Depoimento de um Músico e Pensador

Felix qui potuit rerum cognoscere causas.
(Feliz aquele que pode conhecer a causa das coisas)
Virgílio (Geórgicas, 2.490)

Os depoimentos de meu ex-aluno e atual professor no High Institute of Music de Damasco, Flávio Metne, causaram repercussão bem expressiva. Recebi inúmeros e-mails e até telefonemas de leitores que se impressionaram com a visão arguta de meu dileto amigo. Houve consenso básico a respeito do pensamento de Flávio Metne. Contudo, a leitura abrangente, a tudo captar, realizada pelo ilustre compositor, orquestrador e pensador francês François Servenière, concentra parte essencial das mensagens que li e ouvi a partir da recepção do blog do dia 1º de Outubro. Impressionou-me o fato que, ao postar o blog às 0:05 do primeiro dia do mês, abri o computador por volta das 9:00 da manhã e o substancioso depoimento já lá estava em minha caixa de e-mails. Com certeza polêmico, ele é pleno do mais profundo interesse e vem ratificar a transcendência do pensamento do músico francês. Transcrevê-lo não apenas evidencia um olhar diferenciado e d’além mar, como nos remete à história geopolítica dos países do Levante e à sua influência sobre o Ocidente. Pedi-lhe consentimento, traduzi seu texto e é com prazer que o compartilho com meus leitores.

“Anotei algumas frases desse post tão interessante. Uma delas, de Flávio Metne, e que tem minha concordância plena, impressionou-me de imediato e refere-se à busca da paz individual: ‘chega-se a um ponto em que tudo o que o cidadão quer, até o mais ilustrado dos homens, é que o deixem respirar’.  É como cá dizemos ‘qu’ils nous fichent la paix’.  Chegamos a compreender, ao estudar a política, que os dirigentes, sejam quais forem os países que governam, nada fazem para o povo que eles pretendem defender e dirigir. Na realidade, os  políticos perseguem apenas um interesse, os seus. Que eles o digam uma vez por todas! O resto  é senão discurso e manipulação. O interesse geral está raramente entre seus objetivos. Tantos têm um homem político na sua manga para que seus assuntos privados tenham resultado. A democracia não é mais um programa. ‘Votem, pois certamente  faremos o contrário do que prometemos’!

Clique para ouvir, com José Eduardo Martins ao piano de Fernando Lopes-Graça: Cosmorame – Quelque part dans le Levant

Gostei imenso do olhar de seu ex-aluno sobre a sociedade de seu país e aquele território que foi, nos tempos dos assírios, fonte da cultura europeia via Grécia pelo Danúbio, diferentemente  daquela outra, que fez o percurso pelo norte da África através das conquistas muçulmanas, como hoje ouvimos tantas vezes através de discursos militantes. A cultura e o conjunto de benfeitorias na Europa vieram do Levante por uma das rotas da seda, Pérsia, Síria, Damasco, Constantinopla, Atenas, Viena… Se de um lado parece-me evidente que o país de seu amigo Flávio Metne é um dos fundadores e está na origem de nossa cultura européia, sob aspecto outro difícil é aceitar – documentei-me durante muito tempo a respeito – a influência prioritária da cultura do sul. Aquela do Levante, portanto do Leste, é eminentemente esclarecida, diferentemente daquela do sul vinda da Arábia e transmitida a seguir para o norte da África. O Levante – Síria,  Líbano, Turquia – são Terras magníficas. Sim, é verdade que historicamente estamos diante de geografia conturbadas, como bem sugere Flávio Metne. É também verdadeiro que sua região é a única passagem entre o Cáucaso montanhoso, glacial e mortal durante o inverno, e o deserto da península árabe, intransponível para as caravanas comerciais pelos motivos do calor e da falta de poços de água para se ir do Oriente e do Meio-Oriente para a Europa. É a região do Ponto Euxino, nome antigo do Mar Negro, mas também o ponto simbólico que liga a Ásia à Europa. Seria natural que todas as invasões e todos os viajantes passassem por essas terras, belicosa ou pacificamente. E não nos esqueçamos do calor dos desertos e o drama da falta de água, o stress hídrico bem conhecido e origem de tantos conflitos e de guerras no mundo (verificar o interessante livro de Erik Orsenna sobre o tema, “L’avenir de l’eau”, Fayard). Nós, que vivemos em países com regiões bem irrigadas, como no Brasil e na Normandia, como sofremos frente à canícula! Naqueles países a canícula é o cotidiano. A água é o mais precioso tesouro, pois fornece alimento e vida. A guerra para obtê-la é, pois, consubstancial à cultura naquelas regiões. O petróleo como fonte de riqueza chega bem mais tarde, nas fronteiras dos séculos XIX – XX, apesar do petra oleum ser conhecido desde a antiguidade. Meu pai se lembra de uma viagem que fez à Palestina em 1947. O país não era ainda dividido entre israelenses e palestinos, o mandato da ONU era ainda britânico. Ele presenciou uma mulher ir a um poço para encher sua jarra de água quando um cavaleiro se aproximou rapidamente e a chicoteou, a fim de que ela se distanciasse do poço, pois devia ser o proprietário… Meu pai ficou profundamente chocado com o episódio por várias razões: a posição social da mulher (animal ou escrava?) e o direito universal à água. Para um ocidental, como ele ou como nós, são experiências que revelam muito mais do que não importa qual discurso, mesmo se considerarmos que a Turquia concedeu o direito ao voto às mulheres em 1924, o Líbano em 1926, a França em 1944 e a Síria em 1954”. No Brasil, o direito da mulher ao voto, a obedecer contudo algumas restrições data de 1932, sendo  essas eliminadas em 1934. Somente em 1946 o voto feminino passou a ser obrigatório.

