Navegando Posts publicados em fevereiro, 2012


Extraordinária Travessia pelo Himalaia

Je ne connais qu’une manière de voyager
plus agréable que d’aller à cheval:
c’est d’aller à pied.
Jean Jacques Rousseau
(“Émile ou De l’éducation”)

Ao longo destes anos estou sempre a salientar meu fascínio pela região himalaia, não apenas pela extraordinária situação geográfica imersa em mistérios, como pelo pensamento budista em parte expressiva do entorno. Tenho inusitado prazer ao ler livros sobre essas duas características essenciais encontráveis nessa extensa cadeia montanhosa. O maravilhamento vem da adolescência e estou a me lembrar de uma primeira leitura de curtos textos, plenos de ilustrações, em O Mundo Pitoresco, essa fascinante coleção que encantou meus primeiros anos, assim como da revolta que senti ao ler, nos idos dos anos 50, um livro do Dalai Lama, já no exílio, sobre o massacre do povo tibetano empreendido sistematicamente  a partir da invasão chinesa. As décadas se passaram e milhões de tibetanos tiveram de fugir ou foram exterminados. O Ocidente diplomaticamente sempre se manteve silencioso.

Se de um lado essa admiração romântica pelo Himalaia faz parte de meu pensar em momentos de serenidade, mantive sempre uma recôndita vontade de um dia pisar essa região. Quem sabe no próximo ano, acompanhado de minha filha Maria Beatriz, possamos realizar esse sonho e visitar o Nepal e o Butão, empreender caminhadas albergando em monastérios e durante umas semanas ser “romanos em Roma”, como reza o ditado.

Em Janeiro de 2011 adquiri em Paris alguns livros do aventureiro solitário e corajoso Sylvain Tesson, tendo comentado em um post dois livros que me encantaram (vide As Incríveis Aventuras de um “Vagabond” – Sylvain Tesson. 28/05/2011) ). Nestes dois últimos meses tive como companhia, nessa leitura antes do sono reparador, a longa narrativa de Alexandre Poussin e Sylvain Tesson, que realizaram em 1997 uma extraordinária caminhada de 5.000km através da região do Himalaia. Toda a vasta área foi percorrida a pé pelos dois intrépidos andarilhos, numa aventura não sem grandes riscos e um tanto quanto visionária (La Marche dans le Ciel – 5.000km à Pied à travers l’Himalaya. Paris, Robert Laffont, 1998, 398 pgs.). O percurso pela Transhimaláia durou seis meses, exatos 174 dias, e os 5.000km sofreram desníveis de altitude inimagináveis, que corresponderam a 121.000 metros!!! Dezenas de vistos, clandestinidades por vezes, prisões breves em determinadas fronteiras, mas a travessia iniciada no Butão, a passar por tantos países montanhosos até a chegada ao Tadjikistão, bem demonstra a intrepidez e a determinação desses jovens andarilhos franceses. Os dois moços tiveram, inclusive, o destemor de atravessar o Tibete, hoje a pertencer lamentavelmente à República Popular da China, sem vistos, “driblando” pois todos os caminhos e atalhos que pudessem colocá-los frente a frente com autoridades chinesas!

Alexandre Poussin e Sylvain Tesson têm um passado marcado por incríveis travessias. Em 1994 os dois percorreram de bicicleta 25.000km pelo mundo e atravessaram 35 países. Desenvolveram separadamente, Alexandre com sua mulher Sonia e Sylvain sozinho, outros tantos percursos memoráveis a pé. Seus livros têm a maior acolhida entre aqueles que gostam desse gênero de literatura.

Essa longa travessia abrangeu as regiões do Butão, Sikkin – Estado ao norte da Índia -, Nepal, China (Tibete), Índia, Paquistão, Afeganistão e Tadjekistão. Minuciosamente, o prolongado percurso teve cálculos prévios, como o peso da mochila pensada a não conter nem um grama a mais dos cinco quilos. Essa sábia atitude teve seu tributo a pagar, pois tiveram de se contentar com alimentos que porventura pudessem encontrar nos seus – circa – 50km de caminhada diária.

