Navegando Posts publicados em agosto, 2011

A Magia da Amizade

La grande objection
que les matérialistes ont toujours faite aux spiritualistes
et qu’ils font encore, mais moins hardiment aujourd’hui,
se résume en ceci: Pas de pensées sans cerveau.
L’âme ou l’esprit est une sécretion de la substance cérébrale;
le cerveau mort, la pensée s’arrête et il ne reste rien.

Je ne suis qu’un instant de Dieu,
mais tout instant est éternel.
Maurice Maeterlinck
(Gent – 1862, Nice – 1949)

As relações humanas são muito complexas, mormente quando envolvem a atividade principal do ser. Quando o músico tem o privilégio de gravar no Exterior, pode ele ser instado a fazê-lo em vários centros do planeta. Estou a me lembrar que, após recital na Rode Pomp em 2006, um agente de gravadora super conhecida mundialmente, durante o jantar no restaurante contíguo à sala de concertos, e que funcionava de quinta à sábado à noite após as récitas, convidou-me para com eles gravar, a dizer que a tiragem seria bem superior à artesanal da Rode Pomp e que a difusão, por consequência, resultaria extraordinária. Perguntei-lhe em que lugar eles gravavam. Respondeu-me que dependia das circunstâncias e que elas poderiam ser realizadas em qualquer parte do mundo. Fiz-lhe uma segunda pergunta, já a saber a resposta, pois conhecia inúmeras gravações do importante selo: “posso escrever o texto do CD”? A resposta foi clara, “não”, pois geralmente nem textos explicativos havia nesses CDs. Para mim, o texto do intérprete que acarinhou um projeto contém algo de etéreo e espiritual, a formar o amálgama com a mensagem sonora. Naquele instante chegava André Posman. Diante do agente, disse ao grande amigo que nossas gravações continuariam ad eternitatem a se processarem na mágica capela Sint-Hilarius, em Mullem, sob a direção de meu querido amigo e engenheiro de som Johan Kennivé. O cidadão ficou um tanto quanto pasmo quando me levantei e dei um afetuoso abraço em André Posman. Se anteriormente gravei CDs na Bulgária e, circunstancialmente, em Portugal, para um projeto preciso e dignificante a envolver o extraordinário compositor Lopes-Graça, é em Sint-Hilarius que meu de profundis aflora e que consigo transmitir minha mensagem musical na atmosfera do inefável. É uma dádiva ter um Grande Mestre como Johan Kennivé, sensível e sereno a captar as reverberações de Sint-Hilarius. O que podem significar a grande divulgação ou aquela palavra tão decantada, “sucesso”, diante daquilo que realmente somos? A “herança musical a ser deixada”, proposta por André Posman, tornar-se-ia o desafio incessante em busca da qualidade ímpar.

A honraria outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, que me foi entregue pelo Sr. Cônsul Geral da Bélgica em São Paulo, Sr. Peter Claes, teve comentários vindos das longínquas terras, que me comoveram sensivelmente. Essas amizades ficaram de tal maneira intensas que seria difícil transmiti-las ao generoso leitor. Três desses amigos que estão presentes no meu cotidiano e que anualmente são motivo de alegria imensa quando chego a Gent, escreveram pequenos textos: Johan Kennivé, André Posman e Tony Herbert. Cada um a mostrar dados que nos uniram indelevelmente. Um quarto depoimento veio de Magnus Bardela, meu ex-aluno na universidade e há tantos anos meu professor absoluto na computação e no apreciar as edições de meus CDs. A ele devo gratidão eterna pela edição de quatro dos meus CDs gravados em Sint-Hilarius quando não tinha as menores condições físicas de fazê-la devido às intensas quimioterapias. Magnus foi impecável, mercê da competência muito elogiada por Johan Kennivé. Da França, François Servenière traça comovente apreciação do relacionamento humano e estabelece bela metáfora. Por fim, Álvaro Guimarães, saudoso amigo, responsável pela minha primeira visita às terras flamengas. Estivesse entre nós, certamente Álvaro teria participado desses momentos que ficarão guardados no coração e na mente (vide Álvaro Guimarães 1956-2009, In Memoriam. 04/07/2009).

