Apresentação do Dr. César Nogueira

Crê com todo o teu ser;
só assim terás atingido o máximo da dúvida.
Agostinho da Silva

A apresentação de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” deu-se em Coimbra aos 3 de Novembro último. Entre os ilustres professores doutores que se pronunciaram a respeito durante a cerimônia de lançamento, César Nogueira, musicólogo e regente coral em Coimbra, leu seu texto e acaba de envià-lo via internet.  À gentileza do gesto do pesquisador, soma-se a sua anuência, a meu pedido, para que inserisse a arguta apresentação em meu blog. Publico-a pois,  pelo fato, in adendo, de que durante vários meses, mercê da indicação dos competentes Professores Doutores João Gouveia Monteiro e José Maria Pedrosa Cardoso, o Dr. César Nogueira esteve à testa das revisões de um livro que tem cerca de 60 exemplos musicais, mormente em dois artigos analíticos. Se o prefácio do notável musicólogo e Professor Catedrático Mário Vieira de Carvalho sobrevoa a engajada literatura contida, analisando-a impecavelmente sob a égide de uma realidade que existe, hélas, nas culturas luso-brasileiras, o Dr. César Nogueira penetra em campo hermenêutico mais pragmático e pormenoriza determinados textos. É com prazer, pois, que partilho com meus leitores o texto de apresentação do competente  músico.

“Começo por agradecer à IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, pela oportunidade e a honra que me concedem de, aqui, hoje, participar na apresentação de IMPRESSÕES SOBRE A MÚSICA PORTUGUESA, Panorama, Criação, Interpretação, Esperanças.

Permita-me o autor, Sr. Professor José Eduardo Martins, pianista e musicólogo, iniciar a minha exposição, com uma primeira impressão, que ficou da leitura atenta do seu livro. Assim, não na forma, mas na substância, a obra parece-me claramente organizada segundo duas posturas distintas assumidas pelo autor. Numa, o Senhor Professor fala de si, como homem que também é músico. Na outra, respeita a atitude do músico que também é homem. Não se trata de enquadrar os textos destas duas classes distintas em partes físicas diferentes na organização textual já que estas duas posturas manifestam-se, entrecruzadas, em toda sua a narrativa. Na primeira, José Eduardo Martins deixa transparecer os traços fundamentais das raízes familiares, da formação e as linhas de conduta da sua personalidade no convívio com as múltiplas individualidades que se foram cruzando consigo. Apresenta-nos, aí, passagens plenas de afecto e de sensibilidade que vão construindo, no leitor, uma espécie de lastro onde se instala a ideia da vontade de conhecer, também, este brasileiro tão aportuguesado ou, vice-versa, este português – com a sua licença – tão abrasileirado. Dos testemunhos de José Eduardo Martins, fica-nos a ideia que, este homem, conheceu todo o meio musical português dos últimos 50 anos. Júlia d’Almendra, João de Freitas Branco, Sequeira Costa, Tânia Achot, Ivo Cruz (pai e filho), Lopes-Graça, Jorge Peixinho, Vieira Nery, Mário Vieira de Carvalho e Pedrosa Cardoso são alguns dos nomes que perpassam nos seus escritos, detendo-se mais nuns do que noutros, evidentemente. Destaco, neste registo – diria eu – assumidamente intimista, o texto: ‘A transparência através das cartas’, onde se evidencia a amizade, ‘em Debussy’, com a pedagoga e ‘debussysta’, Júlia d’Almendra.

De todo modo, em qualquer das duas posturas, é tanto o respeito e, mesmo, o amor pela música portuguesa e pelos seus cultores locais, que, em José Eduardo Martins, de facto, cumpre-se – não só neste seu livro mas, especialmente, na sua vida – um pouco da, sempre adiada, aliança cultural permanente entre Portugal e o Brasil. É bem sabido que todos temos desaproveitado, sistematicamente, esse património intangível mas muito real, que radica na circunstância de dois povos partilharem uma mesma língua, e tudo o mais, de comum, que esta condição comporta. José Eduardo Martins e a sua vida são a excepção a esta regra determinista e implacável que teima em separar o que é junto por nascimento e natureza. A este desígnio refere-se Mário Vieira de Carvalho, no prefácio a ‘Impressões Sobre a Música Portuguesa’, quando afirma, cito: ‘É neste contexto que a singularidade de José Eduardo Martins se agiganta. Ao longo de mais de cinquenta anos, não se limitou a manter e expandir contactos, a promover intercâmbios, como já o tinham feito Lopes-Graça e Jorge Peixinho ou, por exemplo, Gilberto Mendes. Foi muito mais além. Dedicou-se de uma forma continuada à investigação da música portuguesa’. E mais adiante, acrescenta, relativamente à postura de alguns intérpretes portugueses, mais alheios à produção composicional nacional: ‘Poucos ousam escapar ao cânone hegemónico nas salas de concerto ou na produção fonográfica: como se o intérprete precisasse do prestígio do cânone para se sentir ele próprio prestigiado enquanto intérprete, e a música portuguesa fosse um sacrifício, um ónus, que não valesse a pena’.

