Quando o Flash Leva à Reflexão

Só veneramos uma justiça que eleve o homem
e seja a condensação de interesse benévolo
que os outros homens têm por ele;
só é justa a lei que lhe dá a possibilidade
de se tornar melhor.

Eu não voto por rótulos. (…)
Eu não quero saber das campanhas eleitorais para nada.
Eu quero saber das ideias que as pessoas têm
e da maneira como depois as vão defender e praticar.
Agostinho da Silva

Está-se acostumado a entender a história do planeta em eras que pouco dizem ao leigo, pois tão imemoriais que tornam difícil qualquer cálculo aproximativo. Mas o homem adora a numérica abstrata, essa que sabemos existir, sem contudo ter qualquer noção da dimensão do tempo. Milhões de anos da história do planeta, suas etapas, cisões dos continentes, enrugamento da cordilheira himalaia explicadas e aceitas, pois cá vivemos a acreditar que as cicatrizes rochosas em camadas definidas contam ou sugerem hipóteses as mais variadas. Difícil a década em que tal teoria não é desmentida e a divulgada e “assimilada” passa a ser endeusada. É a história do homem na tentativa de compreender mistérios e a causar confusão na mente do leigo. Mas a ciência tem de continuar e a nós cabe dar crédito aos cientistas.

Foi com curiosidade, seguida de reflexão que li na Revista Nanico– Homeopatia Literária -,(número 22),  editada pelo dileto amigo Cláudio Giordano, intrigante texto poético de Ruy Proença, paulista e autor de vários livros de poesia. Giordano reuniu no Nanico poemas históricos até aos nossos dias. Não há uma preocupação temática, apenas o prazer de levar ao leitor o pluralismo literário.

Chamou-me a atenção o encurtamento até bíblico da biografia da terra, que teria apenas meio século na nova dimensão do tempo. Didaticamente, o poeta leva o leitor a um impasse final. Ruy Proença consentiu que seu poema fosse colocado por inteiro. Ei-lo:   

Anotações para uma biografia da Terra

A Terra tem 46 anos.
Até os 7 anos de idade
dela nada se sabe.
Até os 42
sabe-se muito pouco.
Os dinossauros só apareceram
quando a Terra já tinha
45 anos completos.
Os mamíferos entraram em cena
nos últimos 8 meses.
Exatamente
na metade da última semana
alguns macacos
parecidos com o homem
evoluíram para um homem
parecido com o macaco.
Três dias antes de completar 46 anos
a Terra sofreu
a última glaciação completa.
O homem moderno surgiu
nas últimas 4 horas.
Há apenas 1 hora
descobriu a agricultura
e se fixou à terra
como sedentário.
A revolução industrial
ocorreu no último minuto.
Nos 60 segundos seguintes
o homem conseguiu
transformar um paraíso
num lixo.

Nessa prosa poética, Ruy Proença consegue a sintetização do tempo ao propor  a sua  compressão extrema a levar à total deterioração da Terra do homem, mercê de sua ação destrutiva. Aceitamos passivamente o lixo. Apenas vozes esparsas, que clamam sabendo que não há a comunhão do povo para atemorizar os ímpios.

Fixemo-nos em nosso país. Walter Benjamin (1892-1940), filósofo e sociólogo judeu-alemão, escreveu que aquilo que acontece próximo de nós causa-nos maior impressão do que uma catástrofe alhures. O lixo a que se refere Ruy Proença pode ter infindas interpretações, todas voltadas… ao lixo. Tema contaminante. Detritos de toda ordem espalhados por rios, mares e solo, impunidade, insegurança, educação super sucateada, saúde aos frangalhos, saneamento básico como vergonhosa chaga  e, a imperar, soberana, a corrupção, que tem a ampará-la, sem julgamento possível em nossas terras tropicais, a mentira.

Os salários de nossos “Poderes” não são aviltantes – pois acumulados com benefícios extras e mordomias – se comparados aos dos países mais desenvolvidos? A mídia alardeia: como pode um policial ou bombeiro receber menos de R$ 1.000 e com a vida sempre em risco, se opiparamente o poder legislativo se auto valorizou ao aumentar em mais de 60% seus salários no início deste ano? E o efeito cascata que dele adveio? Não é um absurdo ético-moral? No extraordinário depoimento, aos 17 de Maio, a jovem professora Amanda Gurgel, explanaria na “Audiência Pública sobre o cenário atual da Educação no Rio Grande do Norte” temas cruciais da Educação no Brasil, destacando com ênfase os três dígitos de seu salário, 9-3-0, a dizer de uma responsabilidade que o Estado lhe impõe, sobrando-lhe a prerrogativa de, com um quadro negro e um giz, ter de salvar a nação (vide YouTube). Rubor dos políticos? Não.  

Lixo denunciado por Proença, apelo que não será ouvido, pois nem os poderosos do setor público, tampouco os que estão fora do governo, em mescla total com aqueles, mercê do lobby – essa chaga tão devastadora que infesta os corredores brasilienses e outros mais espalhados nos Poderes do país – ouvem  clamores do povo pacífico. Esse cidadão do bem sabe que invariavelmente, sem quaisquer exceções, aquele a quem lhe são imputadas a suspeita e até provas concretas, dirá não, nada aconteceu, sou vestal.

O cidadão comum assiste pasmo aos noticiários da televisão e, inconformado, vê corredores de hospitais públicos repletos de macas com doentes sem o mínimo atendimento, tantos deles morrendo. Governantes perderam o mínimo de dignidade ao não querer olhar a triste realidade do povo. Qual o habitante das cidades médias e grandes que ousa sair à noite, após determinada hora, para um passeio solitário pelas ruas? Para quem vê anualmente, em Bruxelas ou Gent, meninas voltarem das escolas em bicicletas após às 23h sem preocupações, chega a ser constrangedor, senão humilhante, qualquer comparação. O lixo do extermínio, pois para 137 assassinatos diários no Brasil, 6 ou 7 acontecem anualmente na Bélgica, número considerado abominável para os belgas, em uma população com pouco mais de 10 milhões de habitantes.

Portanto, prezado talentoso poeta Ruy Proença, seu texto está a traduzir, nesse final inesperado, não apenas o lixo, mas a tragédia que ele encerra. Aos seus 60 segundos poderão se somar outros mais. E após? Haveria esperanças? Esperemos que um dia algo extraordinário possa acontecer, certamente não com a maioria de nossos governantes e dirigentes. Talvez, talvez…

The idea for this post came after reading a poem by Ruy Proença, a Brazilian poet, in a booklet of poems published by my friend and editor Cláudio Giordano. The author writes a high-speed biography of Earth, from its beginning to the dawn of modern men only in the last 60”, followed by the consequent metamorphosis of paradise into an island of garbage.