“A cada ano em que meu amigo José Eduardo gravava na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, num piano vindo especialmente para suas gravações, os compositores podiam apreciar os sons no pequeno cemitério que circunda o templo. O piano de concerto que ocupava a capela tornava-se o centro de uma religião extraordinária e imaterial. Assim como anualmente temos a Páscoa e o Natal, assim também todo o ano meu amigo José Eduardo retornava às gravações. Representava ele a definição da duração de cada ano. Quando nós dois, irmanados, lá estávamos na obscuridade e no silêncio da noite, José Eduardo impedia que o tempo continuasse a sua trajetória, pois o cansaço não o atingia. Diria que meu amigo tinha uma outra noção do tempo. Dez horas da noite, meia noite, 5 da manhã, e a eternidade nunca esteve tão próxima. Nós ambos, o piano, a reverberação de Sint-Hilarius e os compositores que ouviam e entendiam a amizade eterna através da Música.

Penso que agora os compositores não entendem o porquê de a Música ter desaparecido de Mullem. Eu expliquei a eles: José Eduardo começou a correr. Atravessou os oceanos para mostrar aos brasileiros a pequena cidade de Mullem com as suas cervejas Triplet-Trappists, com os túmulos ancestrais do cemitério, com os compositores que reviviam a cada ano, numa ressurreição de seus espíritos e suas músicas, através das mãos do grande pianista José Eduardo Martins. Foi devido a esse trabalho, com repertórios por vezes duríssimos, noites e noites, como o alpinista que deve continuar ou morrer, que José Eduardo sofreria cirurgias na base de seus dois polegares, destruídos pelo esforço. Ele sofreu com amor. Não seria a estética uma maneira de sofrimento? Como amigo eu digo que José Eduardo Martins merece a honra de receber de Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Tenho a certeza de que José Eduardo dirá: ‘Je t’aime beaucoup et je t’embrasse de tout coeur’.
José Eduardo é um amigo para a vida e para a eternidade”.
Johan Kennivé – Engenheiro de som

“Foi em 1999 que André Posman, organizador dos concertos na Rode Pomp, pediu-me para abrigar o grande pianista José Eduardo Martins. À sua virtuosidade como intérprete, José Eduardo tem o dom da curiosidade. Eu gostava de contar a ele tudo o que eu sabia sobre a Bélgica e sobre a minha cidade natal, Gent; José tudo ouvia interessado. Percorremos a cidade ao longo dos anos, e nada lhe era indiferente. Certamente a vida cotidiana e os costumes locais diferem bem daqueles de São Paulo. Tudo o que ele via era motivo de questionamento: como e porquê. Rapidamente vi-me incapaz de lhe dar uma boa resposta. Na realidade eu não sou especialista nesses aspectos da minha Gent. Todavia, José não podia ir dormir sem antes saber todas as respostas. É bem possível supor que ele perguntasse a cada Gantois que cruzava seu caminho, ou ainda ter ele pesquisado na biblioteca – eu não sei – mas no dia seguinte, durante o café da manhã, ele me dava a resposta bem detalhada à pergunta que eu não conseguira responder no dia anterior. Em pouco tempo, José Eduardo sabia mais do que eu sobre a vida cotidiana belga.

