A Magia da Amizade

La grande objection
que les matérialistes ont toujours faite aux spiritualistes
et qu’ils font encore, mais moins hardiment aujourd’hui,
se résume en ceci: Pas de pensées sans cerveau.
L’âme ou l’esprit est une sécretion de la substance cérébrale;
le cerveau mort, la pensée s’arrête et il ne reste rien.

Je ne suis qu’un instant de Dieu,
mais tout instant est éternel.
Maurice Maeterlinck
(Gent – 1862, Nice – 1949)

As relações humanas são muito complexas, mormente quando envolvem a atividade principal do ser. Quando o músico tem o privilégio de gravar no Exterior, pode ele ser instado a fazê-lo em vários centros do planeta. Estou a me lembrar que, após recital na Rode Pomp em 2006, um agente de gravadora super conhecida mundialmente, durante o jantar no restaurante contíguo à sala de concertos, e que funcionava de quinta à sábado à noite após as récitas, convidou-me para com eles gravar, a dizer que a tiragem seria bem superior à artesanal da Rode Pomp e que a difusão, por consequência, resultaria extraordinária. Perguntei-lhe em que lugar eles gravavam. Respondeu-me que dependia das circunstâncias e que elas poderiam ser realizadas em qualquer parte do mundo. Fiz-lhe uma segunda pergunta, já a saber a resposta, pois conhecia inúmeras gravações do importante selo: “posso escrever o texto do CD”? A resposta foi clara, “não”, pois geralmente nem textos explicativos havia nesses CDs. Para mim, o texto do intérprete que acarinhou um projeto contém algo de etéreo e espiritual, a formar o amálgama com a mensagem sonora. Naquele instante chegava André Posman. Diante do agente, disse ao grande amigo que nossas gravações continuariam ad eternitatem a se processarem na mágica capela Sint-Hilarius, em Mullem, sob a direção de meu querido amigo e engenheiro de som Johan Kennivé. O cidadão ficou um tanto quanto pasmo quando me levantei e dei um afetuoso abraço em André Posman. Se anteriormente gravei CDs na Bulgária e, circunstancialmente, em Portugal, para um projeto preciso e dignificante a envolver o extraordinário compositor Lopes-Graça, é em Sint-Hilarius que meu de profundis aflora e que consigo transmitir minha mensagem musical na atmosfera do inefável. É uma dádiva ter um Grande Mestre como Johan Kennivé, sensível e sereno a captar as reverberações de Sint-Hilarius. O que podem significar a grande divulgação ou aquela palavra tão decantada, “sucesso”, diante daquilo que realmente somos? A “herança musical a ser deixada”, proposta por André Posman, tornar-se-ia o desafio incessante em busca da qualidade ímpar.

A honraria outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, que me foi entregue pelo Sr. Cônsul Geral da Bélgica em São Paulo, Sr. Peter Claes, teve comentários vindos das longínquas terras, que me comoveram sensivelmente. Essas amizades ficaram de tal maneira intensas que seria difícil transmiti-las ao generoso leitor. Três desses amigos que estão presentes no meu cotidiano e que anualmente são motivo de alegria imensa quando chego a Gent, escreveram pequenos textos: Johan Kennivé, André Posman e Tony Herbert. Cada um a mostrar dados que nos uniram indelevelmente. Um quarto depoimento veio de Magnus Bardela, meu ex-aluno na universidade e há tantos anos meu professor absoluto na computação e no apreciar as edições de meus CDs. A ele devo gratidão eterna pela edição de quatro dos meus CDs gravados em Sint-Hilarius quando não tinha as menores condições físicas de fazê-la devido às intensas quimioterapias. Magnus foi impecável, mercê da competência muito elogiada por Johan Kennivé. Da França, François Servenière traça comovente apreciação do relacionamento humano e estabelece bela metáfora. Por fim, Álvaro Guimarães, saudoso amigo, responsável pela minha primeira visita às terras flamengas. Estivesse entre nós, certamente Álvaro teria participado desses momentos que ficarão guardados no coração e na mente (vide Álvaro Guimarães 1956-2009, In Memoriam. 04/07/2009).

