Navegando Posts publicados em abril, 2012

Realidades

Não há homem algum que não possa ser elogiado;
às vezes os assassinos têm pontaria excelente;
e não existe homem algum que não possa ser censurado;
houve santos que não tomavam banho.
Agostinho da Silva

Tivemos ultimamente uma série emocionante de eventos envolvendo modalidades esportivas. Com a aproximação das Olimpíadas, mais acentuadamente o tema toma dimensões. Admirador dos esportes em geral, assisti a algumas competições de atletismo nessa preparação final para o grande acontecimento esportivo a cada quatro anos, assim como decisões emocionantes de modalidades coletivas, como as das Ligas masculina e feminina de vôlei. Impressiona o número crescente de público que assiste aos jogos de que participa a  nata do vôlei mundial. Não há mistério, pois quando a qualidade extrapola a normalidade, todos prestigiam. Também a decisão do basquete feminino, apesar de desnível claro em relação ao vôlei,  foi um belo acontecimento e a vitória da equipe de  Americana, bem justa.

As Fórmulas Indy e 1 têm adeptos ferrenhos, se é que podemos considerá-las modalidades esportivas, mas a ausência de brasileiros que possam lutar pelo pódio na F1 diminui o entusiasmo. Não obstante, seria possível entender o crescente apelo pela Indy pelo fato de que alguns brasileiros são muito bons. Quanto ao tênis, nossos jogadores são coadjuvantes de uma ou quiçá duas partidas em torneios internacionais; portanto, longe estão de figurar entre os top ten. Belos tempos de antão, quando Maria Esther Bueno e, mais recentemente, Gustavo Kuerten, o Guga, encantavam multidões. Esperemos que um dia mais um gênio da raquete alegre entusiastas pela bolinha. Como leigo, observo o grande avanço que há anos o vôlei conquistou ao eliminar o segundo saque. No tênis torna-se incompreensivel, hoje, o segundo ou terceiro serviço, o que propicia, por vezes, jogos intermináveis e enfadonhos, pois todo tenista despeja a sua força no primeiro saque, com direito a reconsiderar a jogada se a bolinha bater ou tocar de leve na rede. Entendo como atraso histórico, mormente após a decisão da Federação Internacional de Voleibol (FIVB) ter eliminado essa verdadeira “chatice” do segundo serviço,  tornando os jogos emocionantes. Considere-se o fato de que o tênis longe está de ser esporte do povo entre nós.

Quanto ao futebol pátrio, é lamentável o quadro presente. Estádios com pequeno público, mesmo em jogos importantes,  vedetismos,  extravagâncias de alguns jogadores e, sobretudo, uma deficiente condição de nossos técnicos de futebol. Os mais conhecidos já passaram por muitos clubes. Vão e voltam. Hoje, qual deles teria sequer a condição de receber convite de um grande time europeu? Quando muito Japão, leste da Europa, países árabes… Técnicos modernos e atualizados têm dado provas no velho continente de que ficou no passado o conceito da primazia de nosso futebol. Meu bom amigo Vital já definia a realidade brasileira: “técnico é bom quando entra, melhor ainda quando sai”. Durante anos o Brasil figurou no topo da lista de seleções promovida pela FIFA. Despencou. Não se veem táticas inovadoras, mas chavões em campo, repetições ad nauseam do decantado “chuveirinho” e de determinadas jogadas, desinteresse no desarme, erros elementares e abusivos de passes, lentidão, excesso de lances faltosos, verdadeira queda de qualidade futebolística se comparação for feita com o que se pratica na Europa, arbitragens por vezes eivadas de equívocos grosseiros, chaga das torcidas organizadas a afastar o verdadeiro público ordeiro. Para o dirigente de clube, deve ser um martírio observar estádios lotados, campos impecáveis e táticas inovadoras d’além mar. Como se está a jogar bem na Europa! Que abissal diferença com o futebol praticado na América do Sul e a Libertadores da América é exemplo perfeito do desnível a que chegou o futebol do Continente. Mais e mais encontramos entre nós, graças à televisão, torcedores dos grandes times europeus, pois quem gosta de futebol admira o bom jogo. Está-se a praticar na Europa um futebol rápido, inteligente, com poucos erros de passes, movimentação constante e jogadores realizando várias funções. Estamos, no Brasil, a quase atingir a era dos quelônios, pois é lento, muito lento o futebol praticado no país. Sob outra égide, quando as câmaras focalizam alguns estádios daqui e do continente, pode-se verificar a indigência. Campos sem grama e sem drenagem adequada, arquibancadas velhas e sujas, estrutura geral digna de pena. Em blog bem anterior escrevi que os times do hemisfério sul não teriam o menor fôlego qualitativo para enfrentar, integralmente, determinados campeonatos europeus, e que nosso nível continental estaria à altura da segunda divisão dos países de ponta do velho continente. Realidade  insofismável. Quando talento desponta nos gramados brasileiros, uma enxurrada de empresários  cobiça o jovem e este, imediatamente, passa a sonhar com a Europa.

