurava semanalmente carne de cavalo, recomendada pelo médico, mercê de minha baixa pressão e de estudos que preenchiam oito a dez horas de meu tempo. Saliente-se que havia em prédios vizinhos o açougue (boucherie) de carne de boi ou vaca com a cabeça do animal à porta e o de cavalo, igualmente com a cabeça do equino a indicar a precisão da escolha. No inverno colocava a carne de cavalo no lado externo da janela e, no verão, na geladeira dos concierges. Seguindo as recomendações, comia-a crua pela manhã com um pouco de açúcar. Acostumei-me e minha saúde apresentou doravante uma melhora sensível.

Rue Jacques Bingen, hoje. Créditos: Google Maps. Clique para ampliar.

Uma das lembranças que ficou gravada foi a dos aromas que pairavam na Rue de Lévis. A mistura de todos eles dava uma sensação de vida e de pulsação. Essa vibração fazia com que, de domingo à tarde até terça-feira às primeiras horas, pairasse uma certo vazio nessa rua tão especial, pois a feira livre não funcionava. Os pregões, as disputas nas vendas das mercadorias tornavam tudo um encantamento.

Créditos: Google Maps. Clique para ampliar.

Meus amigos da chamada Rive Gauche, onde a inteligentzia se reunia em bares, cafés e restaurantes, frequentavam pequenos cinemas que projetavam filmes da Nouvelle Vague, de Buñuel, de Ingmar Bergman. Por vezes os acompanhava. Contudo, às quartas-feiras meu programa era solitário. Após horas e mais horas de estudo, assistia a dois filmes – era mais barato – em um cinema da Rue de Lévis que hoje, ao que me disseram, deu lugar ao Monoprix, uma das muitas lojas de uma rede do país. Era uma categoria de filme francês, geralmente abominado pela inteligentzia, mas que eu adorava. Comédias com Bourvil, Louis de Funès e outros atores, assim como os de ação com Jean Marais, faroestes americanos – adoro ainda hoje um bom filme do gênero – e, após as duas sessões, regressava para meus estudos. Se comédia, o bom concierge da firma Roure, Robert Orambourg, acompanhava-me e dávamos boas risadas. Rotina que ficou na memória. Quando juntos, finda a sessão íamos tomar uma blonde bem gelada em uma brasserie perto do metrô Villiers. Certa vez interromperam a sessão, pois uma bomba estourara nas imediações. Àquela altura houve um certo número delas em Paris devido aos problemas entre França e Argélia. Ouvi muitas outras durante o período parisiense, mormente nas noites de verão, quando estudava com a janela aberta.

Rue de Lévis. Créditos: Tripadvisor.com . Clique para ampliar.

Rue de Levis

Foi pois com alegria que vi no site de François Servenière a sua canção Rue de Lévis , que pode ser ouvida ao ser clicado o link acima. Jamais poderia imaginar a rua lembrada em música. Fala um pouco do cotidiano dessa via. Ao escrever a Servenière, soube que o excelente músico lá viveu durante anos. Motivo para felizes recordações.

Visiting the French composer François Servenière’s website I saw he wrote a song entitled “La Rue de Lévis”. It was a surprise because I could never have imagined the street celebrated in music (later I knew the composer lived on this street for some time). It reminded me of my years in Paris, living very close to Rue de Lévis, with its street market, fruit and vegetable stands, boucheries, bakeries. It was where I used to buy clothes, bread, cheese, tomatoes and horse meat. A feast of smells, colors, vendors yelling and people chatting with each other that can hardly be forgotten. On Wednesdays I went to the movies to watch comedies and American Westerns. The cinema does not exist anymore, replaced by a Monoprix that sells pretty much everything. Pleasant memories of days gone by…
Click on the link to listen to “La Rue de Lévis” sang by the composer himself, François Servenière.

Acadêmico Honorário

 Clique para ampliar.

Mais custa quebrar rocha do que escavar a terra;
mais sólido, porém, o edifício que nela se firmou.
A grandeza da obra é quase sempre devida
à dificuldade que se encontra nos meios a empregar.