Resumo: José Eduardo é como os novos aspiradores robotizados. A informação é para ele o que a poeira é para o aspirador. Ele busca a informação e as assimila, sem nada escapar. Evidentemente, José Eduardo é mais do que um aspirador-robot; tem um coração de ouro, onde a Bélgica ocupa um lugar importante.
E, finalmente, José Eduardo tem um bom senso de humor.
Viva a Bélgica! Leve België! Viva o Brasil”!
Tony Herbert – meu eterno anfitrião em Gent. Sua foto ilustra o post anterior. (vide TTTT e o Saber Viver. 12/04/2008)

“Foi com imenso prazer que eu soube que você receberá a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Como presidente da entidade cultural De Rode Pomp em Gand, eu estou profundamente orgulhoso, pois ajudei a construir a sua “herança artística” através dos 11 CDs da mais alta qualidade gravados para o nosso selo, assim como organizei mais de vinte apresentações suas como recitalista e camerista em minha sala de concertos em Gand. Também traduzi para o flamengo, para a nossa revista de música “Nieuwe Vlaamse Muziek Revue”, artigos escritos por essas mãos ricas de cultura e de conhecimento, oportunidade que tive para conhecer muitas coisas interessantes sobre a música e a cultura brasileiras.  Curiosamente, eu propus projeto similar de ‘fixação de herança artística’ para muitos grandes artistas, mas você foi o único que o realizou, você foi o único que compreendeu a empreitada, tendo vontade de investir a energia, esportividade em entender as várias situações e o precioso tempo para realizar um projeto internacional que construímos solidários. Eu lhe agradeço de todo o meu coração e chegará o tempo em que  escreverei nossa história desde os primórdios.
Eu desejo ao meu querido amigo muitos anos de fértil produção”.
André Posman – Presidente da Rode Pomp

“Acompanhei meu amigo e professor em algumas de suas atividades nas terras flamengas e lembro-me bem do inverno que enfrentamos em 2004, na ocasião do “Internationale, tweejaarlijkse vertolkerswedstrijd van hedendaagse kamermuziek” (Bienal Internacional de interpretação de música de câmara contemporânea), concurso da Antuérpia, onde JE durante três dias participaria  como membro do júri. A neve e o vento gelado nos castigavam naquelas longas caminhadas entre a estação de trem e o teatro De Singel – o que nos resultou em um resfriado de épicas proporções. Segundo a meteorologia, havia sido o pior inverno dos últimos anos.
Visivelmente cansado, pois passara as madrugadas da semana anterior gravando em Mullem, JE permanecia firme e bem humorado. No entanto, não sabíamos que o considerável esforço físico, somado à perda recente de seu querido genro, iriam despertar os primeiros sintomas de um grave linfoma, o qual combateria, durante os próximos meses, com a fé e o querer-viver incomuns que possui dentro de si.  Lembro-me do grave e-mail enviado pelo amigo: relatava o sombrio diagnóstico dos médicos e dizia que não se deixaria abater. E, de fato, não se abateu, pois fixou metas, deu recitais ainda convalescente e se propôs a gravar a integral dos Estudos de Debussy no ano seguinte – “se Deus assim permitir…”, como dizia.
Para JE, viver era poder retornar aos palcos coloridos criados por Boris Chapovalov na Rode Pomp; era se dirigir à madrugada silenciosa da planície flamenga, ao coração de sua querida Capela St. Hilarius em Mullem e deixar sua herança musical sob a companhia de pedras de mil anos e dos modernos microfones do amigo Johan Kennivé.
De lá para cá, muito aconteceu. O professor teve concedida não apenas a Divina Permissão  para o CD Debussy, mas também para tantas outras gravações, recitais, blogs, livros, honrarias e corridas(!) que vieram e ainda estão por vir.
Assim sendo, penso que a condecoração recebida do Reino da Bélgica no último dia 18 deveria ser entendida de maneira especial. Afinal, não seriam os mais de vinte CDs e inúmeros recitais lá realizados o resultado dessa relação amorosa com o país e as pessoas que JE elegeu para confiar sua música? Se assim entendermos, descobriremos o que a distinta medalha vem realmente reconhecer: o amor e a dedicação incontestes desse grande artista e amigo”.
Magnus Bardela – ex-aluno, hoje meu professor nessa complexa área da informática.