A Portuguesa de Desportos findou o Campeonato Nacional da série B de 2011 com 17 pontos de vantagem sobre o segundo colocado. Uma façanha, aparência da realidade. Antes do início do Campeonato Estadual, a lusa vendeu seus principais jogadores, enquanto os quatro grandes compraram jogadores de bom nível e até os times menores fizeram contratações. Àquela altura, disse aos meus amigos aposentados, que se encontram todos os dias na mesma esquina, que tinha a convicção plena de que a Portuguesa iria para a série B do Paulistão. Não acreditaram. Sucessivas diretorias não profissionais, dirigentes emotivos, sem preparo para a condução do futebol-empresa, destruíram todas as chances da equipe. Membros da grande colônia portuguesa sempre dirigiram a Associação. Não há o menor profissionalismo, pois todos amadores no mister da direção esportiva. Creio que o técnico é o culpado menor, pois o que fazer diante da incompetência superior? A Portuguesa de tantas tradições foi humilhada e a queda para a segunda divisão do Campeonato Paulista, absolutamente previsível. Também durante o desenrolar da primeira fase do denominado Paulistão disse aos amigos que, para o Campeonato Nacional que terá início brevemente, três equipes deverão cair. Responderam-me que são quatro, ao que retruquei que o quarto já é certo, a Portuguesa. Sob outra égide, como torcedor da lusa, mas felizmente distante do sentimento de paixão, o que me levou a ir ao Estádio do Canindé apenas três vezes desde a inauguração há décadas,  não poderia, seria lógico deduzir, verter emoção por equipe que, desde o saudoso Oswaldo Teixeira Duarte, é dirigida por não profissionais. Meu irmão João Carlos, Vital Vieira Curto e tantos outros, ainda apaixonados pela lusa, convidam-me frequentemente, mas sempre declino. Defendo há muito tempo que, devido ao número ínfimo de torcedores e ao amadorismo das sucessivas direções, deveriam extinguir o futebol profissional ou fundi-lo com qualquer outra agremiação, como fizeram no Estado do Paraná, com certo êxito.  Seria um bem incomensurável para o Esporte. Há tantas outras modalidades a que a Associação Portuguesa de Desportos poderia dedicar-se! Seria mais digno, creio eu. A vaidade diretiva permitiria? A paixão exacerbada de uns poucos torcedores concordaria? Acredito que não, e as sucessivas humilhações deverão continuar, para nostalgia dos saudosistas e aborrecimento para os que ainda confiam.

This post is about sports in Brazil. As a fan of sports events, I can only regret the situation when compared to that of other countries. Apart from volleyball, that has had many achievements in the last decades and enjoys rising popularity, and the women’s national basketball team that also improved a lot, everything else is decadent. In Formula One, for years we have not seen drivers that can level with the notable ones of the past; in tennis tournaments the country is merely a bad supporting actor, with uncompetitive players. But it is in football, the national passion, that decline is at its peak. With stadiums in shameful conditions, shrinking audience, 2nd rate coaches, low level performances and the “prima donna” status of some players, the once almost unbeatable Brazilian squad is a shadow of what it used to be. The opposite is seen in Europe: first class soccer stadiums without empty seats and top players that really give a show: precise attack, possession of the ball, passing it around with accuracy in quick touches, runs and speed, technique and tactics. It is football at its best, while our football today could be compared to that of the 2nd Division of some European countries. We should learn from them!