Agostinho da Silva

O nosso gênio maior, Heitor Villa-Lobos, fundou, aos 14 de Julho de 1945, a Academia Brasileira de Música, a seguir as estruturas da Academia Francesa. Seus quarenta Acadêmicos são figuras de relevo em nosso meio musical nas áreas composicional, interpretativa e musicológica.
Reunir-se em torno de uma Academia é prática antiga que remonta, em moldes outros, à Antiga Grécia. Seria, contudo, a partir do século XVI que a Europa viu nascer as Academias constituídas de ilustres personalidades na áreas literária, artística e científica. A Academia Brasileira de Letras foi fundada em 1896 e teve como primeiro Presidente Machado de Assis.
Após várias reestruturações, passou a Academia Brasileira de Música a contar com quarenta membros efetivos. Dos mais de 100 Acadêmicos que por lá passaram, destaquem-se as figuras de compositores extraordinários como Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro, Lorenzo Fernandes; os notáveis membros intérpretes Guiomar Novaes, Magdalena Tagliaferro, Antonieta Rudge, Arnaldo Estrela, Magdalena Lébeis, Iberê Gomes Grosso e musicólogos da estatura de Luiz Heitor Corrêa de Azevedo, Cleofe Person de Mattos, Renato Almeida. Após a gestão do ilustre compositor Ricardo Tacuchian, atualmente preside a instituição o consagrado violonista Turíbio Santos.
Sob outra égide, mormente nessa duas últimas décadas, a Academia Brasileira de Música tem se destacado num profícuo aprofundamento de resgate de nossa memória musical, salientando-se publicação de partituras, edição de CDs contendo o repertório pátrio, organização da respeitada Revista Brasiliana e a realização de concertos e conferências, tendo como fulcro a criação, interpretação e o pensar a música brasileira de várias tendências. A instituição cultural não tem fins lucrativos.
Foi pois com surpresa e alegria que recebi a informação da ABM a respeito do título de Acadêmico Honorário que me seria oferecido. Anteriormente, dois músicos da maior competência haviam recebido a homenagem: Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005) e Gilberto Mendes (1922- ). Na data prevista, de 16 de Novembro apresentarei, palestra – O intérprete frente ao repertório musical brasileiro – hesitação, complacência, vontade - e recital com obras de Henrique Oswald, Francisco Mignone, Gilberto Mendes, H.J.Koellreutter, Jorge Peixinho (Villalbarosa em homenagem a Villa-Lobos) e Ricardo Tacuchian. Brevemente o texto da palestra estará inserido no item Essays de meu site.
Ao mencionar como subtítulo da palestra um tripé fundamental, hesitação-complacência-vontade, responsável em parte pela inserção de nossa rica produção composicional no cenário nacional e do Exterior, fixo-me preferencialmente na criação pianística. Mas, sob outro contexto, os termos podem servir a todos gêneros musicais. Seria constrangedor afirmar que basicamente nosso repertório não é conhecido, mas é triste realidade. A ponta de um iceberg faz ver o pouco que é frequentado por nossos intérpretes. Sim, há inúmeros pianistas que cultuam, aprofundam-se na busca incessante de nossas riquezas, mas a grande maioria contenta-se com a ponta citada. E a visão dessa extremidade privilegia umas poucas obras de Villa-Lobos – sempre as mesmas –, outras poucas de Camargo Guarnieri – alguns Ponteios, as Danças Brasileiras – e outras mais de Francisco Mignone em suas deliciosas Valsas de Esquina. A opera omnia de Villa-Lobos é frequentada por alguns pianistas mantendo-se Camargo Guarnieri e Francisco Mignone numa constrangedora penumbra, apesar do valor incontestável desses dois monumentos de nossa história e da dedicação de pianistas respeitáveis. O que se ouve, quando se ouve, do repertório pátrio é praticamente estruturado em obras marcadas e reiteradas. Dir-se-ia que a mesmice quanto ao “grande repertório” internacional se repete no que se refere à nossa produção. Intérpretes corajosos tem buscado o resgate da criação de nosso passado – aquela não visitada – de Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Lorenzo Fernandez, Frutuoso Viana, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Cláudio Santoro e, sob outra égide, Ernesto Nazareth, mas são exceções. Há inclusive executantes que heroicamente têm como único desiderato em suas trajetórias a interpretação de nosso preciosíssimo acervo. É fato, mas a mídia procura ignorá-los. E todo o mal está feito. Mencionar alguns desses intérpretes fatalmente faria com que me olvidasse de outros, daí generalizar desempenhos por vezes descomunais. Apreendi a lição quando indaguei ao compositor e bom amigo Sérgio Vasconcellos Corrêa – acadêmico efetivo da ABM -, a respeito de seu nome não figurar numa lista onde constavam vários autores mais hodiernos. Sorridente, respondeu-me: “eu integrava o final da frase … outros”. Se verificado for o conjunto da composição mais contemporânea, escrito nestes últimos 50 anos, tem-se verdadeira desolação no quesito apresentação pública. O ouvinte poderá ler na programação a inserção de uma ou outra obra, mas a submersão se torna quase que imediata. Tantas substanciais produções atingem uma ou poucas mais apresentações e deslizam para as profundezas.
