Surpresa a Ativar a Memória

Apartamento onde morei entre os anos 1958 (final)-1962. Paris, 16, Rue Jacques Bingen, XVIIème. Foto: JEM. Clique para ampliar.

J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans.
Charles Baudelaire

Comentara em blog recente as opiniões do compositor francês François Servenière a respeito dos impactos que as mãos do pianista podem sofrer com determinadas criações contemporâneas. Ao acessar o site do músico, deparei-me com composições que percorrem o gênero erudito em várias categorias, assim também como um outro patamar mais popular. Foi quando me surpreendeu, entre suas criações, a canção La Rue de Lévis. Fiquei admirado, pois quando estudei em Paris, do final de 1958 a meados de 1962, morei em uma rua a não mais de 200 metros da Rue de Lévis. Trata-se da pequena Rue Jacques Bingen, quase na esquina da Rue Légendre, esta a margear uma diminuta praça irregular de onde nasce uma das extremidades da Rue de Lévis. Percorrendo esta última, igualmente de pequena extensão, mas muito movimentada durante o dia, chega-se à Villiers, onde comércio diferenciado, vias mais largas, cafés, restaurantes e o Metrô caracterizam outra paisagem. Costumava caminhar pela tranquila Rue de Tocqueville, que cruzava a Rue Légendre e me deixava mais próximo de uma das entradas do Metrô Villiers. Está-se em pleno XVIIème arrondissement, maneira distinta como os parisienses nomeiam seus muitos bairros, se assim podemos definir.
Foi no andar superior do nº 16 que permaneci durante esse profícuo período. Do térreo, rez-de-chaussée, tinha-se acesso a um portão central, por onde entravam alguns carros e pelo qual havia interligação de dois prédios, o da Jacques Bingen e o da Rue Légendre, 17bis. Os dois edifícios abrigavam a sede social da firma de essências para perfumaria Roure Bertrand & Justin Dupont, da qual meu pai foi representante no Brasil durante décadas. O andar inteiro era uma espécie de almoxarifado e apenas eu a ocupá-lo. Daí o motivo de lá morar, livre de quaisquer distrações noturnas que caracterizam determinados bairros da bela Paris, pois, após o expediente, todo o entorno mantinha-se bem calmo. Essa paz noturna favorecia meus estudos pianísticos e teóricos, que se estendiam, por vezes, até alta madrugada sem perturbar ninguém, mesmo ao tocar obras de alta intensidade, pois os bons concierges que tomavam conta do prédio moravam no térreo e apreciavam, felizmente, o meu “trabalho artesanal” escutado bem tenuemente, devido à distância. Eu que sofria com as badaladas dos sinos da Église Saint-Charles de Monceau que, a cada meia hora, mesmo noite adentro, não deixavam os cidadãos em paz. Àquela altura havia uma bolinhas de algodão com parafina, denominadas boules quièz, que, colocadas na parte interna da orelha, atenuavam bem os sons.
As lembranças da Rue de Lévis são muitas. Havia e ainda existe uma intensa feira livre durante o dia, o conhecido marché de la Rue de Lévis. Barracas organizadas eram montadas e, na extremidade que dava para Villiers, outras, com roupas a preços populares, eram instaladas. Bem parecidas com as nossas feiras livres (ver Feira Livre – Uma Festa para os Sentidos, 08/08/08). Lá comprava frutas, tomates e queijos, estes difíceis de serem escolhidos, graças à enorme variedade existente em França. Nos primeiros tempos em Paris estranhava o fato de não se poder escolher as frutas, verduras legumes e queijos, como em nossas feiras livres. Era quase uma heresia não deixar essa tarefa para o proprietário da barraca. Os pães encontrava-os numa padaria na praça citada. Na Rue de Lévis também procurava semanalmente carne de cavalo, recomendada pelo médico, mercê de minha baixa pressão e de estudos que preenchiam oito a dez horas de meu tempo. Saliente-se que havia em prédios vizinhos o açougue (boucherie) de carne de boi ou vaca com a cabeça do animal à porta e o de cavalo, igualmente com a cabeça do equino a indicar a precisão da escolha. No inverno colocava a carne de cavalo no lado externo da janela e, no verão, na geladeira dos concierges. Seguindo as recomendações, comia-a crua pela manhã com um pouco de açúcar. Acostumei-me e minha saúde apresentou doravante uma melhora sensível.

Rue Jacques Bingen, hoje. Créditos: Google Maps. Clique para ampliar.

Uma das lembranças que ficou gravada foi a dos aromas que pairavam na Rue de Lévis. A mistura de todos eles dava uma sensação de vida e de pulsação. Essa vibração fazia com que, de domingo à tarde até terça-feira às primeiras horas, pairasse uma certo vazio nessa rua tão especial, pois a feira livre não funcionava. Os pregões, as disputas nas vendas das mercadorias tornavam tudo um encantamento.

Créditos: Google Maps. Clique para ampliar.

Meus amigos da chamada Rive Gauche, onde a inteligentzia se reunia em bares, cafés e restaurantes, frequentavam pequenos cinemas que projetavam filmes da Nouvelle Vague, de Buñuel, de Ingmar Bergman. Por vezes os acompanhava. Contudo, às quartas-feiras meu programa era solitário. Após horas e mais horas de estudo, assistia a dois filmes – era mais barato – em um cinema da Rue de Lévis que hoje, ao que me disseram, deu lugar ao Monoprix, uma das muitas lojas de uma rede do país. Era uma categoria de filme francês, geralmente abominado pela inteligentzia, mas que eu adorava. Comédias com Bourvil, Louis de Funès e outros atores, assim como os de ação com Jean Marais, faroestes americanos – adoro ainda hoje um bom filme do gênero – e, após as duas sessões, regressava para meus estudos. Se comédia, o bom concierge da firma Roure, Robert Orambourg, acompanhava-me e dávamos boas risadas. Rotina que ficou na memória. Quando juntos, finda a sessão íamos tomar uma blonde bem gelada em uma brasserie perto do metrô Villiers. Certa vez interromperam a sessão, pois uma bomba estourara nas imediações. Àquela altura houve um certo número delas em Paris devido aos problemas entre França e Argélia. Ouvi muitas outras durante o período parisiense, mormente nas noites de verão, quando estudava com a janela aberta.

Rue de Lévis. Créditos: Tripadvisor.com . Clique para ampliar.

Rue de Levis

Foi pois com alegria que vi no site de François Servenière a sua canção Rue de Lévis , que pode ser ouvida ao ser clicado o link acima. Jamais poderia imaginar a rua lembrada em música. Fala um pouco do cotidiano dessa via. Ao escrever a Servenière, soube que o excelente músico lá viveu durante anos. Motivo para felizes recordações.

Visiting the French composer François Servenière’s website I saw he wrote a song entitled “La Rue de Lévis”. It was a surprise because I could never have imagined the street celebrated in music (later I knew the composer lived on this street for some time). It reminded me of my years in Paris, living very close to Rue de Lévis, with its street market, fruit and vegetable stands, boucheries, bakeries. It was where I used to buy clothes, bread, cheese, tomatoes and horse meat. A feast of smells, colors, vendors yelling and people chatting with each other that can hardly be forgotten. On Wednesdays I went to the movies to watch comedies and American Westerns. The cinema does not exist anymore, replaced by a Monoprix that sells pretty much everything. Pleasant memories of days gone by…
Click on the link to listen to “La Rue de Lévis” sang by the composer himself, François Servenière.