Seguir as narrativas de Alexandre Poussin e Sylvain Tesson, que alternam a autoria dos textos em La Marche au Ciel, é agradável, pois o primeiro é mais dionisíaco. Não poucas vezes, metáforas e observações quanto às mudanças das incontáveis paisagens encantam Poussin num estilo a lembrar por vezes Saint-Exupéry, enquanto o segundo é mais pragmático em suas observações, apolíneo diria, e a extraordinária façanha solitária, a reviver epopéia a partir de um gulag na Sibéria ao golfo de Bengala, comentada no post mencionado, é exemplo típico. Essa alternância propicia uma harmonia no todo devido aos olhares diferenciados de cada percurso realizado. Sempre, a anteceder cada narrativa, local, data e altitudes flutuantes.

Um dos interesses do livro reside na resistência humana frente a tantas adversidades. Os desníveis da altimetria nesse incessante sobe-desce, das poucas centenas de metros, quando nos vales, aos 5.000 e tantos metros, adaptações rápidas; alimentação quase sempre precária à base de sopa de massa, biscoitos, chocolate e tsampa, comida característica do Nepal, Tibete e no entorno dessa vasta região; muita água. Por vezes dois ou três dias sem nada comer, mas sempre a caminhar. Poussin e Tesson revelam dados, até de ordem sociológica, ao comentar a hospitalidade dos habitantes encontrados, que nunca recusavam oferecer chá, dividiam as parcas refeições, propiciavam algum espaço para o descanso. Tão logo se apresentavam para budistas (Butão, Sikkin, Nepal, Tibete) ou muçulmanos, no caso nas regiões do Paquistão, Afeganistão ou Tadjikistão, havia a acolhida, pois sabiam-nos peregrinos. No isolamento dos grandes desfiladeiros ou ao percorrerem vales profundos, um só pensamento estava a pairar, ou seja, completar a longa marcha. Como bem escreve Poussin: “A cada terreno corresponde um caminhar diferente, uma abordagem nova”. Inúmeros rios e corredeiras foram transpostos, gelados ou menos gelados, encostas abruptas contornadas, gelo, neve, chuvas torrenciais, o andar à noite quando a lua poderia auxiliar com sua luminosidade artificial.

A comparação que Tesson faz entre Nepal e Tibete é digna de registro. “O Tibete se revela como tal: um planalto de vento. Caminhamos dez a doze horas diárias com vento pela frente e por trás. Por vezes 70km, não sabemos outra coisa que andar”. Continua: “O que nos droga é o horizonte sem limites. A imutabilidade dos panoramas. A fuga do espaço, à medida que avançamos. O caminhar no Nepal nos habituou, contrariamente, às perspectivas do sous bois. Víamos raramente mais do que dois ou  três quilômetros, exceção às encostas. Aqui, no Tibete, os espaços são consideráveis. Temos a impressão  de caminhar em um quadro. Cada horizonte instala-se como uma decoração petrificada, a ser necessário percorrer 50 a 60km para modificá-la”. Será Tesson que na Cachemira terá uma sensível observação sobre os seus sapatos de todos os dias. Digna do filósofo alemão Martin Heidegger ao estudar os de um camponês, eternizados em quadro de Van Gogh.  Escreve o aventureiro: “Como um convite para partir, um sapateiro flutuante nos traz em seu barco, uma manhã, os sapatos estourados que lhe confiamos há dias. Ele os deixou novos. Os reparos efetuados desde o Nepal se sobrepuseram: há peças de couro tibetano, costuras chinesas, ligaduras com fio de nylon – os patchs do norte da Índia – e, presentemente, os consertos da Cachemira. Não são mais sapatos, são cartas geográficas impressas em palimpsesto”.

Ambos os caminhantes, à la manière de pigmaleões, são budistas nas regiões onde a religião é majoritária e “seguidores” do Islã ao atravessarem territórios predominantemente sunitas. Fazem-se passar por muçulmanos bósnios, mas são sempre bem acolhidos, sentindo a imediata relação afetiva tão logo adentram quaisquer lares. Tesson tece interessante observação ao abordar in loco a problemática do conflito Índia-Paquistão: “Os muçulmanos indianos recusam, no caso de um conflito aberto contra o Paquistão, enfrentar outros muçulmanos e, para certos combatentes, a subordinação à nação se apaga diante do sentimento de uma disputa religiosa comum com o adversário”.