“Essa história de amor com a Bélgica contada por você é apaixonante de se ler. Descobrimos todo o tecido de relações, palavra terrivelmente adequada, quando percebemos que toda essa ramificação, efetuada por mais de 15 anos ao seu redor, foi construída por você ou por outros daquele país, para se chegar aos dias de hoje. Uma aranha não teria construído uma teia tão perfeita”!
François Servenière – compositor e orquestrador francês

In this week’s post I publish messages I received from friends in different countries with stories inspired by the insignia I received from the Belgian government.

E Tudo Começou Motivado pelo Acaso

Néanmoins, nous avons la certitude que l’infini existe,
puisqu’il est impossible d’imaginer qu’il n’existe point
et parce que son contraire, le fini,
est encore moins admissible.
Maurice Maeterlinck

Desde Março de 2007, reiteradas vezes abordei a temática relacionada às minhas ligações com a Bélgica, nascidas em 1995. Ao lembrar-me das origens dessa aproximação, que se tornaria perene, não deixo de fixar-me no acaso. Diria que trinta segundos a mais de uma situação absolutamente cotidiana e nada teria ocorrido. Em posts longínquos já escrevia sobre o fato.

Primeiramente, músicos da Bélgica estiveram no Brasil em 1994 e adquiriram na loja da Funarte, no Rio de Janeiro, três LPs gravados para o selo estatal e nos quais constavam obras do notável compositor romântico brasileiro Henrique Oswald. Dois de música de câmara e um de piano solo. Faziam parte de projeto acalentado pelo ilustre compositor Edino Krieger, então presidente da entidade. Com Antônio Del Claro, gravamos a integral para cello e piano e com Elisa Fukuda, a sonata para violino e piano e mais o trio op. 9, com a participação do  competente violoncelista.

O mentor da conexão musical Bélgica-Brasil foi certamente o saudoso Álvaro Guimarães, músico atuante que residia em Gent, na região flamenga. Procurou-me no início de 1995, a dizer que os belgas estavam encantados com a obra de Henrique Oswald. Todo o projeto foi por ele organizado. Primeiramente gravamos em Bruxelas, em Julho de 1995, a integral para violino e piano, com o excelente Paul Klinck ao violino. Estou a me lembrar que cheguei em uma sexta-feira pela manhã na capital dos belgas e Paul estava a me esperar. Conheci-o naquele intante e fomos direto a Gent. Meia hora após chegar, já realizávamos o primeiro ensaio. Dez minutos a seguir, Paul ficou de costas para mim e prosseguimos. A certa altura, intrigado, perguntei-lhe o porquê dessa postura. Respondeu-me bem calmamente “nossa compreensão da obra me leva à certeza de que nos entenderemos bem”. Ensaiamos ainda à noite, no dia seguinte Paul se casava, mas mesmo assim estudamos novamente, para na segunda e terça realizarmos, sem transtornos e na mais absoluta harmonia, a gravação das obras excelsas de Henrique Oswald em Bruxelas. Momentos extraordinários.

Em Novembro dava-se o Concerto de encerramento da Novecanto, totalmente dedicado a Oswald. Fizemos, no Muziekconservatorium de Gent, obras para violino, violoncelo, trio de cordas, canto, todas com minha participação ao piano. Tivemos ainda peças para piano solo e, para finalizar, o Coral Novecanto apresentou, de maneira sublime, a missa de Requiem a capella de nosso compositor. Chorei copiosamente ao ouvir, na platéia, a impecável execução da Missa. Concerto que teve a duração de quase duas horas. No intervalo foi lançado o CD que gravei com Paul Klinck.

À noite, mal conseguia dormir. Pensamentos contraditórios me levavam a rememorar os momentos mágicos vividos, que iriam estiolar-se na manhã seguinte, quando retornaria ao aeroporto de Bruxelas e, de lá, a São Paulo. E vem o acaso.

