Oxalá Esteja a Acontecer
Il faut avoir vis-à-vis de l’oeuvre que l’on écoute,
que l’on interprète ou que l’on compose,
un respect profond comme devant l’existence même.
Comme si c’était une question de vie ou de mort.
Pierre Boulez
Les instruments, quels qu’ils soient,
ne sont là que pour restituer l’énergie engrangée,
de quelque manière que se soit et la projeter vers l’extérieur,
quel que soit le talent mis en oeuvre. Il n’y a de beauté à mon sens
uniquement quand ce talent s’efface
au profit d’une compréhension intime et d’une expression parfaite de l’univers,
comme si un langage divin passait par l’impétrant qui n’avait qu’à se laisser porter.
François Servenière
Foram inúmeras as vezes em que escrevi sobre a ausência de crítica especializada em música na cidade de São Paulo. Em tempos da Universidade, pleiteei junto a colegas a inclusão de curso específico para crítica de Arte, a partir da premissa que o possível ingressante tivesse o conhecimento básico da área a que se destinasse. No campo da Música, como intérprete, teórico ou até jornalista, a ter como conditio sine qua nom conhecer as estruturas musicais básicas e possuir escuta acurada, únicos caminhos viáveis para uma avaliação crítica a partir do entendimento competente.
Infelizmente os meados do século XX ficaram esquecidos. Período em que a cidade contou com mais de dez críticos de música de concerto, sendo que muitos com currículo de mérito. Entre eles: João Caldeira Filho de “O Estado de São Paulo”, H.J. Koellreutter e L.C. Vinholes do “Diário de São Paulo”, Dinorah de Carvalho do “Diário da Tarde”, Diogo Pachedo de “O Tempo”, Arthur Kauffman da “Folha da Tarde”, Lilly Wolf do “Jornal Alemão”, Cyro Monteiro Brisolla “Correio Paulistano”, Odette de Faria do “Shopping News de São Paulo”. Todos conhecedores das estruturas que regem composição-interpretação. Estiolou-se a crítica musical e o Maestro Júlio Medaglia faz-se exceção no desolador quadro que nos é apresentado. Escrevem, alguns com “verniz” musical ou realmente a desconhecer o que se passa numa partitura, o que invalida conceitos emitidos tanto na apreciação crítica como em artigos versando sobre música.
Estou a me lembrar de personagem que se outorgava o título de “crítico” e que, nos intervalos de recitais ou concertos, buscava auscultar opiniões de músicos. Certa vez emiti meu posicionamento a respeito de uma apresentação de artista estrangeiro. Dias após, assinado e “autenticado”, li com espanto a minha avaliação, que transmitira ao personagem, transcrita na íntegra.
Qual não foi minha surpresa ao ler pela manhã e-mails recebidos durante a noite, um de ex-aluno da Universidade de São Paulo e que, presentemente, tem sido assistido em minha casa. Teceu crítica de meu recital do dia 3 de Junho. Nele busca comentar as obras que foram executadas. Mesmo considerando a natural posição favorável de um jovem que periodicamente tem aconselhamento com o velho professor, assim como uma sua primeira incursão na área da crítica, ainda envolvida em aura romântica, resolvi colocar no post semanal a apreciação de Paulo Marcos Filla, na esperança de que, se espaço encontrar em nossa mídia já rarefeita, tenha ele a possibilidade de exercer, na competência, a rara atividade de crítico musical que conhece Música. Caso não encontre, haverá sempre a internet como atual força maior de divulgação. Mencionaria uma vez mais posição que sempre defendi, a de que minha ação nos tempos da Universidade foi a de formar o músico na acepção e jamais o tecladista em particular. Sem a apreensão humanística, o pianista, mesmo que extraordinário instrumentista, terá lacunas, por vezes, perenes. Pedi consentimento a Paulo Marcos Filla e transcrevo o e-mail completo:
Prezado Prof. Jose Eduardo, bom dia.
Estou-lhe escrevendo porque acredito não ter conseguido, pessoalmente, expressar toda a gratidão pelos momentos sensíveis e pela aula espetacular de interpretação e de vida proporcionados pelo senhor durante o recital de piano do dia 03/06/2011, no Auditório Cantidio de Moura Campos Filho, do Instituto Dante Pazzanese. As suas palavras iniciais foram realmente marcantes, principalmente quando mencionada aquela fase de superação de um problema tão difícil. Naqueles poucos segundos em que o senhor nos explicou a respeito de os médicos terem-lhe dado de seis meses a um ano de vida, apesar de já haver lido sobre o fato nos blogs, confesso ter sido tomado por intensa emoção. De forma involuntária, naquele momento específico, além de presenciar o grande artista no palco dando as boas vindas ao seu público, diversas imagens passaram pela minha memória, acredito que tudo numa fração de segundo: todos aqueles presentes que o senhor nos deu quando da época uspiana: as aulas excelentes sobre literatura e interpretação pianísticas, todos aqueles CDs, os livros, a divulgação de um repertório de altíssima qualidade (tanto brasileiro quanto estrangeiro), mas em grande parte desconhecido, as palavras de respeito e de consideração por todos. Inclusive as aulas de piano que o senhor continua a me proporcionar. Mas, aonde quero chegar? Explico: um ser humano dessa envergadura com uma perspectiva de vida tão curta? Quanto benefício ter-se-ia perdido? Quanto conhecimento e experiência de vida não compartilhados?