Chega mesmo a ser jocosa a narrativa dos inúmeros problemas que tiveram nas fronteiras do Tibete, da India – sempre receosa de uma incursão chinesa, segundo eles -, do Afeganistão e do Tadjequistão, país este com forte controle dos russos nos limites geográficos. Como não lutam com o tempo, “deixam-se” aprisionar e, após serem levados a algum centro distante das fronteiras, mas onde uma autoridade maior decide, são julgados, “presos” por dias ou horas e libertos. Contudo, preferem retornar ao ponto onde foram interceptados, a fim de realizar o trajeto, antes percorrido por jipe ou caminhão, a pé. Daí a satisfação da conclusão em Horog, no Pamir, dos 5.000km à pé.

Uma narrativa da pena de Alexandre Poussin ao narrar um aclive acentuado: “A elevação é fulgurante; o anfiteatro montanhoso, azulado pela luz do luar, nos invade pela grandeza e serenidade. O silêncio é espacial, o vazio, um mar de tranquilidade”. A descrição do vale do Wakhan, no Afeganistão é também plena de lirismo e emoção, ao lembrar-se Poussin de Alexandre,  Marco Polo, um vale “que pela primeira vez não se apresenta anônimo, pois nos fala da história, do choque das armas, lutas e conquistas. Estão tão longe nossos pequenos vales nepaleses!”

O não compromisso com veículo de comunicação dá-me a liberdade de resenhar e comentar. Se as resenhas surgem na medida em que obras novas chegam às minhas mãos, nem por isso deixo de ter a alegria ao comentar livros publicados bem anteriormente. Proporcionam-me o equilíbrio? Talvez. Agradam-me? Sempre.

An appreciation of the book “La Marche dans le Ciel”, written by the French adventurers and travel writers Alexandre Poussin and Sylvain Tesson. Both trekked across the whole length of the Himalayas, from Bhutan all the way to Tajikistan. The epic adventure – that even involved being arrested – was recorded in this book, describing the perils of the wilderness, their encounters with different cultures and characters and the beauty of remote lands.

Em Torno dos Posts Cáusticos

As nuvens são fugidias, mas a lua é permanente.
Provérbio do Butão

Conheci Sandra há cerca de uma década nos espaços dos supermercados de nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Com certa frequência a encontro e sempre trocamos algumas palavras prazerosas. Desta vez, Sandra foi incisiva ao dizer que, apesar de ter gostado de posts em que critico o Sistema, o governo e os segmentos econômicos e financeiros, acha-me por vezes desesperançado, mormente quando me refiro, reiteradamente, a determinadas situações: “nada a fazer”.

Em torno desse “nada a fazer” conversamos longamente enquanto  tomávamos um suco de abacaxi no Natural da Terra. Tentei explicar-me. Para Sandra, esse “nada a fazer” soava imperativo. É bem provável que também para muitos. Ao referir-me, no blog de 4 de Fevereiro,  a esse impasse ético e moral no Big Brother Brasil e à degradação dos costumes que o programa acarreta, disse-lhe que recebi inúmeros e-mails sobre o blog, entre esses três vindos de França e de Portugal, atestando  a repulsa hoje a esse tipo de programa. Comentei para Sandra o teor dessas mensagens, que transcrevo ao leitor.  Joana Gabriela, de Lisboa, observa: “Devo dizer-lhe que em Portugal exibiram recentemente um programa idêntico ao Big Brother que, tal como aqui, fez sucesso, e chega a ser triste o que lá se vê. Jovens entre os 18 e 30 e poucos anos, pouco instruídos, a maioria com extremo baixo nível cultural e intelectual. Espantou-me o elevado preconceito e machismo revelado por aqueles jovens, ainda para mais tratando-se de jovens – seria de esperar que tivessem a mente mais aberta, outra capacidade de ver e encarar assuntos como a homossexualidade, por exemplo. Pode dizer-se que é um lamentável exemplo da juventude portuguesa. E não nos iludamos: a grande maioria será assim mesmo. Só para ter uma noção: uma das jovens respondeu da seguinte forma à pergunta “diga um país da América do Sul”, ‘hmmm….não sei….África?’  Há quem diga que havia uma certa manipulação da produtora do programa, que indicaria à tal jovem o que tinha de responder, mas que muito daquela total falta de noção de tudo era verdade. Eles nem sabiam quem é o atual Presidente da República ou o Primeiro Ministro de Portugal! Será possível tal falta de informação?” François Servenière penetra na mesma seara: “ Tivemos o mesmo aqui em França a partir de programas horríveis onde os jovens se prestavam à cenas a beirar a pornografia direta. Não me recordo do nome da emissão, mas esses programas tiveram repercussão e desapareceram das antenas francesas. Ou seja, após um grande sucesso de audiência, essa tele-‘lixo’, como era denominada aqui, acabou por enojar o público antes mesmo de chateá-lo”. Idalete Giga escreve do Alentejo: “Gostei muito do seu texto O Nada Transfigurado no Tudo- Três exemplos hodiernos. O que mais me impressiona nas sociedades de hoje é, de facto, a imbecilidade colectiva, a ‘alienação globalizada’ , o ‘tzunami do nada’  muito bem afirma. A questão do Big Brother é o exemplo mais asqueroso, eu direi mesmo debochado que a televisão alguma vez apresentou. Não há palavras para classificar esta trampa televisiva. Mas há quem goste de trampa (!) e ela continua a ser servida sem o mínimo respeito pelos telespectadores decentes que ainda sabem distinguir o trigo do joio e protestam contra a imbecilidade colectiva, sem que alguém lhes dê ouvidos”.