 

Caminhos do Eterno Desafio

Quando escalo uma montanha
me sinto mais próximo de Deus.
Vitor Negrete

Vitor me avisou que não tinha medo da morte.
Ficava triste por ser filho único justamente por causa disso:
se ele morresse, o que aceitava como natural
dado o esporte que praticava e seu grau de envolvimento com ele,
causaria muita tristeza aos seus pais.
Marina Soler Jorge

Continua desde a adolescência meu fascínio pelos intrépidos aventureiros que neste planeta deparam-se com os mais difíceis desafios no mar, na terra e no ar. A ideia que leva à concretização de feitos heróicos por parte dessa parcela infinitesimal de visionários teria origem em exemplos familiares, reais, literários ou, presentemente, através da multiplicidade de documentários estimulantes. O homem a buscar seus limites físico-mentais. Desde o livro que meus pais me ofereceram nos meus 10 anos (Wilhelm Treue. A Conquista da Terra, Rio de Janeiro, Globo, 1945), o tema da aventura passou a ser recorrente e, desde então, em períodos especiais, não deixo de me “aventurar” nessas histórias vividas por tantos corajosos sonhadores, muitas vencedoras, outras trágicas. É também uma maneira de intermediar outras leituras de minha área, e esses interregnos sempre foram prazerosos.

Escrevi  diversos  posts sobre tentativas e conquistas na cadeia montanhosa do Himalaia, desde a heróica e trágica missão de George Mallory e Andrew Irvine (1924) ao buscarem o cume do Everest à chegada de Edmund Hillary e Tensay Norgay (1953), assim como outros êxitos e infortúnios. Contam-se às muitas dezenas aqueles que deixaram a vida indo ao encontro dessas moradas dos deuses. Em termos brasileiros, dediquei um post a Waldemar Nicklevicz que, tendo atingido mais de uma vez o Everest, conseguiu subir ao topo do K2, possivelmente a mais temida montanha do planeta. Minha filha Maria Beatriz, sabedora de meu encanto pela leitura das narrativas dramáticas nas montanhas, entre as quais a de Maurice Herzog (Annapurna, São Paulo, Companhia das Letras 2001), Jon Krakauer (No Ar Rarefeito, São Paulo, Companhia das Letras, 2002), Thomaz Brandolin, (Everest: Viagem à Montanha Abençoada, Floresta, L&PM, 2002) e outros tantos relatos, presenteou-me há alguns anos com livro que me interessava, a história de Vitor Negrete, excepcional esportista voltado às aventuras desafiadoras. Somente nessas últimas semanas tive o imenso prazer de ler Espírito Livre – Da Transamazônica ao Everest, escrito por sua esposa, Marina Soler Jorge (São Paulo, Editora Três, 2008).

Vitor Negrete é o exemplo típico do herói idealizado desde a antiguidade. Sua vida justificou plenamente, através da aventura com riscos acentuados e da ação generosa como homem, a figura do herói cujo destino já estaria traçado. A leitura de Espírito Livre, apesar do relato não desprovido de intensa emoção da autora, revela Vitor Negrete nas mais variadas atividades. Ei-lo  realizando com dois amigos a travessia da Transamazônica de bicicleta; a participar da Ecomotion Pro na Costa do Dendê; disputando o Mundial de corrida de aventura na Nova Zelândia, assim como em tantos outros desafios. Como bem assinala Marina Soler, ” a escalada era apenas uma das paixões de Vitor Negrete”.

A vida do grande montanhista Vitor Negrete, paradigma para tantos esportistas que buscam na aventura a motivação maior, poderia ficar circunscrita à própria atividade desafiadora. Contudo, o que tornou singular a sua existência extrapolou as altitudes e direcionou-se às ações humanitárias relevantes, entre as quais o projeto pela preservação digna dos quilombolas no Vale do Ribeira. No relato de Marina não faltam alusões à generosidade do esportista de absoluta vocação, que entendia “involuntariamente” sua passagem pelo planeta como um maravilhamento, pois tudo que o cercava ganhava a aura fraterna. Amizades, projetos, sonhos pareceriam ser acalentados por Vitor Negrete como algo natural, sem traumas possíveis.

A atividade como montanhista foi notável. As diversas subidas a outros picos ficariam minimizadas pela relação que teve com duas das mais temidas montanhas: Aconcágua (6959m) e Everest (8848m). Escalou o mais alto cume das Américas, ascendendo-o pelo maior número de vias, sendo que a mais perigosa delas, a Face Sul, juntamente com seu amigo de tantas aventuras, o também notável Rodrigo Raineri. O relato de Marina Soler não deixa dúvidas quanto às difíceis condições enfrentradas. Em um dos paredões da Face Sul encontraria os corpos de alpinistas brasileiros que pereceram após avalanche…. Igualmente guiou Ana Elisa Boscarioli em sua primeira tentativa ao cume do Aconcágua e dessa experiência a montanhista, que atingiria posteriormente tantos outros cumes, inclusive o Everest, não se esqueceria.

