Recital de Piano no Instituto Dante Pazzanese

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens…
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Cecília Meireles

Comemora-se, de maneira oficial ou independente, o ano Portugal-Brasil ou Brasil-Portugal,  quando tanto os Estados como a iniciativa privada propõem eventos variados.

Já havia me apresentado no referencial Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia (2011), em recital dedicado ao bi-centenário de Franz Liszt (1811-1886). Sensível às comemorações luso-brasileiras, a ilustre Diretora Geral da Instituição, Doutora Amanda Sousa, convidou-me para dois recitais com programação diferenciada. O primeiro recital foi igualmente a pensar no Jubileu de 70 anos e no Curso Intensivo de Cardiologia e deu-se no último dia 14 de Março. No programa, obras-primas compostas por autores dos dois países: Francisco de Lacerda (1869-1934) e Heitor Villa-Lobos (1887-1959). O segundo dar-se-á em Agosto.

Em 2011 apresentei em sete cidades portuguesas as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste, do compositor açoriano Francisco de Lacerda. Como muitas da histórias têm caráter programático – Lacerda insere frases a determinar o correr da história -, o notável professor da Universidade de Coimbra José Maria Pedrosa Cardoso preparou um data show sensível e pleno de interesse para o ouvinte acompanhar o desenrolar das pequenas histórias. Tratava-se da primeira vez que as 36 Histoires…, pouquíssimo tocadas, eram apresentadas nessa formatação. No recital utilizamos o material gentilmente cedido pelo professor Pedrosa Cardoso e um meu aluno de música, Paulo Marcos Filla, generosamente encarregou-se de passar o data show.

Aquilo que defendo há décadas tem nessa obra prima de Francisco de Lacerda o exemplo típico. O Sistema parece não admitir a redescoberta que poderá vir a conflitar com o repertório superconhecido e confortável para intérpretes, público e empresários. Se essa atitude está presente quanto às criações excelsas do passado, transfere-se igualmente para o contemporâneo qualitativo. Recentemente, o compositor François Servenière observou em um de seus instigantes e-mails: “Escrevi em uma de minhas canções, que se chama Voyageur, a frase: ‘Viajante, seu destino é partir alhures…’. Sim, o viajante, em corpo e espírito, tem o movimento inscrito no cerne de suas preocupações, de suas necessidades e de seus desejos. O movimento é uma segunda natureza… Para o momento e por motivos objetivos, eu viajo pouco fisicamente, mas muitíssimo sob a égide do espírito, buscando organizar meu futuro para conseguir o equilíbrio do todo. É por isso que compreendo e admiro sua atitude, mesmo a considerar a sua idade, ao não se satisfazer com a aquisição já sedimentada de obras do repertório da tradição, indo sempre à procura não apenas do passado esquecido, mas atrás da última fronteira do que está a acontecer, encomendando sem cessar novas obras aos compositores de mérito”.

As consagradas criações de nosso grande Villa-Lobos, Impressões Seresteiras e Dança do Índio Branco, pertencentes ao importante conjunto Ciclo Brasileiro, concluíram o recital.

Teria de considerar a relevância de manifestação artística em Congresso de alto nível, que contou com a presença de renomados cardiologistas do país e das Américas. No dia do recital, a visão de um piano de concerto entre as mesas de palestrantes e debatedores dava bem a noção da presença sonora que aconteceria ao final das sessões. Numa metáfora bem amalgamada, diria que a música, a estabelecer a expressão dos sentimentos e, por que não, do “coração”, espalhou-se pelo Auditório Cantídio de Moura Campos Filho. O numeroso público, constituído por ilustres congressistas, residentes, estagiários e convidados, ouviu com o maior respeito as obras apresentadas.

Ao finalizar as Trente six histoires… de Francisco de Lacerda, a recepção pública não foi inferior às duas consagradas criações de Villa-Lobos. Se ao Sistema não interessa o repertório pouco frequentado, caberá ao intérprete ter a coragem de enfrentar desafios. A acolhida apenas encoraja o velho intérprete a buscar novas fronteiras. Há maior alegria do que acreditar no desbravamento de outros horizontes?

Agradeço imenso à Diretora Geral do Instituto Dante Pazzanese, Professora Doutora Amanda Sousa, que acatou o projeto imediatamente ao tomar conhecimento da magistral obra de Francisco de Lacerda. Figuras relevantes não dão guarida à evasiva. A  Diretora Geral é exemplo desse acreditar. E resultou. Foi uma ocasião que ficará gravada pela qualidade insofismável das obras apresentadas, escritas por grandes “maratonistas” e interpretadas pelo pianista, corredor de revezamento que necessariamente um dia passará o bastão a outro corredor nas mesmas condições. Efusivos parabéns ao Instituto Dante Pazzanese,  referência plena em Cardiologia.

2012 is officially the year of Portugal in Brazil and of Brazil in Portugal and a series of cultural events in various areas will take place. Invited to give a recital at the Dante Pazzanese Institute of Cardiology, I chose to present, getting in the spirit of the year and as usually trying to avoid the standard repertoire for piano, Francisco de Lacerda’s masterpiece “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste” and Villa-Lobo’s “Impressões Seresteiras” and “Dança do Índio Branco”. The reception was enthusiastic in both cases, proving my point that the audience is open to challenges, but most interpreters are reluctant to explore new horizons.