E Findamos a Digressão

O Outono se expande no hemisfério norte. Faz-se sentir através da paisagem arborizada, mas a ter preferencialmente folhas caducas e poucas perenes. Sentimo-lo no percurso Tomar-Guimarães, antes da chegada a Braga. Desde a infância constitui minha estação escolhida. Se as flores primaveris encantam no despertar de longo período, seriam os tons dourados das follhas das árvores,  anunciando o longo inverno, que mais me impressionam. À medida que o carro desliza pela auto-estrada, caminhos plenos de folhas podem ser vistos. No Bom Jesus de Braga, na bela morada dos diletos amigos Teotónio e Maria Teresa Santos onde ficamos, à altura do início da célebre e longa escadaria a exibir em suas laterais, progressivamente, as capelas devocionais, de maneira mais acentuada as cores outonais podem ser sentidas. As colinas vislumbradas da morada abastecem o olhar atento. A cada dia transfiguram-se na luminosidade, pois as árvores estão a se desnudar. O solo, mormente quando raios de sol incidem obliquamente, revela todo o esplendor dos tons da serenidade, que se modificam à mais tênue brisa sobre as folhas secas. São em terra o que os Reflets dans l’eau, de Debussy, traduzem sonoramente.

Em Braga o recital teve características extraordinárias. A competente e dedicada professora Elisa Lessa coordenou uma apresentação diferenciada. Teve como colaborador o impecável Rui Feio e alunos da muito bem estruturada Escola de Música, que apresenta uma arquitetura plena de brilhantes soluções. Organizaram uma cuidadosa exposição e foram encontrar tanto em meu site, como em outros arquivos, fotos da trajetória musical amorosa do intérprete. Creio que a relação de afeto seja o primordial impulso que me leva a sempre prosseguir. Conseguiram atingir o âmago de meus 73 anos. Em um dos corredores da Escola, colocaram os cartazes alusivos. Jamais acontecera antes e me emocionei, principalmente por ter meu saudoso pai nascido no Distrito de Vila Verde, mas registrado àquela altura, nos estertores do século XIX, em Braga.

Não houve data show, tão bem preparado pelo professor Pedrosa Cardoso, por motivos técnicos, mas o público reagiu extraordinariamente às obras apresentadas. Após a récita e a sessão de autógrafos de meu livro, lançado no início de Novembro pela Imprensa da Universidade de Coimbra, a professora Elisa Lessa ofereceu um jantar carinhoso na Escola. Como o recital começara às 18:00h, eis que, vinda do Porto com seu filho, chega à Escola por volta das 20:00h a notável violoncelista Madalena Sá e Costa, irmã da saudosa pianista e professora Helena Sá e Costa. Completaria 96 anos no dia seguinte, mas fez-se presente ao recital que acabara de ser realizado, pois tanto ela como seu filho, arquiteto Luís, equivocaram-se quanto ao horário. Com memória prodigiosa, lembrou-se com pormenores de nossa apresentação em Janeiro de 1986 na cidade do Porto, na Delegação Regional do Norte, onde realizamos um recital que marcou. Lembranças vieram, inclusive, do programa interpretado com empolgação. Obras de Beethoven e Luís Filipe Pires. Findo o jantar, em cumplicidade com Elisa Lessa, levamos Madalena Sá e Costa ao auditório. Uns poucos nos acompanharam. Primeiramente, saudei-a ao piano com o “Parabéns a você” e toquei Rameau, Carlos Seixas e ainda uma obra de Fernando Lopes-Graça. Regina, que adentrara à sala, sob minha insistência homenageou-a com uma Sonata de D. Scarlatti e Saci, de Villa-Lobos, completando com um “Parabéns a você” bem mais incrementado do que o meu, este, um simples coral. Uma noite a não ser esquecida.

No dia seguinte houve a última apresentação. Deu-se em Póvoa de Varzim. Organizado pela Escola de Música, tão bem dirigida pelo professor e regente José Abel Carriço, o recital teve lugar no Auditório Municipal. Um magnífico piano de concerto Fazioli, tão raro nas salas pelo mundo devido à diminuta produção esmeradamente artesanal, estava à minha disposição. Realmente um instrumento que reage às mais sensíveis intenções. Um público atento acompanhou com entusiasmo o repertório apresentado durante toda a tournée. E mostrou-se receptivo ao livro “Impressões sobre a Música Portuguesa”.

O balanço dessa peregrinação musical tem aspectos altamente positivos. Estou absolutamente convicto de que o repertório inusitado merece a guarida necessária. Continuo a insistir perante os prezados leitores de meu blog. Os ouvintes gostam dele, a depender de como os organizadores que conhecem a arte musical  promovem o evento e também, em estado sine qua nom, da maneira como ele é apresentado. É lógico supor – a constante está a demonstrar através dos tempos a assertiva – que agentes não versados em música, mas nos resultados financeiros, não têm apreço pelo novo, passado ou presente. Insistem na mesmice e empobrecem mentes, que se fossilizam na repetição. O “novo histórico” é revelador e mostra ao homem a riqueza de talentos privilegiados, que souberam compor na perfeição, mas permaneceram ignotos. Nunca é demais insistir.

Sob outra égide, a minha devoção à música para piano de Portugal, como a de nosso país em segmentos que elegi, continuará. Ainda há repertório não divulgado de raro valor. O manancial lá está, depositado em coleções particulares, em bibliotecas ou museus. Esse debruçar jamais exclui a atração pela contemporaneidade e uma das grandes alegrias que tenho como intérprete é poder revelar obras de hoje. Se François Servenière e Eurico Carrapatoso, dois notáveis compositores, integraram tematicamente o repertório da tournée que ora finda, outros autores, de Portugal, do Brasil e alhures, estarão a me interessar. Dar sentido à vida nessa revelação que se renova anualmente é realmente uma dádiva.

A digressão para 2012 já está a ser pensada. Como habitualmente faço, com exceção do recital em Coimbra, precedido da apresentação do livro na presente turnê, deverei começar por Lisboa. O Templo de Lopes-Graça, a Academia de Amadores de Música, onde dei meu primeiro recital aos 14 de Julho de 1959, a convite do compositor Lopes-Graça, continua perenemente a ser “o meu primeiro e virginal abrigo”, parafraseando o poeta Luís Guimarães Júnior.

For the last three weeks I’ve been writing about my concert tour in Portugal. This is the last post of the series, covering the recitals held in Braga and Póvoa de Varzim.