“A cada ano em que meu amigo José Eduardo gravava na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, num piano vindo especialmente para suas gravações, os compositores podiam apreciar os sons no pequeno cemitério que circunda o templo. O piano de concerto que ocupava a capela tornava-se o centro de uma religião extraordinária e imaterial. Assim como anualmente temos a Páscoa e o Natal, assim também todo o ano meu amigo José Eduardo retornava às gravações. Representava ele a definição da duração de cada ano. Quando nós dois, irmanados, lá estávamos na obscuridade e no silêncio da noite, José Eduardo impedia que o tempo continuasse a sua trajetória, pois o cansaço não o atingia. Diria que meu amigo tinha uma outra noção do tempo. Dez horas da noite, meia noite, 5 da manhã, e a eternidade nunca esteve tão próxima. Nós ambos, o piano, a reverberação de Sint-Hilarius e os compositores que ouviam e entendiam a amizade eterna através da Música.

Penso que agora os compositores não entendem o porquê de a Música ter desaparecido de Mullem. Eu expliquei a eles: José Eduardo começou a correr. Atravessou os oceanos para mostrar aos brasileiros a pequena cidade de Mullem com as suas cervejas Triplet-Trappists, com os túmulos ancestrais do cemitério, com os compositores que reviviam a cada ano, numa ressurreição de seus espíritos e suas músicas, através das mãos do grande pianista José Eduardo Martins. Foi devido a esse trabalho, com repertórios por vezes duríssimos, noites e noites, como o alpinista que deve continuar ou morrer, que José Eduardo sofreria cirurgias na base de seus dois polegares, destruídos pelo esforço. Ele sofreu com amor. Não seria a estética uma maneira de sofrimento? Como amigo eu digo que José Eduardo Martins merece a honra de receber de Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Tenho a certeza de que José Eduardo dirá: ‘Je t’aime beaucoup et je t’embrasse de tout coeur’.
José Eduardo é um amigo para a vida e para a eternidade”.
Johan Kennivé – Engenheiro de som

“Foi em 1999 que André Posman, organizador dos concertos na Rode Pomp, pediu-me para abrigar o grande pianista José Eduardo Martins. À sua virtuosidade como intérprete, José Eduardo tem o dom da curiosidade. Eu gostava de contar a ele tudo o que eu sabia sobre a Bélgica e sobre a minha cidade natal, Gent; José tudo ouvia interessado. Percorremos a cidade ao longo dos anos, e nada lhe era indiferente. Certamente a vida cotidiana e os costumes locais diferem bem daqueles de São Paulo. Tudo o que ele via era motivo de questionamento: como e porquê. Rapidamente vi-me incapaz de lhe dar uma boa resposta. Na realidade eu não sou especialista nesses aspectos da minha Gent. Todavia, José não podia ir dormir sem antes saber todas as respostas. É bem possível supor que ele perguntasse a cada Gantois que cruzava seu caminho, ou ainda ter ele pesquisado na biblioteca – eu não sei – mas no dia seguinte, durante o café da manhã, ele me dava a resposta bem detalhada à pergunta que eu não conseguira responder no dia anterior. Em pouco tempo, José Eduardo sabia mais do que eu sobre a vida cotidiana belga.

Resumo: José Eduardo é como os novos aspiradores robotizados. A informação é para ele o que a poeira é para o aspirador. Ele busca a informação e as assimila, sem nada escapar. Evidentemente, José Eduardo é mais do que um aspirador-robot; tem um coração de ouro, onde a Bélgica ocupa um lugar importante.
E, finalmente, José Eduardo tem um bom senso de humor.
Viva a Bélgica! Leve België! Viva o Brasil”!
Tony Herbert – meu eterno anfitrião em Gent. Sua foto ilustra o post anterior. (vide TTTT e o Saber Viver. 12/04/2008)

