Travessia, Sereias e Amarras

Crayon de Carlos Oswald (1882-1971). Clique para ampliar.

A vida é como uma vela
que vai ardendo,
quando chega ao fim
lança uma chama
mais forte antes de
se extinguir.

José Saramago

Muito me reprovo e o aprovo tanto
quanto outrora aprovei o que hoje me reprovo.

Agostinho da Silva

A cerimônia que marcou minha admissão como acadêmico honorário na Academia Brasileira de Música, no Rio de Janeiro, teve sensível saudação ao ingressante nessa categoria especial nos quadros da ABM proferida pelo ilustre acadêmico efetivo e notável compositor Ricardo Tacuchian. Seu texto me emocionou muito ao considerar a Arte como sendo uma metáfora da Vida. O tempo nos torna mais sensíveis e a comoção advém como inevitável.
Sinto-me impedido de transcrever o texto na íntegra, não pela qualidade impecável do escrito, mas por não me pensar merecedor. Ao lê-lo, Tacuchian mencionou uma frase que me levaria às reflexões. Não as externei em minha imediata palestra, pela simples razão de que elucubrações já estavam a se formar em minha mente.
A certa altura do texto, Tacuchian comenta: “José Eduardo Martins abriu mão dos holofotes dos repertórios standard para a luz de vela da música brasileira. E quanta luz ele nos revelou com sua corajosa opção !” Desde os anos 1980 tenho-me referido aos holofotes como um dos maiores males para o auto-aprimoramento. Os holofotes inebriam tantas vezes aquele que se submete à sua intensidade. Tratar-se-ia de um processo de submissão. Diria que metaforicamente, têm eles a força de sedução das Sereias, essas figuras marinhas de alta periculosidade e perdidas no tempo. Contra os holofotes deve-se, porém, tomar as precauções outrora asseguradas por Ulisses na Odisséia de Homero, que, aconselhado pela feiticeira Circe, faz-se amarrar ao mastro de seu barco e atravessa o mar povoado pelas Sereias, sem deixar, contudo, de ouvir o canto sedutor. Não cede ao encantamento, mas desfruta o prazer de ouvir. Para o intérprete, esse posicionamento poderia representar a autorepressão: amarrar-se para não sofrer a sedução. Todavia, Ulisses não deixou de ouvir as melodias do encantamento. Seria uma questão de vontade para que um outro tipo de sedução nessa metáfora não conduzisse o intérprete a uma “morte” das intenções. Os holofotes existem, não se pode evitar. Ulisses ouviu o mavioso canto, diferentemente dos remadores do barco que tiveram ou ouvidos tampados com cera para não se jogarem ao mar, seduzidos. Fugir dos holofotes seria escapar da realidade. Submeter-se à sedução constituiria o perigo. Ponderaria, o amarrar-se unicamente visando a essência essencial da música, e não à virtuosidade pela virtuosidade, poderá evitar o entorpecimento mental. E o amarrar com os ouvidos atentos faria o músico realizar a travessia sem traumas, mas enriquecido. Ficariam ao largo, bem distante do barco, a vaidade – uma doença, segundo Saint-Exupéry -, a mesmice repertorial ad aeternum, o gestual acrobático para a platéia e, como tentáculo voraz, a composição entendida como inferior ao ato da execução. O intérprete a vencer as águas povoadas pelas mortíferas Sereias.
Sob outra égide, os holofotes têm ímpar idiossincrasia pelo inusitado. Procuram mesmo desviar o seu foco. São antagônicos. O Sistema abomina o repertório pouco frequentado. Seria este, para o status quo, o anátema de suas pretensões constituídas de agentes, mídia, público conduzido e, a finalizar, o lucro como desiderato maior. Holofote é sinônimo de concessão. Palavras irmanadas que ad nauseam provocam a repetição repertorial como fator único de sobrevivência do Sistema.