Sob pressão do Sistema, a necessidade de sempre se ouvir as mesmas composições de autores selecionados, o adolescente e o jovem têm na hesitação fator fulcral. Essa atinge o repertório pátrio, que não faz parte do sempre denominado “grande repertório”. A hesitação é fruto do desconhecimento. A repetição ad nauseam das mesmas obras faz com que esse mesmo jovem não hesite ao escolher Mozart, Beethoven, Chopin ou Liszt, mas, frise-se, sempre a insistir no que todos tocam. É até humano, se considerado for o quesito comparatividade entre intérpretes. Procedimento, infelizmente, solidamente enraizado. Da hesitação advém a complacência, um estágio até certo ponto mais grave do que a hesitação. É quando o intérprete ainda em formação estuda por que tem de estudar nossa música, e o professor, benevolente, escolhe aquilo que ele tem de ensinar, o repetitivo.
Somente com vontade será possível quebrar a enferrujada corrente da escuta repetitiva. Contudo, haverá necessidade de força hercúlea para rompê-la. A vontade será o estímulo a levar o intérprete a se dirigir ao nosso romantismo tão negligenciado, buscar no prolongado movimento nacionalista obras de mérito ainda não visitadas e a ter a coragem de enfrentar o repertório brasileiro mais hodierno, mesmo que ouvidos de um público não acostumado mostrem-se obstruídos numa primeira fase, resultado da inércia do Sistema.
A longa convivência com tantos compositores de mérito deu-me a certeza de que há que se incentivar ainda bem mais acentuadamente a cultura da escuta do inusitado, não só do passado, em estado de hibernação em nossos arquivos, mas também da música qualitativa que está sempre a jorrar das mentes de nossos compositores. Torna-se necessária a permanência de criações extraordinárias no repertório efetivo, destinadas que serão ao esquecimento, após a “aparência” da perenidade representada pela “primeira audição”. Se o intérprete não abandonar essa sedimentação na complacência, a criação estará em seus dedos apenas superficialmente, sem ocupar os espaços da mente e do coração. E todo o mal para a nossa preservação musical estará feita.
Todos nós temos nossos limites. Dentro de suas fronteiras é sempre possível vislumbrar outros horizontes. O fato de ter percorrido substanciosa fatia do repertório internacional super divulgado até os anos 1970 fez-me modestamente entender que não apenas o inusitado do Exterior, mas o que permanecia em nosso solo mereceria um olhar diferenciado. Notáveis intérpretes tinham percorrido o caminho e outros já estavam a trilhar essa senda. Serviram-me de exemplo. Novas composições pátrias do passado ou as que me chegam às mãos ainda com a tinta fresca de compositores de mérito são lidas e executadas com aquilo que denomino relação amorosa. Seria possível acreditar que a honra de me tornar acadêmico honorário junto à tradicional Academia Brasileira de Música tenha advindo desse trabalho diuturno de um artesão da música que, aos 72 anos, ainda vislumbra novos sons a conquistar e que serão desvelados nessa estrada sem volta.
Se o piano representa meu pulsar, o texto reflexivo dele faz parte. Amálgama. Se livros já publiquei, foi contudo o blog, mormente após minha aposentadoria, que passou a integrar parte de meu pensar. E que assim continue. Em tantos textos a música brasileira lá está, a ser integrante de meus afetos. Seria possível entender que os escritos tenham corroborado a generosa indicação de meu nome para a homenagem em apreço.
Do programa do recital abreviado, devido a extensão da palestra, diria que apenas o Estudo (1897) de Henrique Oswald (1852-1931) não teve a intensa ligação compositor-intérprete. Qual não é o prazer de um músico ao olhar para trás e verificar que o redescobrimento de Henrique Oswald por ele empreendido a partir de 1978, mercê do apoio incondicional da neta do compositor Maria Isabel Oswald Monteiro, tenha gerado após minha tese de doutorado junto ao Departamento de História Social da FFLCH da Universidade de São Paulo em 1988 mais de dez teses no Brasil e no Exterior? As gravações de LPs no Brasil e CDs na Bélgica com obras de Oswald nestes últimos trinta anos apenas ratificaram a ligação que tem de ser amorosa com a obra.