A seguir, um breve relato da apresentação:
No que diz respeito à performance pianística, a Ballade, do compositor Claude Debussy, foi simplesmente cativante, tamanha a força de expressão e refinamento sonoro do intérprete. O piano Yamaha, com sonoridade geralmente um pouco metálica em relação ao Steinway de Hamburgo, por exemplo, nas mãos do mestre José Eduardo Martins emitia graves profundos e generosos, médios e agudos brilhantes, mas sempre aveludados. Nas Danses – Sacrée et Profane, também de Debussy, com transcrição de Jacques Durand, evidenciou-se um procedimento que tanto me chama a atenção na performance de José Eduardo: o tratamento “microscópico” da pedalização. Quando do toque de uma única nota do baixo, o pedal direito era acionado com enorme controle, de maneira a fazer o abafador sair parcialmente das cordas. Esse tratamento diferenciado resultou em efeito timbrístico único, uma sonoridade reverberativa, salientando o caráter etéreo do compositor. Puro encantamento.
Na peça seguinte, Nuages Gris, de Franz Liszt, deparamo-nos com uma obra de caráter “despretensioso” em termos de virtuosidade técnica e arrebatamento emotivo. Bem diferente do que estamos acostumados ao apreciar Liszt. Em Nuages Gris, o compositor desbrava, de maneira muito pessoal e introspectiva, um caminho sonoro bastante cromático, com um sentido bem definido rumo ao atonalismo. E a interpretação do pianista José Eduardo foi capaz de expressar perfeitamente as intenções do compositor. Quase sem interrupção, o recital prosseguiu com as Duas Lendas (São Francisco de Assis falando aos pássaros; São Francisco de Paula caminhando sobre as ondas) e Funerais, todas essas obras também do compositor húngaro. Na primeira das Duas Lendas, de sonoridade bem “wagneriana”, o pianista tratou os agudos de maneira a expressarem o conteúdo descritivo dessa peça, fazendo-nos rememorar os agudíssimos das obras mais introspectivas de Richard Strauss, sobretudo quando executadas pela Orquestra Filarmônica de Berlim, sob a regência de Herbert von Karajan. Na segunda das Duas Lendas, a generosidade virtuosística ondulante dos graves foi capaz de expressar a caudalosidade das águas e das ondas a embasarem o caminhar de São Francisco de Paula, cujo fervor foi aqui representado pela bela melodia na região central do teclado. Para encerrar a coletânea de obras de Liszt, Funerais. O toque igualmente generoso dos graves fazia ecoar sinos e ritmos marciais fúnebres e guerreiros por todo o auditório, embasando com firmeza as funções harmônicas características em Liszt nessa monumental obra onde o cromatismo é constante nas várias linhas da partitura. Durante a execução, uma força de expressão única do pianista fez ressoar, em nossa alma, o lirismo das belas melodias, nas baixas e altas intensidades. E, ao encerrar a obra, uma tremenda força de ânimo reproduziu uma poderosíssima avalanche oitavada dos graves, levando o publico a aplaudir de pé.
Na sequência, obras de Scriabin. A Valse op.38 foi substituída pelo Noturno para a mão esquerda. Nesse Noturno, verificamos a propriedade com a qual o pianista explorou a espacialização do teclado do Yamaha de 3/4 de cauda. Fechando os olhos, a sensação era a de que as duas mãos estavam sendo empregadas na execução dessa obra. Para encerrar, Vers la Flamme op.72. Nas palavras bastante oportunas do pianista, se Vers la Flamme tivesse sido composta hoje, ela seria considerada como uma bem sucedida obra modernista. Certamente uma das obras mais difíceis e emblemáticas da literatura pianística.
Aplaudido de pé durante vários minutos, José Eduardo Martins concedeu-nos, como bis, a interpretação de obras curtas (dois “atomics”) de compositor belga e o magnífico Estudo op. 42 n. 5 de Scriabin.
Recital com entrada franca e valor incomensurável.
Paulo Marcos Filla
After my recital at the Dante Pazzaneze concert hall last June 3, I received an e-mail from one of my former students at the university commenting on my performance. Leaving out the enthusiasm of a young student for his old teacher, I transcribe here his message in its entirety, for I believe he has a gift for the job and proves my point that classical music critics should possess musical knowledge – a quality seldom found among those writing reviews and criticisms for the press nowadays.
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