Ora, para José Eduardo Martins, a música portuguesa vale a pena e, é sobre a sua postura enquanto músico e sobre a maneira como esse músico intérprete se manifesta e reflecte sobre as suas opções estéticas e técnicas pianísticas que aqui me vou deter. E, posto este ponto prévio, que me ajuda a melhor encontrar o caminho desta intervenção, tomo a liberdade de destacar – pelo conteúdo eminentemente musicológico, na área da interpretação, da estética e da análise musical, diria eu, pura e dura – os textos sobre Carlos Seixas, Francisco de Lacerda e sobre Fernando Lopes Graça. Evidencio, ainda, um rico e bem fundamentado ensaio académico sobre interpretação: ‘Interpretação Musical frente à Tradição – Piano como Modelo’, embora, sobre ele, dada a escassez de tempo, não possa deter-me mais do que afirmar que é uma excelente peça de reflexão estética sobre a arte de interpretar reportório pianístico. Quando, atrás usei a expressão ‘pura e dura’, pretendi deixar claro que a linguagem usada, em alguns destes textos é marcadamente técnica, e a ela não terá fácil acesso o leitor menos informado nas coisas da música e, até, em concreto, se não existir alguma experiência e conhecimento básico no campo do que especificamente respeita às questões do que poderíamos chamar ‘pianismo’ ou, mais genericamente, como o próprio autor diz, ‘tecladismo’.

Assim, a título de exemplo, quando o autor alude à ‘técnica consagrada dos cinco dedos’ para, com isso, fazer valer a tese de que o piano herdou e desenvolveu aspectos técnicos e estilísticos do cravo – instrumento praticamente esquecido durante o século XIX – vale aqui lembrar que o uso do polegar foi uma conquista evolutiva da técnica do teclado e que, em 1716, em L’ART DE TOUCHER LE CLAVECIN, François Couperin defendia, ainda, o uso de se passar o 3º dedo por cima do 2º ou do 4º evitando, assim, utilizar o polegar! A generalização do uso do 1º dedo teria ainda de esperar. Em França, citando Patrick Montan, terá sido Jean-Philipe Rameau o primeiro a defender o uso deste dedo, tratando-o ainda, inicialmente, pelo seu nome anatómico e não pelo número ‘1’ com que mais tarde se rotulou. De igual modo, quando José Eduardo Martins compara Seixas com o Scarlatti, é preciso ter noções de leitura musical e perceber tipos distintos de textura. Diz o autor, e parece-me bem, que o discurso do compositor de Coimbra apresenta traços de uma certa irregularidade técnica e musical, sendo difícil, ao executante, antever, como em Scarlatti, o percurso do fraseado. Reside aí, também, parte do encanto e da qualidade do compositor – não é previsível, numa época em que, paradoxalmente, a previsibilidade era a componente estética do conforto mental. Digamos que Carlos Seixas ‘não vai’ para onde, naturalmente, as nossas mãos e dedos acham que ‘deveria ou poderia ir’. Ora, não é fácil fazer sentir isto a quem não conheça um teclado! Contudo, o modo como o discurso é organizado – simples e sem excessos estilísticos supérfluos – e porque as ideias são claras e, note-se, bem sustentadas pela experiência prática, o difícil revela-se fácil de explicar e de entender.

Mas José Eduardo Martins não se fica por estas observações meticulosas, naturalmente mais caras a pianistas e cravistas. Aventura-se, sem receios nem preconceitos, na defesa e fundamentação das teses que sustentam o uso de instrumentos modernos na performance da música antiga. E fá-lo com propriedade dando exemplos felizes da consagração desta ideia – grandes pianistas, de sempre, não tiveram pejo em ler Scarlatti, Rameau ou Bach e só um certo fundamentalismo conservador é que não vê, não só a ausência de desvantagens como os benefícios que esta prática pode conquistar. Sobre Seixas, José Eduardo Martins mostra-nos as suas primeiras impressões através do contacto com a pianista polaca Felicja Blumental cujas gravações dos cravistas portugueses impressionaram muito positivamente Santiago Kastner, primeiro estudioso do compositor conimbricense. Esse contacto precoce com o compositor barroco português parece ter representado uma marca indelével de tal modo forte que José Eduardo Martins jamais deixaria de tocar, gravar e a estudar Carlos Seixas e toda a envolvente que a interpretação pianística de um barroco convoca, como muito bem se evidencia em ‘As Sonatas para Teclado de Carlos Seixas Interpretadas ao Piano’.