No momento exato em que o motorista de táxi que me levaria até à estação ferroviária Saint-Peters estava para fechar o porta-malas do veículo, desce de um carro que estacionara no meio fio, André Posman, o Diretor da De Rode Pomp. Não o conhecia e estranhei quando se aproximou sorrindo, a me dizer que adorara o concerto e que gostaria de conversar comigo.  Tenho o hábito de chegar bem antes da partida de qualquer vôo. André retira a minha bagagem do porta-malas, leva-me à sede da Rode Pomp e, posteriormente, de lá ao aeroporto. Nascia uma ligação definitiva, que me fez ir à Bélgica, até o presente, 22 vezes para recitais na sala da sociedade de concertos e gravações para o selo De Rode Pomp, assim como para apresentações em tantas cidades belgas.

O meu relacionamento com a Bélgica, tendo nascido de ato amoroso musical, permanece nestes 16 anos de intensidades. Foram inúmeros os posts em que abordei com alegria as viagens ao país, mormente à região flamenga. Só na sala da De Rode Pomp são mais de vinte recitais, sempre com repertório diferente. Sob outro aspecto, foi somente após três anos consecutivos de apresentações que André Posman me convidou para gravar “É necessário deixar a sua herança”, disse ele. Dos 22 CDs gravados no Exterior, 14 tem o selo respeitado da Rode Pomp, e outros foram gravados para serem lançados em Portugal e no Brasil com a anuência da organização. André, mulher e filhos tornaram-se membros de minha família belga. Conservaria a chave da moradia de André e tantas foram as vezes em que entrei de madrugada para estudar no piano da pequena sala de concertos. Infelizmente o auditório foi demolido, mas a força de vontade de André está sempre a pensar soluções novas. À mesa dos Posmans  - André, Jamila e os filhos Taha e Yassim - sempre há um lugar à espera do amigo quando este chega a Gent.

A não mais de 200 metros da Rode Pomp moram Tony Herbert e Tânia. André recomendou-me em 1997 a morada, pois se tratava de um Bed & Breakfast.  O casal teve filhos e nossa amizade apenas ficou ratificada em torno de Tycho e Trixie. Continuo a ser o único ex-cliente a lá se hospedar e seria uma desfeita imensa se buscasse outro abrigo. Extensão familiar. Tony de mil talentos é meu companheiro nos muitos almoços que compartilhamos sempre nos mesmos restaurantes de Gent e nas conversas prolongadas nos momentos de descontração. Personifica, a meu ver, muito das características dos habitantes da bela cidade medieval. De sua casa saio em treinamentos para as corridas da agenda oficial de São Paulo. Correr em baixa temperatura é experiência a ser vivida.

Johan Kennivé é o mestre absoluto da gravação. Um dos mais perfeitos engenheiros de som do planeta. Sereno, psicanalista, uma outra formação pois, Johan ausculta tudo. Nada lhe passa ao largo. Nossas gravações são sempre realizadas na capela Sint-Hilarius em Mullem, na planura flamenga. Todo ano vivemos três noites mágicas, que atravessam a madrugada até o raiar. Vivemos invernos rigorosos que, ao calor dos aquecedores, trazem a temperatura ideal ao intérprete nessa transmissão decisiva. Nos momentos de cansaço, é Johan que, na condição de psicanalista, sabe interromper uma gravação para conversa sem tensão, chocolate quente e torta de maça em sua Van com a mais moderna tecnologia de gravação e que fica estacionada na parte externa da capela, junto ao pequeno cemitério que a circunda.

Ter convivido com alguns dos grandes mestres da composição na Bélgica foi outro fato que marcou. Reiteradas vezes confessei que algumas de minhas amizades mais expressivas estão entre compositores, pintores e escritores. Gravei um CD unicamente com obras de 10 compositores belgas. Boudewijn Buckinx, Lucien Posman, Frederick Devreese, Yves Bondue, Stefan Meylaers, Roland Coryn, Daniel Gistelinck, Hans Cafmeyer, Raoul De Smet, Stefan van Puymbroeck são os criadores dos Études.