Continua Servenière: “Eu gostaria muito de visitar a Síria assim que aquele país for pacificado, pois seu regime atual é desumano, tratando-se de uma ditadura sustentada por uma nomenklatura minoritária alauita a cerca de um século… Estado criado pelos franceses (daí o Código Civil) após a primeira guerra mundial, quando tiveram mandato da ONU sobre esse território.

Finalmente, como não se impressionar pela confissão de Flávio Metne, com a qual concordo profundamente em seus princípios filosóficos: ‘Aproveitando meu gosto pela introspecção, pela contemplação, leitura, coisas do espírito enfim, saio o mínimo possível de casa, evitando lugares lotados, ambientes poluídos, trânsito… O retorno é grande, pois leio os grandes mestres, escrevo bastante e o mais importante: dedos nas teclas’. Isso para lembrar aquilo que você escreve na introdução do post: ‘Apesar de lecionar piano, jamais pensei na formação de um pianista que não tivesse em conditio sine qua non uma visão musical mais ampla  e também uma sólida cultura humanística, únicas salvaguardas para a edificação de um músico completo’. Isso para provar que um músico é um órgão sensível integral e não, sob hipótese alguma, um indivíduo fora do mundo, como sugere a imagem de Epinal ou o espírito comum. O músico é um ser que vibra a todas as manifestações da vida, um espírito que retranscreve, com sua linguagem universal, todas as emoções vividas com mais intensidade do que qualquer  idioma nacional ou local poderiam fazê-lo. A música é universal. Ela consegue varrer as fronteiras, ela permite a comunhão de espíritos que, sem ela, ficariam milhares de quilômetros ou de anos-luz separados uns dos outros. A música prova que é universal pelo simples fato de unir os homens de uma maneira superior. Perguntaríamos, então, qual a razão de não ser ela a linguagem da diplomacia? Questão fundamental, a ser desenvolvida nos meios intelectuais ou do poder… eu sou muito sério! O artigo de seu blog é fabuloso e o relato de Flávio Metne, seu ex-aluno e amigo, particularmente envolvente e culto, como aliás você bem o descreve”.

O post é publicado no dia em que meu querido ex-aluno e amigo Flávio Metne retorna ao seu devotamento musical em Damasco. Que seus sonhos voltados à paz duradoura se concretizem!

Last week’s post about Syria gave rise to many comments. One in special I deemed noteworthy: written by the French composer and intellectual François Servenière, it clarifies some facts about the region of the Levant and also expresses a somewhat polemic position on the Muslim influence on European culture and society.