O drama que envolve o “nada a fazer” é que em nosso país a educação está sucateada e é uma das últimas reais preocupações do governo, juntamente com a segurança e a saúde. A conhecer todas essas mazelas, a corrupção, mãe generosa que acolhe desvios do orçamento e todos outros tipos de suborno. Povo despreparado se deixa iludir facilmente, e a Rede sabe muito bem os caminhos que levam à grande audiência e nela se estabilizar. O “nada a fazer” é a certeza de que a educação continuará em estado agonizante e, sem ela, a esperança fenece.
Sandra tem o perfil da mulher da esperança. Confiante. Trabalha no departamento jurídico de uma multinacional. Ela acredita que nossa televisão aberta estará mais tarde em patamar de excelência, assim como a “música” sem qualidade deverá dar lugar novamente às manifestações musicais que, para ela, são inesquecíveis. Mencionou entusiasmada Bing Crosby, Frank Sinatra, Tony Bennett, Ella Fitzgerald, Bill Evans, Charles Trenet, Yves Montand, os Beatles, Elvis Presley, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Elis Regina, Astor Piazzolla. Aprovei in totum. Observei ainda que essa viagem no tempo, que também é parte da minha quanto à música popular, não teve repetição, e que mais e mais “ídolos” forjados no presente estarão esquecidos em prazo curto, pois o Sistema assim opera, a cada ano mais dolorosamente acelerado. E quanto à musica erudita, qual é o processo, perguntou-me?  Sob outras condições, é evidente, mas o Sistema, por múltiplas razões, privilegia uns poucos, nem sempre os melhores. Na mínima fatia reservada à música também denominada de concerto ou clássica quantidade de intérpretes surgem anualmente e apenas alguns permanecem e, mesmo nessas condições, entre esses sobram pouquíssimos, pois o Sistema tem a necessidade imperiosa de “renovar”. Essa mutabilidade, que faz o “famoso” hoje desaparecer na aurora seguinte, tem, sobre outra égide, alguma semelhança com outra mutação, aquela que faz um celular com mil funções ser suplantado pouco após seu lançamento por outro com algumas mais inovações. E esse é apenas um exemplo entre tantos outros que não se estabilizam, não ficando sequer na memória das pessoas. Quando mostrei a uma neta um celular “antigo”, ela achou que aquilo poderia ser tudo, menos um telemóvel, como dizem os portugueses. Estamos na era do descartável  e da “novidade” e temos de a ela nos acostumar ou, ao menos, observá-la com prudência, pois corremos sérios riscos de nos tornar prematuramente jurássicos. Sandra sentiu-me ainda mais cético. Expliquei-lhe que estou com problemas sérios com o computador – apesar de ter técnico competente a assistir-me e meu grande amigo Magnus a me tirar de sufocos permanentes via fone – e, ao adquirir um laptop como alternativa para não ficar no apagão informático, mais me certifiquei de que pouco a pouco, com o desenvolvimento tecnológico, as defasagens  se acentuam, mormente na minha faixa etária. Difícil  acompanhar inovações nessa área. Nessa área, friso.