Se o relato de Marina Soler menciona as duas subidas ao teto do planeta, em 2005 e 2006, a primeira com tubos de oxigênio e a segunda a pleno pulmões, o encontro da morte durante a descida, aos 19 de Maio de 2006, bem evidencia esse “namoro”, consciente ou não, com o trágico, ingrediente característico de tantos heróis.

Vitor Negrete, ao atingir o topo do Everest, deixaria gravado em vídeo depoimentos pungentes. Algumas de suas frases: “Eu tô no ponto mais alto do planeta… Eu acabo de me tornar o primeiro brasileiro a pisar neste lugar sem utilizar oxigênio suplementar sem a ajuda de sherpa neste dia da escalada. Eu escalei sozinho, e foi animal. É muito difícil. Eu tô muito, muito cansado. Inclusive eu preciso descer logo, mas eu queria dedicar esta escalada ao Rodrigo Raineri, meu parceiro… Hoje o clima tá ruim, tá ventando e é prudente eu sair daqui logo porque mais de 80% dos acidentes ocorrem na descida. Hoje, enquanto eu subia, eu vi vários corpos desta temporada… Aí Caco (amigo dileto)! Consegui mais uma vez cara! … Então eu subi aqui, cara, esta montanha, muito por você, pela Marina, pelos meus filhos”.

Na descida, Vitor Negrete encontraria a morte. Pareceria estar contrário ao mors certa hora incerta. Seu companheiro Raineri escreve: “Dawa encontrou o Vitor a 8.500 metros, debilitado, com dor no peito, sem as luvas e bastante confuso. Começou a descer, mas estava difícil carregá-lo. Então Dawa acionou Pechumbi, nosso outro sherpa que havia subido do ABC para o acampamento 3 para tentar ajudar. Os dois conseguiram chegar com o Vitor na barraca do 3 à meia noite do dia 18 e continuaram a tentar reanimá-lo, hidratando-o com suco morno, que ele conseguiu beber, e ministrando oxigênio. Porém, ele não resistiu e, às duas horas da madrugada do dia 19 de maio (horário do Nepal), Vitor faleceu”. O pungente depoimento de Raineri ratifica o sentido épico da tragédia. O que o fez ascender as últimas dezenas de metros, solitário e sem tubos de oxigênio, verdadeira temeridade? A leitura do inconsciente será sempre um mistério. Tantos sinais a apontarem  cautela, entre eles o roubo de equipamentos e mantimentos seus e de Raineri da barraca dos alpinistas nesse caminho em direção ao topo, já não seriam suficientes para abortar a investida? A intrepidez fê-lo não desistir. Todos os riscos estavam traçados, faltando apenas a possibilidade da infausta estatística aumentar. Disso Negrete tinha consciência, mas a vontade de ser o primeiro brasileiro a subir ao cume do Everest sem tubo de oxigênio falou mais alto do que o teto do planeta. Atingiu o objetivo, mas o Poder Maior veio buscá-lo.  Em Espírito Livre, os depoimentos finais dos pais de Vitor Negrete, Roma Pytowski e Sílvio Negrete, não seriam a certeza de que o filho cumpriu uma missão, a dimensionar em plano transcendente as inéditas escaladas? São palavras simples, despojadas, que retratam Vitor na essencialidade dos escolhidos.

Tantos sucumbiram na escalada rumo ao Everest, mormente na descida. Contudo, permanecem na memória os poucos que pereceram como ato inédito. Vitor Negrete será sempre lembrado, e sua morte redentora após missão cumprida é o símbolo do heroísmo autêntico, imaculado. A pedido dos familiares e amigos, os sherpas cobriram seu corpo com  pedras. Permanece nas alturas. Fim supremo para um herói das montanhas.

This post is about the book Espírito Livre (Free Spirit), written by Marina Soler, wife of Vitor Negrete, the Brazilian mountain climber who died on the Everest in 2006. The book tells us about some of his adventures: reaching the top of Mount Aconcagua, the highest peak in South America; summiting the Everest twice; crossing the Trans-Amazonian highway on a bicycle, competing in the Adventure Racing World Championship in New Zealand. As Marina puts it, “climbing was just one of Vitor Negrete’s passions”. In 2006 he reached the summit of Everest without supplementary oxygen, but could not make his way down and died on 19 May at Camp 3. The book is the story of a man endowed with great courage and a generous heart, a hero for his special achievements.

