Quando uma Foto Traz Reminiscências

Ser mestre não é de modo algum um emprego
e a sua actividade se não pode aferir pelos métodos correntes;
ganhar a vida é no professor um acréscimo e não o alvo;
e o que importa, no seu juizo final,
não é a ideia que fazem dele os homens do tempo;
o que verdadeiramente há-de pesar na balança
é a pedra que lançou para os alicerces do futuro.

O professor deve sempre aparecer ao seu discípulo
como uma pessoa de cultura perfeita;
por cultura perfeita entenderemos tudo o que pode contribuir
para lhe dar uma base moral inabalável,
sem subserviências nem compromissos.
Agostinho da Silva

Estava a folhear velho álbum que não era visitado há décadas, quando me surpreendo ao ver uma foto tirada circa 1956 por meu saudoso pai. Nela estão alunos e ex-alunos do insigne professor de piano José Kliass.

Nascido na Rússia e de origem judaica, José Kliass (1895-1970) estudou em seu país e mais tarde no Stern’s Conservatório, em Berlim, com o extraordinário professor Martin Krause, que foi discípulo e secretário particular de Franz Liszt. A reputação de Krause era enorme e com ele estudaram, entre outros, Edwin Fischer e Claudio Arrau. Após Berlin, estudou curto período em Paris, antes de radicar-se definitivamente no Brasil após a Iª Grande Guerra.  Tendo-se fixado em São Paulo, Kliass apresentou-se inúmeras vezes como pianista, decidindo-se posteriormente pela didática. Tardiamente, foi professor convidado por certo período na Brigham Young University, nos Estados Unidos.

Se considerada for a lista de seus alunos que tiveram brilhantes carreiras, acredito não ter havido nenhum professor dessa dimensão em nosso país. Sereno, tranquilo, José Kliass era um mestre de profunda cultura humanística, poliglota, tendo desenvolvido uma técnica própria que transmitiu a gerações de alunos. Desse seu método de ensino poderia apontar a preocupação com a forma, estilo e sonoridade; o estudo do legato e da substituição dos dedos sobre uma mesma nota; do peso, cuja origem se localiza nos omoplatas e que desliza pelo braço, ante-braço, mãos, a finalizar na ponta dos dedos, ou seja, toda a estrutura corpórea superior como fator decisivo para a sonoridade plena a preencher os espaços; das gradações do pedal. Importava-lhe o resultado sonoro, a partir, seria lógico entender, da prévia preparação técnico-digital. Recordo-me que as primeiras aulas que tive com o grande mestre, aos 14 anos, foram centralizadas unicamente no relaxamento muscular. Quando sentiu em mim a ausência de qualquer contração, colocou-me diante do teclado, a dizer: “Agora vamos entrar no universo sonoro”, frase que compreenderia com o passar dos anos. Quando menciono ter sido José ou Joseph Kliass aquele que teve sob sua tutela o maior número de notáveis pianistas que desenvolveram carreiras consistentes, não estou a negligenciar nomes importantes da didática pianística, a começar pelo ilustre Luigi Chiafarelli (1856-1923), mestre de Antonieta Rudge (1885-1974), Guiomar Novaes (1894-1979)  e Souza Lima (1898-1982). Teve o Brasil, no eixo São Paulo-Rio de Janeiro, professores da maior competência, que souberam edificar um sólido conceito através de alunos que se tornaram pianistas consagrados. Contudo, o que chama a atenção é essa quantidade-qualidade de pianistas  orientados por José Kliass através das gerações. Citaria: Bernardo Segall (1911-1993), Estelinha Epstein (1914-1980), Yara Bernette (1920-2002), Anna Stella Schic (1925-2009), Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), Lídia Simões, Isabel Mourão, Mercês da Silva Telles, Ney Salgado, Jocy de Oliveira, Glacy Antunes de Oliveira… Pianistas e outros músicos foram aconselhados pelo grande mestre. Meu irmão João Carlos e eu estivemos durante seis anos sob sua tutela pianística.

A cada ano sofremos mais acentuadamente o impacto da mídia. O fato de José Kliass não ter jamais se preocupado com a divulgação de seu nome, que espontaneamente era conhecido por todos os músicos respeitados do país, fez com que o tempo se ocupasse de ocultar a extraordinária contribuição por ele prestada ao ensino do piano no Brasil.