Perguntou-me, finalmente, se acreditava naquilo que me era familiar: música e textos. Respondi-lhe que aí estavam meus portos seguros. O piano e o vasto repertório que montei ao longo das décadas e os textos que fluem como água em uma nascente. Se continuo a buscar o repertório de excelência, do barroco ao presente – todos os anos, paralelamente ao acervo sedimentado, incluo novas e extraordinárias obras – só não me dedico, presentemente, às criações composicionais experimentais. Como elas pululam!!! Geralmente não resistem à uma primeira audição. Enquadram-se na mutabilidade, pois o multidirecionamento pessoal e arbitrário namora facilmente o perecível.

Ainda tivemos tempo para passar pela secção da padaria e comermos pão de queijo que acabara de sair. Impossível permanecer cético nessas condições, disse-lhe, não sem alegria.

A conversation with a friend about one of my last posts and the feeling of hopelessness that comes from my perception that there is no way out from our chronic problems: decay of moral values, failure of the state education and health systems, lack of faith in public safety policies, the pursuit of money and the ephemeral above all else in the information age.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Patrimônio Musical Português em Pauta

Reiteradas vezes escrevi sobre a importância de uma revista de qualidade sobre Música escrita por experts como fator imprescindível para a ventilação de conceitos que devem permanecer. Sem bairrismos ou apadrinhamentos, todas as publicações isentas desses vícios podem conter fontes raras para a pesquisa. Foi o que buscamos fazer durante cerca de 17 anos como editor responsável da “Revista Música” da Universidade de São Paulo, desaparecida após minha aposentadoria em 2008. Ao longo dos anos tenho acompanhado a publicação de inúmeras revistas sobre música do Exterior, umas centradas em um único compositor excelso, outras analíticas estritas e outras mais que, ao proporem o multidirecionamento temático ou a precisão geográfica, cumprem objetivos relevantes.

“Glosas”, publicação do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa – MPMP, tem periodicidade semestral e já está em seu quarto número. Tem cumprido com determinação, em tempos econômico-sociais críticos em Portugal, a missão de não apenas resgatar valores expressivos ou mesmo olvidados da música portuguesa, como criar um rico depositário de opiniões, geralmente inéditas, através dos resultados de entrevistas e artigos específicos sobre determinado autor.

Anteriormente já abordara “Glosas” 2 (vide Revista de Mérito – “Glosas” – O Respeito à Música pouco Frequentada. 14/01/2011). Daquele número ao presente, independentemente do visual aperfeiçoado, “Glosas” focaliza na abrangência personalidades de relevo da música em Portugal, assim como apresenta interessantíssimas contribuições não pertencentes a um núcleo temático.

A homenagem prestada a António Victorino de Almeida (1940- ) é mais do que oportuna. Compositor de mérito, pianista, escritor, comunicador nato nos meios da mídia, realizador televisivo e cinematográfico, musicógrafo, Victorino de Almeida surpreende sempre através de seus conceitos, tantos deles polêmicos. Preliminarmente, o estudo sobre ele, que ocupa 26 páginas de “Glosas”, tem a clarificação de vários músicos e competentes articulistas que buscam desvendar segmentos secretos dessa figura singular na música portuguesa. Eurico Carrapatoso, Sérgio Azevedo, Mário Zambujal, Fernando Rocha, Carla Seixa e José Fortes, diversificadamente, penetram nesse multidirecionamento humano e Victoriono de Almeida pode ser apreendido em parte. A recuperação de entrevista realizada por Francine Benoît com o talento emergente em 1948 corrobora o entendimento de algumas tendências atávicas do ilustre músico. A rica entrevista que segue esses depoimentos, concedida a Duarte Pereira Martins, se de um lado faz-nos lembrar conteúdos já expressos em livro de raro interesse (António Victorino de Almeida conta 50 anos na Música a Paulo Sérgio dos Santos. Portugal, Quimera, 2005), sob aspecto outro revela-nos o compositor curioso, mas cônscio de sua empreitada. Victorino de Almeida não expressaria nesse depoimento que “realmente eu lutei a vida inteira por salvar um conceito de música. Música! E não um conceito de experiência”? Confissão que se casa com a opinião de outro compositor de alto quilate, Eurico Carrapatoso, ao abordar a extensa criação do homenageado: “A música de António Victorino de Almeida aparenta ser conservadora, muitos dirão. Vá-se lá saber se não é por isso mesmo que a melodia victoriniana é tão generosa, tendo a harmonia, de tamanho aplomb, o rasgo próprio da química dos fluídos? E o ritmo, que é tão vivido e vivido! E a orquestração (verdadeiro motivo de inveja), que refulge como o oirinho reluzente da Ceuta quatrocentista (citando Borges Coelho, o historiador). E a forma de sua música, entrocada como o bucéfalo, que respira profundamente como o roncopata: das depressões de Morfeu aos picos de nos fazerem ranger os dentes. Não é esta a função original da música, afinal? O poder de alterar estados de consciência?”