O competente compositor francês François Servenière, em análise crítica, escreve sobre essa gravação de Estudos belgas para piano: “esse CD com obras dos compositores do Reino da Bélgica e dedicados ao pianista José Eduardo Martins, aqui também formidavelmente virtuose, é uma lição da renovação que se opera na  música contemporânea da Europa e que o artista brasileiro não deixou de suscitar através das encomendas ou sugestões a esses criadores, mestres de sua arte seja qual for a tendência ou a geração. Podemos constatar, ao ouvir esse CD, que não há mais muros, barreiras e limites para a  criação e que a bandeira da liberdade é novamente aquela que está a impulsionar as mais brilhantes inteligências inventivas”. Raoul De Smet (1937), compositor da Antuérpia, dedicou-me seis Études, que apresentei paulatinamente ao público belga. Sabedor de meu projeto de Estudos, que hoje conta com 70 e tantos, escreveu mais nove. Deveria tocá-los este ano, contudo as cirurgias dos polegares (rizartrose) em 2010 e 2011 obrigaram-me a adiar a edificação da coletânea, pois estamos diante de Estudos realmente de dificuldade transcendental. Creio que em 2013 ou 14 poderei gravá-los em Mullem. Avanço na idade e no entusiasmo. Sob outra égide, foi um privilégio ter sido lembrado, através dos anos, em traços e cores marcantes por cinco artistas na Flandres: o saudoso Yves Dendal, que compareeu a todos meus recitais em Gent, Lutgard Wittocx e Tim Heirman (Bélgica), Joep Huiskamp e J.D.Wachter (Holanda) e Boris Chapovalov (Rússia). Seus trabalhos podem ser visualizados no item portraits de meu site.

Foram muitos os cameristas com quem me apresentei, mormente Paul Klinck, Herwig Coryn, Françoise Vanhecke e o Kwartet Rubio, que foi um dos mais prestigiados da Europa, hoje, hélas, desativado. Tantas as cidades em que me apresentei na Bélgica, quase todas percorridas através da eficiente malha ferroviária que corta o país.

Todo esse breve histórico para dizer aos generosos leitores que vivi emoção muito grande ao receber, das mãos do Exmo. Sr. Cônsul Geral do Reino da Bélgica em São Paulo, Peter Claes, a comenda “Officier dans l’Ordre de la Courone”, outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, em comovente cerimônia realizada na residência oficial. No momento da entrega, o flash a conter toda essa relação amorosa passou pela mente. Longa preparação para as gravações, apresentações públicas, amizades que se perpetuam em intensidade sem limites, todas as imagens que me levaram a certeza de estar a sentir na Bélgica, nos contatos musicais e afetivos, algumas das mais sensíveis experiências de minha vida. Sinto-me profundamente honrado com a comenda, que será guardada com carinho exemplar e um dia pertencerá às filhas e netas. Ter chegado aos 73 anos torna-me mais fragilizado quanto às reações afetivas. Ter sido lembrado pelo Reino da Bélgica em momento tão especial calou-me fundo.