Estudo nº 1. Hans-Joachim Koellreutter. Clique para ampliar.

Quanto às outras composições, diria que, ao encomendar ou convidar um compositor para uma viagem temática, o intérprete torna-se cúmplice, integra a criação, está nas entrelinhas pautadas. Isso ocorreu desde sempre na história da música. Estou a me lembrar de Gheorghi Arnaoudov, excelente compositor da Bulgária, que após meu recital em Sófia disse-me que escreveria uma obra especialmente para as minhas mãos. Meses depois recebia um magnífíco e dificílimo Estudo Et Iterum Venturus (1997) onde o “arsenal” técnico-pianístico e uma apreensão do universo timbrístico lá estavam depositados.
Gilberto Mendes, compositor, pensador e fraternal amigo, abdicara de seu passado para piano conservado em um baú. Insisti. Abriu-o e de um pacote amarelecido pelo tempo encontrei um tesouro. Hesitou em dizer que “aquilo” não tinha importância. Sentei-me ao piano e li Sonatina à la Mozart de 1951. No final sorriu, a dizer: “não é que ela á bonita”. Meses após, apresentava em recital esse maravilhoso passado constituído por cerca de 20 peças. A Sonatina gravaria na Bulgária. Editada na Bélgica, já está disseminada em recitais e CDs pelo mundo, dedilhada por outros pianistas. Solicitei ao saudoso e dileto amigo, o insigne compositor Francisco Mignone (1897-1986), uma composição para tocar em terras lusíadas numa apresentação que privilegiaria Portugal-Brasil. Escreveu Adamastor, O Gigante das Tempestades (1979), inspirado em Camões. Recebi com emoção o manuscrito autógrafo e a peça, como anteriormente acontecera com Il Neige de Nouveau. Fazem parte de meus afetos. No programa do recital na ABM, Estudo para José Eduardo I (1991), do tríptico de H.J.Koellreutter, o primeiro músico a receber o título de Acadêmico Honorário da Academia. Compositor e dedicatário fazem parte da criação, pois o autor indica e o intérprete participa do ato, ao ter a sua própria visão de uma proposta configurada. Como escreve Koellreutter: “O Estudo para José Eduardo é uma obra aberta, um ensaio (essay), um experimento artístico destinado à verificação da validade de uma grande parte de conceitos sugeridos pela nova imagem do mundo, na área da estética musical”. Seguindo rigorosamente o esquema montado por Koellreuter, jamais a obra tem a mesma estrutura em meus dedos, pois temos, paradoxalmente, uma criação que pode se alterar com o passar do tempo, a não ser que esteja notada. Essa “mutação” permite-me realizar outros caminhos na complexa proposta. Se estruturada por outro pianista, certamente o Estudo de Koellreutter será rigorosamente diferente. A peça de outro saudoso amigo, o notável compositor português Jorge Peixinho (1940-1995), foi composta para o caderno que coordenei como tributo ao centenário de nascimento de Villa-Lobos, ocorrido em 1987, publicado pela Universidade de São Paulo. Dez autores do Brasil e do Exterior participaram. Villalbarosa é a homenagem de Peixinho. Por fim, o Estudo Avenida Paulista, em que o notável Ricardo Tacuchian apreende a pulsação sem limites da megalópole que é São Paulo. É possível ouvir o cosmopolitismo paulistano nessa visão também estressante da cidade. A magia de Avenida Paulista vem, entre outras virtudes, dessa captação. No YouTube, o prezado leitor poderá ouvi-la, com imagens da famosa avenida.
Roland Barthes, ao ingressar no célebre Collège de France, disse que não sentia honra, tampouco orgulho, mas prazer. Não seria esse o verdadeiro termo, pois há muito de lúdico nesses momentos que estou a viver, somando-se à palavra emoção ? Bem haja !!!

The Brazilian Academy of Music was founded in 1945 by the composer Heitor Villa-Lobos and its 40 members are outstanding figures in the Brazilian music scene. It was thus an honor to me to know that I will be nominated an Honorary Member, a title only conferred twice before. On 16 November in a ceremony at the Academy auditorium in Rio de Janeiro I will give a brief oral presentation (The Interpreter and the Brazilian Repertoire – Hesitation, Complacency, Will) followed by a recital with works by Henrique Oswald, Gilberto Mendes, Francisco Mignone, H.J. Koellreutter, Jorge Peixinho and Ricardo Tacuchian.