 

 

 

Quando uma Foto Traz Reminiscências

Ser mestre não é de modo algum um emprego
e a sua actividade se não pode aferir pelos métodos correntes;
ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo;
e o que importa, no seu juizo final,
não é a ideia que fazem dele os homens do tempo;
o que verdadeiramente há-de pesar na balança
é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.

O professor deve sempre aparecer ao seu discípulo
como uma pessoa de cultura perfeita;
por cultura perfeita entenderemos tudo o que pode contribuir
para lhe dar uma base moral inabalável,
sem subserviências nem compromissos.
Agostinho da Silva

Estava a folhear velho álbum que não era visitado há décadas, quando me surpreendo ao ver uma foto tirada circa 1956 por meu saudoso pai. Nela estão alunos e ex-alunos do insigne professor de piano José Kliass.

Nascido na Rússia e de origem judaica, José Kliass (1895-1970) estudou em seu país e mais tarde no Stern’s Conservatório, em Berlim, com o extraordinário professor Martin Krause, que foi discípulo e secretário particular de Franz Liszt. A reputação de Krause era enorme e com ele estudaram, entre outros, Edwin Fischer e Claudio Arrau. Após Berlin, estudou curto período em Paris, antes de radicar-se definitivamente no Brasil após a Iª Grande Guerra.  Tendo-se fixado em São Paulo, Kliass apresentou-se inúmeras vezes como pianista, decidindo-se posteriormente pela didática. Tardiamente, foi professor convidado por certo período na Brigham Young University, nos Estados Unidos.

Se considerada for a lista de seus alunos que tiveram brilhantes carreiras, acredito não ter havido nenhum professor dessa dimensão em nosso país. Sereno, tranquilo, José Kliass era um mestre de profunda cultura humanística, poliglota, tendo desenvolvido uma técnica própria que transmitiu a gerações de alunos. Desse seu método de ensino poderia apontar a preocupação com a forma, estilo e sonoridade; o estudo do legato e da substituição dos dedos sobre uma mesma nota; do peso, cuja origem se localiza nos omoplatas e que desliza pelo braço, ante-braço, mãos, a finalizar na ponta dos dedos, ou seja, toda a estrutura corpórea superior como fator decisivo para a sonoridade plena a preencher os espaços; das gradações do pedal. Importava-lhe o resultado sonoro, a partir, seria lógico entender, da prévia preparação técnico-digital. Recordo-me que as primeiras aulas que tive com o grande mestre, aos 14 anos, foram centralizadas unicamente no relaxamento muscular. Quando sentiu em mim a ausência de qualquer contração, colocou-me diante do teclado, a dizer: “Agora vamos entrar no universo sonoro”, frase que compreenderia com o passar dos anos. Quando menciono ter sido José ou Joseph Kliass aquele que teve sob sua tutela o maior número de notáveis pianistas que desenvolveram carreiras consistentes, não estou a negligenciar nomes importantes da didática pianística, a começar pelo ilustre Luigi Chiafarelli (1856-1923), mestre de Antonieta Rudge (1885-1974), Guiomar Novaes (1894-1979)  e Souza Lima (1898-1982). Teve o Brasil, no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, professores da maior competência, que souberam edificar um sólido conceito através de alunos que se tornaram pianistas consagrados. Contudo, o que chama a atenção é essa quantidade-qualidade de pianistas  orientados por José Kliass através das gerações. Citaria: Bernardo Segall (1911-1993), Estelinha Epstein (1914-1980), Yara Bernette (1920-2002), Anna Stella Schic (1925-2009), Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), Lídia Simões, Isabel Mourão, Mercês da Silva Telles, Ney Salgado, Jocy de Oliveira, Glacy Antunes de Oliveira… Pianistas e outros músicos foram aconselhados pelo grande mestre. Meu irmão João Carlos e eu estivemos durante seis anos sob sua tutela pianística.

A cada ano sofremos mais acentuadamente o impacto da mídia. O fato de José Kliass não ter jamais se preocupado com a divulgação de seu nome, que espontaneamente era conhecido por todos os músicos respeitados do país, fez com que o tempo se ocupasse de ocultar a extraordinária contribuição por ele prestada ao ensino do piano no Brasil.