A vela tem infindáveis interpretações desde a antiguidade. Chama que mantém a vida e que, pouco a pouco, ao se extinguir, leva à morte; agrupadas, estimulam a devoção coletiva; contempladas, conduziram a pena de compositores, poetas, escritores, teólogos, pensadores…; acesas na união dos amantes, alimentaram a flama da paixão; oscilando nos berços, despertaram a esperança. A aparência de fragilidade da tênue iluminação foi responsável pelo caminhar pensante das civilizações. A luz de uma vela tem como sinônimos meditação, concentração, humildade. Não se coaduna com a superficialidade ou com o desamor. Pressupõe, em suas oscilações motivadas por mínima respiração, a possibilidade da serenidade que virá a seguir, quando a chama retornar ao impassível. A luz de uma vela tem propriedades que sempre entendi surdamente musicais. A chama dança, transfigura-se em suas contorções; enriquece o prisma das cores ao modificar, como em um caleidoscópio, as suas intenções de luz; dimensiona os contrastes da sombra; proporciona-nos a metáfora da dinâmica sem som, pois suas intensidades variam sempre.
Estava ainda a refletir sobre esse binômio antagônico quando encontro meu dileto amigo e colega uspiano Gildo Magalhães, Professor Associado da FFLCH da Universidade de São Paulo e um dos mais requisitados mestres da Academia para participações em congressos e colóquios no Exterior. Retornara de Genebra há dias, onde esteve a coordenar grupo reunindo dezenas de representantes de vários países, que lá estavam a tratar propostas para minimizar dificuldades na vida de deficientes físicos. Mente tranquila, mas ágil e brilhante. Fomos tomar um curto. Cientista, sabe apreender conteúdos técnicos. Disse-lhe que estava a pensar sobre a dialética holofote-vela. Fiquei surpreso. Gildo começou a expor o multum in minimo que a chama de uma vela contém. Disse-lhe que anotaria suas precisões na matéria. Sorriu e continuou: “… a chama da vela transforma o ar em plasma, no qual os elementos constituintes se separam. Isto provoca a dinâmica da forma, das cores e do próprio brilho. O plasma é o quarto estado da matéria, além dos sólidos, líquidos e gases. Só há esse fenômeno visível a olho nu no Sol, pois ele tem toda a dinâmica – manchas solares, protuberâncias representadas pelas explosões. O Sol com o fenômeno da larga irradiação é responsável pelas perturbações na ionosfera terrestre.” Entusiasmava-me o relato espontâneo de Gildo, que continua: “A vela quando queima é também um microscópico Sol, com propriedades tão interessantes que levaram o inglês Michael Faraday (1791-1867) a escrever um dos maiores clássicos da história da ciência, ‘A história química de uma vela’, sem conhecer ainda a teoria moderna do plasma”. Nossa conversa se prolongou e, ao despedir-me do amigo, senti-me enriquecido.
Ricardo Tacuchian proporcionou-me encontrar uma chave que leva ao enigma pessoal. Vela. Enquanto a chama estiver acesa, continuarei a buscar o inusitado e a difundi-lo, repetindo-o nessa tentativa de mostrar a qualidade de autores que permanecem injustamente pouco frequentados, do passado e do presente. A própria vela está a queimar há muitas décadas. Sua chama ainda tem intensidade.
Jean Christophe, músico e personagem central da saga que marcaria gerações de leitores através desse romance notável de Romain Rolland, já a morrer diria sobre a música: “Eu nunca te traí, você jamais me traiu, nós estamos seguros um do outro. Partiremos juntos, minha amiga. Fique comigo, até o fim !” A minha senda continuará a ser trilhada. A musa permanece ao meu lado, pois a chama ainda ilumina. Que assim seja até o fim !

The speech made by the composer Ricardo Tacuchian at the cerimony of my nomination as an honorary member of the Brazilian Academy of Music led me to reflections upon the differences between the spotlight and the candle light and other thoughts.