A Bélgica continua a ser um de meus refúgios paradisíacos da mente. Dela lembrar traz-me reconforto e estímulo, pois projetos estão em permanente ebulição. Enumero a seguir os posts, editados desde 2007, tendo como temas a música, a arte e as amizades que o tempo sedimentou: Gent – A Flandres Rejuvenescida, 28/04/2007; Mullem – Sint-Hilarius, 01/05/07; A Comunhão das Pedras – A Magia de Sint-Hilarius, 03/05/07; Victor Servranckx (1897-1965) – A Grandiosidade do Fragmento ou Esboço, 12/03/08; Recitais Diferenciados – O Lúdico e o Alento, 18/03/08; Sint-Hilarius em Mullem – Meu Desiderato Sonoro, 25/03/08; Tony Herbert – TTTT e o Saber Viver, 12/04/08; Nova Travessia – Retornar à Região Flamenga, 06/02/09; Gent e seus Templos Góticos, 13/02/09; Um Belo Concerto – Qualidade sem Empáfia, 28/02/09; Álvaro Guimarães (1956-2009) – In Memoriam, 04/07/09; Travessia, Travessia – Quando Projeto Acalentado Chega a Termo, 14/05/10; E Continua o Caminhar – 21/05/10; Passar do Tempo e Gent, 04/02/11.

Last 18 August I received, from the hands of Mr. Peter Claes,  Consul of Belgium in São Paulo, the insignia “Officier de l’Ordre de la Couronne”, bestowed by His Majesty Albert II, King of the Belgians, in recognition of my dream of strengthening the ties between Belgium and Brazil through music. I was deeply moved by this tribute and the ceremony brought back memories of my many trips to the country: the privilege of knowing great musicians and composers , the 22 CDs recorded in Mulem and, above all, the rare treasure of making good friends, a blend of affection, respect and trust  that makes me feel comfortable and safe whenever I’m in Belgium.

 

 

 

 

 

 

Temas Recorrentes

O homem tem preguiça, em geral, de pensar todo o pensável
e contenta-se com fragmentos de ideias,
recusa-se a uma coerência absoluta.
Não leva até o fim o esforço de entender.
E, exatamente porque não o faz, toma,
em relação à sua capacidade de inteligência,
uma absurda posição de orgulho.
Compara o pouco que entendeu
com o menos que outros entenderam,
jamais com o muito que os mais raros puderam perceber.
Agostinho da Silva

Supermercado pode ser ponto de encontro fortuito ou oportuno. Tantas vezes vizinhos ou então amizades, que se distanciaram pelos decênios, repentinamente surgem por detrás de uma estante. Minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, sempre a surpreender. Maior consciência tive eu do fato quando peguei uma carona com Magnus, a fim de comemorar, em casa de uma das filhas em Perdizes, o aniversário da neta primogênita. No trajeto percorrido pelo amigo resolveu ele cortar caminho e passamos pelo populoso bairro de Vila Madalena, pleno de belos prédios e de infindáveis bares e restaurantes, sem contar subidas e descidas, algumas íngrimes. Tive a nítida sensação de estar em outra cidade, tão diferente da minha, pois diversos o panorama e o pulsar das pessoas que se aglomeravam em alguns desses locais de encontro. A premissa apenas para ratificar ainda mais minha condição de morador de cidade-bairro que, sinceramente, me dá um tipo de segurança mental nessa insegurança com a qual estamos habituados a conviver diariamente.

Após tantos anos reencontro velho conhecido ao contornar uma estante em supermercado. Carlos hoje mora em São Paulo, mas conheci-o em Uberaba, quando lá estive algumas vezes para recitais. Dedicou-se à música durante algum tempo, mas o curso de Medicina levou-o a outros caminhos e presentemente atende a dois hospitais. Houve a possibilidade de um bom curto e de conversa agradável.

Carlos não perdeu contato com a música, pois frequenta uma série de recitais e concertos que são oferecidos diariamente na cidade. Sabia de minha trajetória pianística e acadêmica, esta finda após a aposentadoria da USP, mas vivificada hoje através de visitas constantes a universidades d’além-mar. Uma pergunta intrigou-me: “escritos acadêmicos são chatos?”. Perguntei-lhe pela origem da questão. Afirmou-me evasivamente que lera a instigante consideração em texto publicado recentemente.