“Foi com imenso prazer que eu soube que você receberá a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Como presidente da entidade cultural De Rode Pomp em Gand, eu estou profundamente orgulhoso, pois ajudei a construir a sua “herança artística” através dos 11 CDs da mais alta qualidade gravados para o nosso selo, assim como organizei mais de vinte apresentações suas como recitalista e camerista em minha sala de concertos em Gand. Também traduzi para o flamengo, para a nossa revista de música “Nieuwe Vlaamse Muziek Revue”, artigos escritos por essas mãos ricas de cultura e de conhecimento, oportunidade que tive para conhecer muitas coisas interessantes sobre a música e a cultura brasileiras.  Curiosamente, eu propus projeto similar de ‘fixação de herança artística’ para muitos grandes artistas, mas você foi o único que o realizou, você foi o único que compreendeu a empreitada, tendo vontade de investir a energia, esportividade em entender as várias situações e o precioso tempo para realizar um projeto internacional que construímos solidários. Eu lhe agradeço de todo o meu coração e chegará o tempo em que  escreverei nossa história desde os primórdios.
Eu desejo ao meu querido amigo muitos anos de fértil produção”.
André Posman – Presidente da Rode Pomp

“Acompanhei meu amigo e professor em algumas de suas atividades nas terras flamengas e lembro-me bem do inverno que enfrentamos em 2004, na ocasião do “Internationale, tweejaarlijkse vertolkerswedstrijd van hedendaagse kamermuziek” (Bienal Internacional de interpretação de música de câmara contemporânea), concurso da Antuérpia, onde JE durante três dias participaria  como membro do júri. A neve e o vento gelado nos castigavam naquelas longas caminhadas entre a estação de trem e o teatro De Singel – o que nos resultou em um resfriado de épicas proporções. Segundo a meteorologia, havia sido o pior inverno dos últimos anos.
Visivelmente cansado, pois passara as madrugadas da semana anterior gravando em Mullem, JE permanecia firme e bem humorado. No entanto, não sabíamos que o considerável esforço físico, somado à perda recente de seu querido genro, iriam despertar os primeiros sintomas de um grave linfoma, o qual combateria, durante os próximos meses, com a fé e o querer-viver incomuns que possui dentro de si.  Lembro-me do grave e-mail enviado pelo amigo: relatava o sombrio diagnóstico dos médicos e dizia que não se deixaria abater. E, de fato, não se abateu, pois fixou metas, deu recitais ainda convalescente e se propôs a gravar a integral dos Estudos de Debussy no ano seguinte – “se Deus assim permitir…”, como dizia.
Para JE, viver era poder retornar aos palcos coloridos criados por Boris Chapovalov na Rode Pomp; era se dirigir à madrugada silenciosa da planície flamenga, ao coração de sua querida Capela St. Hilarius em Mullem e deixar sua herança musical sob a companhia de pedras de mil anos e dos modernos microfones do amigo Johan Kennivé.
De lá para cá, muito aconteceu. O professor teve concedida não apenas a Divina Permissão  para o CD Debussy, mas também para tantas outras gravações, recitais, blogs, livros, honrarias e corridas(!) que vieram e ainda estão por vir.
Assim sendo, penso que a condecoração recebida do Reino da Bélgica no último dia 18 deveria ser entendida de maneira especial. Afinal, não seriam os mais de vinte CDs e inúmeros recitais lá realizados o resultado dessa relação amorosa com o país e as pessoas que JE elegeu para confiar sua música? Se assim entendermos, descobriremos o que a distinta medalha vem realmente reconhecer: o amor e a dedicação incontestes desse grande artista e amigo”.
Magnus Bardela – ex-aluno, hoje meu professor nessa complexa área da informática.

“Essa história de amor com a Bélgica contada por você é apaixonante de se ler. Descobrimos todo o tecido de relações, palavra terrivelmente adequada, quando percebemos que toda essa ramificação, efetuada por mais de 15 anos ao seu redor, foi construída por você ou por outros daquele país, para se chegar aos dias de hoje. Uma aranha não teria construído uma teia tão perfeita”!
François Servenière – compositor e orquestrador francês

In this week’s post I publish messages I received from friends in different countries with stories inspired by the insignia I received from the Belgian government.