Lembro-me que a intensa relação que mantinha com os maiores pianistas e outros músicos da época tornava quase que “obrigatória” a presença deles em recepções que José Kliass promovia quando das tournées desses artistas pelo Brasil. Foi em casa do mestre que pudemos conhecer pessoalmente Claudio Arrau, Walter Gieseking, Wilhelm Backhaus, Arthur Rubinstein e tantos outros nomes referenciais da arte do piano, assim como regentes, cantores, violinistas, compositores. Villa-Lobos, Christian Ferraz, Gerard Sousay, Edouard van Remortel são alguns nomes que me vêm à mente.

As audições que promovia em sua residência ou em casas de alguns mecenas da música em São Paulo eram muito concorridas. Sempre apresentava o discípulo e tecia algumas considerações sobre as obras que seriam interpretadas.

Recordo-me de que inúmeras vezes, após a aula, quando pela manhã, o professor e sua esposa Lídia me convidaram para almoços informais, momentos raros em que o aluno só fazia perguntas sobre música e o mestre serenamente respondia. Quantos não foram os livros que o professor Kliass me emprestou para que, após a leitura, fizesse uma série de perguntas? Teria sido desse período minha inclinação pela pesquisa e pelas obras pouco ventiladas, pois, se estudei tantas criações consagradas, quantas não foram as composições que aprenderia de autores não frequentados a partir do entusiasmo do mestre?

Foi, assim, um prazer rever essa antiga foto tirada na residência do Prof. José Kliass após uma das concorridas audições de piano que se realizavam, geralmente, todos os meses. A leitura dessa imagem, tirada há mais de meio século, dá a medida dessa afluência competente. Alunos e ex-alunos do mestre lá estão presentes. Ao fundo podemos notar, à esquerda, Ney Salgado, e à direita, o compositor recentemente falecido, Osvaldo Lacerda. Bem ao centro, da esquerda para a direita, Lídia Kliass, Lídia Simões, Yara Bernette, Odette Faria, Jocy de Oliveira, Clara Sverner. No primeiro plano, eu e meu irmão, Pietro Maranca e Marina Brandão. A segunda foto é do início de 1955, após meu recital em Teresópolis, no Estado do Rio de Janeiro.

Se as denominadas Escolas de Piano deixaram de ter no Brasil a aura que mestres reverenciados e competentes de outrora conseguiram conquistar em contexto sócio-cultural totalmente outro, mais ainda a figura de José Kliass se apresenta de maneira insofismável. Sob aspecto outro, a própria aura do pianista virtuose perderia o brilho. Impensável hoje o presente que o grande pianista francês Alfred Cortot (1877-1962) ganhou da Imperatriz do Japão em 1952, a ilha Cortoshima (em japonês, Cortot significa “solitário na illha do sonho”). Não há mais tapetes vermelhos a esperarem os intérpretes nos portos. Homogeneizou-se a carreira de pianista, pois hoje são incontáveis os que percorrem o planeta, tantos deles oriundos do Extremo-Oriente e quase todos egressos de concursos que possibilitam breves holofotes a tantos virtuoses, luzes essa dirigidas a cada ano a novos vencedores dos incontáveis concursos internacionais de piano. Executam majoritariamente as mesmas obras conhecidas do Sistema, obedecendo in totum o que fazem os pianistas já estabelecidos na carreira. Pouco a fazer! Mas o piano mantém um depositário repertorial que o torna único entre todos os instrumentos. Repertório conhecido ou oculto. Buscar a sua expansão deveria ser propósito, não imposição. Um manancial generoso está à espera de intérpretes que queiram trilhar essa senda mágica. A vontade como salvaguarda.

This post is a tribute to José Kliass, the Russian-born Jew who studied with Martin Krause, a pupil of Franz Liszt. Settling in São Paulo after the First World War, he had a very important school of piano and formed a legion of successful pianists. My brother and I studied with him for six years. Through Kliass’ links with outstanding masters throughout the world, his students had the chance to meet at the receptions held at his home in São Paulo names like Claudio Arrau, Walter Gieseking, Arthur Rubinstein, Villa-Lobos, Christian Ferraz, Gérard Sousay, Edouard van Remoortel, among others. Reserved, averse to the limelight, his exceptional contribution to piano teaching in Brazil has been neglected and his name almost forgotten.