A qualidade encontrada em todo esse tributo a António Victorino de Almeida se expande em tantas outras preciosas contribuições que particularizam temas de interesse. Relevante a entrevista que o compositor e diretor artístico Jorge Salgueiro (1969- ) concede à Mónica Brito. Salientemos duas observações contundentes de Jorge Salgueiro, autor de aproximadamente 180 obras. Perguntado a quem ofereceria a revista “Glosas”, afirmaria: “Ofereceria a uma dessas pessoas que tomam decisões e que afastam os portugueses de seu país”, e à questão de um novo Jorge Salgueiro, acrescentaria: “Ainda sou novo, tenho esperança. Posso vir a mudar o pensamento do século XXI, porque não? Senão tivesse sonhos, e permanecesse apenas o lado lúcido e consciente, suicidava-me. Eu e os outros. Se não fôssemos inconscientes, no sentido de ainda sonhar, não havia criação. É esse sonho que nos faz criar a todos, a cada pessoa, não só o artista. Somos o centro do nosso mundo. Ainda que as tenha perdido, continua a ser o centro do universo. É como nós, os artistas. No sonho tudo é possível”.

Como se não bastasse o material rico para a cultura portuguesa contido em “Glosas” 4 e esboçado acima, artigos outros mostrariam o debruçar de pesquisadores sobre temas, muitos deles de total ineditismo. Destacaria a contribuição de Manuel Pedro Ferreira: “A propósito dos 750 anos do nascimento de Dom Dinis, trovador”; de João Paulo Janeiro, acurado estudo sobre o compositor napolitano David Perez (1711-1778), que, a partir de 1752, tanta contribuição prestou à música portuguesa; de Piedade Braga Santos, filha do compositor Joly Braga Santos (1924-1988), um comovente testemunho a respeito da amizade deste com Jorge Peixinho (1940-1995). A gregorianista e professora Idalete Giga faz levantamento precioso em “A música nos Salões Particulares de Lisboa no fim do século XX e na primeira década do século XX”, tecendo profícuos comentários e a enumerar salões do período e seus promotores. Considere-se igualmente o arguto artigo de Luís C.F. Henriques, em que focaliza o “Cosmopolitismo Musical na Cidade da Horta no Final do Século XIX”. Dentro da linha editorial da revista, que se propõe sempre evidenciar um músico não devidamente estudado, coube a André Vaz Pereira traçar perfil específico em “A obra para piano de Manuel Faria – uma primeira abordagem”. Tem-se ainda, na secção “Compositores a Descobrir”, um merecido estudo sobre a figura impecável na música portuguesa, o Padre Tomás Borba (1867-1950), professor do Conservatório Nacional e imortalizado através de sua atuação, durante décadas, como Diretor Artístico da Academia de Amadores de Música. Teve como seu mais ilustre aluno o grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994).

Contribuí para o nº 4 com artigo a abordar “Canto…” Primeiro de Fernando Lopes-Graça. Publicado no mesmo período em meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa”, editado pela Imprensa da Universidade de Coimbra em Novembro último, o texto aborda “Canto de Amor e de Morte” do compositor em seu original, pois conheciam-se apenas as duas versões realizadas pelo músico, para quarteto de cordas com piano e orquestral, respectivamente.

A ausência de interferências, que tantas vezes afeta a homogeneidade de textos diversos de uma determinada área em revistas espalhadas geograficamente, está a ser preservada na revista portuguesa. Sente-se em “Glosas” um propósito, uma identidade. Que assim persista

A few comments on issue nº 4 of Glosas, the music magazine with news, interviews and articles covering the world of classical music in Portugal.