Lembro-me que a intensa relação que mantinha com os maiores pianistas e outros músicos da época tornava quase que “obrigatória” a presença deles em recepções que José Kliass promovia quando das tournées desses artistas pelo Brasil. Foi em casa do mestre que pudemos conhecer pessoalmente Claudio Arrau, Walter Gieseking, Wilhelm Backhaus, Arthur Rubinstein e tantos outros nomes referenciais da arte do piano, assim como regentes, cantores, violinistas, compositores. Villa-Lobos, Christian Ferraz, Gerard Sousay, Edouard van Remortel são alguns nomes que me vêm à mente.

As audições que promovia em sua residência ou em casas de alguns mecenas da música em São Paulo eram muito concorridas. Sempre apresentava o discípulo e tecia algumas considerações sobre as obras que seriam interpretadas.

Recordo-me de que inúmeras vezes, após a aula, quando pela manhã, o professor e sua esposa Lídia me convidaram para almoços informais, momentos raros em que o aluno só fazia perguntas sobre música e o mestre serenamente respondia. Quantos não foram os livros que o professor Kliass me emprestou para que, após a leitura, fizesse uma série de perguntas? Teria sido desse período minha inclinação pela pesquisa e pelas obras pouco ventiladas, pois, se estudei tantas criações consagradas, quantas não foram as composições que aprenderia de autores não frequentados a partir do entusiasmo do mestre?

Foi, assim, um prazer rever essa antiga foto tirada na residência do Prof. José Kliass após uma das concorridas audições de piano que se realizavam, geralmente, todos os meses. A leitura dessa imagem, tirada há mais de meio século, dá a medida dessa afluência competente. Alunos e ex-alunos do mestre lá estão presentes. Ao fundo podemos notar, à esquerda, Ney Salgado, e à direita, o compositor recentemente falecido, Osvaldo Lacerda. Bem ao centro, da esquerda para a direita, Lídia Kliass, Lídia Simões, Yara Bernette, Odette Faria, Jocy de Oliveira, Clara Sverner. No primeiro plano, eu e meu irmão, Pietro Maranca e Marina Brandão. A segunda foto é do início de 1955, após meu recital em Teresópolis, no Estado do Rio de Janeiro.

Se as denominadas Escolas de Piano deixaram de ter no Brasil a aura que mestres reverenciados e competentes de outrora conseguiram conquistar em contexto sócio-cultural totalmente outro, mais ainda a figura de José Kliass se apresenta de maneira insofismável. Sob aspecto outro, a própria aura do pianista virtuose perderia o brilho. Impensável hoje o presente que o grande pianista francês Alfred Cortot (1877-1962) ganhou da Imperatriz do Japão em 1952, a ilha Cortoshima (em japonês, Cortot significa “solitário na illha do sonho”). Não há mais tapetes vermelhos a esperarem os intérpretes nos portos. Homogeneizou-se a carreira de pianista, pois hoje são incontáveis os que percorrem o planeta, tantos deles oriundos do Extremo-Oriente e quase todos egressos de concursos que possibilitam breves holofotes a tantos virtuoses, luzes essa dirigidas a cada ano a novos vencedores dos incontáveis concursos internacionais de piano. Executam majoritariamente as mesmas obras conhecidas do Sistema, obedecendo in totum o que fazem os pianistas já estabelecidos na carreira. Pouco a fazer! Mas o piano mantém um depositário repertorial que o torna único entre todos os instrumentos. Repertório conhecido ou oculto. Buscar a sua expansão deveria ser propósito, não imposição. Um manancial generoso está à espera de intérpretes que queiram trilhar essa senda mágica. A vontade como salvaguarda.

This post is a tribute to José Kliass, the Russian-born Jew who studied with Martin Krause, a pupil of Franz Liszt. Settling in São Paulo after the First World War, he had a very important school of piano and formed a legion of successful pianists. My brother and I studied with him for six years. Through Kliass’ links with outstanding masters throughout the world, his students had the chance to meet at the receptions held at his home in São Paulo names like Claudio Arrau, Walter Gieseking, Arthur Rubinstein, Villa-Lobos, Christian Ferraz, Gérard Sousay, Edouard van Remoortel, among others. Reserved, averse to the limelight, his exceptional contribution to piano teaching in Brazil has been neglected and his name almost forgotten.