Francisco de Lacerda – uma espécie de ‘Um Açoriano em Paris’ à portuguesa e, segundo Bettencourt da Câmara, o primeiro compositor impressionista português – em boa hora abandonou os estudos preparatórios de Medicina, no Porto, para estudar música e abraçar uma carreira de nível internacional, principalmente como regente de orquestra. José Eduardo Martins, nos capítulos: ‘Francisco de Lacerda – O Açorianismo Universal’ e ‘Claude Debussy e Francisco de Lacerda: correspondências sonoras’, enquadra as opções estéticas do compositor da Fajã da Fagueira no contexto dos ousados ventos de mudança da Paris de fins de oitocentos e princípios de novecentos. As abissais diferenças sociais e culturais entre S. Jorge e Paris podem comparar-se aos radicais antagonismos entre os ensinamentos conservadores da Schola Cantorum que frequentou na cidade das luzes e os atrevimentos radicais da estética do tempo protagonizadas por um Satie, um Debussy ou um Ravel. Imagine-se o choque para quem, nos dizeres de Bettencourt da Câmara ‘O murmúrio das vagas e o soprar da brisa fresca foram os seus primeiros mestres de música’! Mas esse choque foi muito bem resolvido por Lacerda. Do concerto de hoje ficámos, (ou) ficaremos, com essa mesma impressão! Sem dúvida marcado pela presença de Debussy, José Eduardo Martins lembra-nos, não só mas também, da opção de Lacerda pelo miniaturismo nas suas ‘Trente-six Histoires Pour amuser les enfants d’un artiste’, sem dúvida, uma das marcas de estilo do compositor francês. Particularmente no artigo dedicado à comparação entre Debussy e Lacerda, José Eduardo Martins desce ao pormenor músico-interpretativo mais recôndito só possível ao grande especialista que é, também, neste campo, como intérprete e como musicólogo.

Lopes-Graça aparece referenciado neste livro em nove capítulos. Cinco desses capítulos são dedicados especificamente ao compositor de Tomar e à sua obra. O autor mostra um conhecimento profundo da obra de Lopes-Graça e lança pistas, mais uma vez muito endereçadas a um público especialista, sobre critérios interpretativos na obra pianística, assim como descreve aspectos analíticos do maior interesse e oportunidade sobre o compositor e pianista, introdutor do modernismo em Portugal. Em ‘Alguns Aspectos do Idiomático Técnico Pianístico e da Escritura Composicional em Quatro Obras Essenciais de Fernando Lopes-Graça’, a profusão de citações musicais, com a colagem no texto de excertos de partituras da obra de Lopes-Graça, requer, por parte do leitor, mesmo daquele mais familiarizado com arte da música, grande concentração e empenho. Diria que é um texto não para se ler, mas para se estudar.

Não poderia terminar sem mencionar o artigo onde José Eduardo Martins evoca a publicação recente, também pela Imprensa da Universidade de Coimbra, de ‘História Breve da Música Ocidental’. Trata-se de fazer a justiça merecida à obra, de investigador, musicólogo e professor, de José Maria Pedrosa Cardoso que, no resumidíssimo volume, consegue traçar as linhas mestras da história da música ocidental, tarefa apenas possível a quem pode, pelo profundo conhecimento, separar o essencial do acessório sem cair, ainda assim, nas malhas do banal fácil e já mais do que suficientemente repetido até à exaustão. Mas a proposta literária de Pedrosa Cardoso não é, neste livro, a de um resumo condensado. A escolha dos títulos dos capítulos revela, por si só, estar-se, realmente, perante uma outra maneira de ver e de classificar os tempos da música no tempo e, desse modo, revela-se aqui uma nova história já que história não é só a verdade mas sim, e principalmente, a interpretação da verdade.

O livro de José Eduardo Martins não é só um livro. É um livro e um CD com 40 faixas de música interpretada pelo autor. Acaso não houvesse já razões de sobra para a justificação desta edição, só o facto de se acrescentar a possibilidade de ouvir a música sobre a qual se falou, representa uma originalidade valiosa pelos grandes benefícios que transporta.

Felicito, de novo, autor e editora pela obra lançada.

Obrigado.

César Nogueira”

Acabara de finalizar o post, quando recebo do ilustre Professor Henrique Manuel S. Pereira, da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa (Porto), o comentário sobre meu livro. Compartilho-o com o leitor, que poderá acessá-lo clicando no link:

http://guerrajunqueiro.wordpress.com/2011/12/14/impressoes-sobre-a-musica-de-junqueiro/

This week’s post is a transcription of the introduction to my book on Portuguese music that was released by the Coimbra University Press last November. This introduction was written by Professor César Nogueira, musicologist and choral conductor in Coimbra.