Disse-lhe que realmente há textos acadêmicos chatos, chatíssimos até. São eles majoritariamente escritos por “falsos” futuros mestres e doutores, que escrevem por obrigação universitária. Seus trabalhos sem originalidade são defendidos sem brilho pela ausência de conteúdo. Chatice a imperar. Quando a relação não é plena, o texto acadêmico  torna-se fatalmente enfadonho por falta de embasamento e até de relação amorosa com o tema. Não obstante esse lamentável fato, dissertações e teses de valor passam ao largo da palavra pejorativa, pois escritos por pesquisadores competentes. Mais um texto universitário é inovador ou ratificador de teorias que tendam ao alargamento do conhecimento e das mentes, mais ele se torna interessante. Em todas as áreas. Lógico seria supor que aquele(a) que generaliza um texto acadêmico, normatizando-o como sendo chato, não tem certamente a menor condição de compreender o trabalho competente feito para a Academia,  pois deve ter escolhido, entre tantos, o texto errado, certamente chato e, a agravar ainda mais a situação, aquela dissertação ou tese que mergulhará nas profundezas dos arquivos da universidade por falta de consistência.

A chatice não se coaduna com a competência. Patamares distintos situam os textos nessas condições, o primeiro a ser esquecido no rés do chão, o segundo, nas alturas, a servir de referência. Trocamos ideias, ele a considerar as condições de quem escreve e que assim se pronuncia, a lançar anátema aos textos acadêmicos, generalizando-os. Considerei que somente poderá avaliar uma dissertação ou tese em sua plenitude, e a vaticinar sua qualidade, aquele que se encontra instaurado na área, através do conhecimento. Na Academia, será o médico especialista; o engenheiro em sua especificidade; o músico compositor, intérprete, teórico; o doutor em direito, todos esses que estarão plenamente prontos a decifrar conteúdos inerentes às inúmeras áreas do conhecimento. Seria claro igualmente que poderá esse texto ser ininteligível para o leigo ou soi disant, daí também o pretexto para que este leitor rotule de chata a produção acadêmica de alto nível.

Portanto, inexpressivas ou competentes, dissertações ou teses poderão não ser compreendidas pelo leigo. Contudo, se este tiver uma cultura abrangente, discernimento e a mente aberta ao desvelamento, certamente encontrará o maravilhamento em trabalhos acadêmicos relevantes. Há que se considerar também, que a tese competente sofre determinadas modificações quando publicada no formato livro. Deve-se o fato à necessidade de abreviá-la tanto em seu texto essencial, como no consequente número de notas de rodapé. Todavia, nas duas formatações, livro e tese serão relevantes para o entendido na matéria. Acredito, pois, que a chatice alegada ou é pela palavra mesma aplicada à inconsistência e, nesse caso, a aplicação é corretíssima, ou pela falta de alcance do leitor quando se depara com dissertação ou tese de alto mérito. Neste caso, pouco a fazer.

Perguntou-me sobre quais livros sobre música procurar. Respondi-lhe que, ao buscar um bom livro sobre a matéria, seu paraíso eterno, primeiramente deveria inteirar-se da origem de quem escreve. Aquele sem o embasamento sólido na área musical estará sujeito a tantos pecados, que se estendem do  desconhecimento àquilo que é bem mais grave, ao livre arbítrio, ou então à simples repetição, com outras palavras, de textos lidos em quantidade incalculável de livros escolhidos sobre a área. Porém, “obras” escritas nessas condições não serão referenciais.

Meu amigo regressará à sua Uberaba. Afirmei-lhe que teria imenso gosto em voltar a me apresentar nessa bela cidade do triângulo mineiro. Despedimo-nos, pois Carlos teria de dar plantão em hospital próximo. Ainda brinquei a dizer que esperava que a noite não tivesse a chatice enunciada no tal artigo que lera há dias.

 

On the difficulties of finding a wider audience for academic theses, which I divide basically into two categories: the second-hand ones, written by bad researchers and that no one will ever read, and those written by serious researchers, a result of rigorous investigation methods, but relevant only to those who work in the same field and not to the layman.