Tema Recorrente

Biblioteca é um silêncio cheio de vozes
que se libertam e nos envolvem
sempre que abrimos as páginas de um livro.

Retornar às categorias repertoriais fez-se necessário após instigantes frases em um dos últimos e-mails do compositor  e pensador François Servenière. Nossa correspondência sobre os temas mais variados atingirá, brevemente, as cinco centenas de páginas!!! Comentários de obras musicais, interpretações, leituras, situação política, cotidiano. Um músico que tem o olhar multidirecionado.

Escrevia eu a respeito dessa necessidade interior de buscar o novo, não desprezando jamais o passado. Numa comparação metafórica, comentara que a repetição repertorial por parte de um intérprete pode ser equiparada à consulta repetitiva aos mesmos livros em uma biblioteca. Sendo esta a extensão de parte fundamental do que foi escrito, voltar-se durante toda a existência às obras sedimentadas nas primeiras quatro ou cinco décadas poderia representar uma estagnação do pensar. É lógico que essa visão crítica entende que tantos são os fatores que induzem o intérprete a ter de repetir ad infinitum o repertório solidificado: Sistema, acomodação, excesso de apresentações, atendimento ao grande público já preso ao tradicional, empresários, sobrevivência… A busca direcionada ao novo tem lá suas “regras” e o inusitado pelo inusitado pode resultar, tantas vezes, numa grande decepção, pois quantas não são as obras que, sepultadas, assim deveriam permanecer ad aeternum.

Escreve-me Servenière, a observar : “agradeço-lhe ter-me citado em um dos posts sobre a necessidade do viajante, tanto em corpo como em espírito. Creio que essa curiosidade insaciável, que o faz aumentar seu repertório sem cessar, ano a ano, é da mesma ordem que a necessidade do compositor ao criar sempre obras novas, como a do arquiteto em querer sentir  novo projeto, tão logo um finalizado. Você tem razão ao dizer que os intérpretes que não aumentam seu capital repertorial dirigem-se à facilidade, tantas vezes por motivos  relacionados à carreira e às mídias. É tão mais tranquilo e vendável executar ‘N’ vezes as obras musicais estandardizadas!”.

Retorno à biblioteca, pois a alusão teve guarida. Ao comentar com o amigo Fábio, disse-me ele que costuma frequentar bibliotecas e fica impressionado com a diversidade. “Quantas vidas para conhecer uma ínfima parte!”, comentou. Nada mais exato. Voltar-se aos clássicos da literatura ou das tantas áreas do conhecimento é imprescindível, mas há que se abrir os horizontes. Não por acaso a epígrafe deste post foi colocada. Tirada da capa de rosto de pequena publicação da Universidade do Minho, referente à magnífica Biblioteca Pública de Braga, a exibir, entre outras raridades, cerca de 400 obras do século XVI, contém a frase profunda sabedoria. Quando o ilustre amigo e arquiteto António Menéres, em post bem anterior,  refere-se à nossa lembrança e intimidade com o livro já lido, não elimina, antes consolida, sua enorme curiosidade de conhecer novas páginas em outros compêndios. Escreve: “Sempre que posso olho os meus livros, quer as lombadas simplesmente cartonadas, a sua cor, os títulos das obras; mesmo sem os abrir advinho o seu conteúdo e, quando os folheio, reconheço as leituras anteriores, muitas das quais estão sublinhadas, justamente para facilitar outros e novos convívios”. Considere-se que esse retorno não representa o cotidiano, pois esse maravilhamento vem desse “sempre que posso…” Em termos musicais, a repetição repertorial deixa de ser esse sempre que posso, para se transformar na rotina, mesmo que as obras insistentemente tocadas pertençam, a depender de cada intérprete, a um vasto catálogo aprendido e assimilado décadas atrás. O problema não estaria na quantidade de composições, mas no ato da não renovação.

Livro e partitura são gêmeos e pertencem ao inefável universo do conhecimento. A constante renovação, sem que se percam as amarras com acervo adquirido, tem um componente de aventura. Buscá-la significaria desvelar criações que estarão a propiciar uma infinidade de outras aventuras mentais: o porquê dessa obra ignota ter tão grande importância; os caminhos do compositor para chegar a determinado inusitado escritural; a relação do autor com coetâneos que tiveram a ventura da divulgação. O que pode ocorrer de mágico é, por vezes, depararmo-nos com verdadeiras obras primas. E elas existem. São tantas as ainda desconhecidas! Sob aspecto outro, quantas não são as criações que estão a surgir, sempre. No caso do contemporâneo, quão não são também os compositores panfletários que se auto ungem como “profetas” e que têm obras “aclamadas” por contingente infinitesimal de acólitos, que por vezes beiram o ridículo? Mormente no “universo” eletroacústico, quantidade incomensurável de obras subvencionadas por entidades as mais diversas tiveram uma única apresentação, quiçá umas pouquíssimas, antes de mergulharem em gretas abissais e lá esquecidas, até voluntariamente, por seus autores?

Continuo com minhas elucubrações, mormente pelo fato de estar a estudar uma significativa criação do ilustre compositor português Eurico Carrapatoso. Escreveu ele ultimamente uma Missa sem Palavras (cinco estudos litúrgicos para piano) para o meu já extenso caderno de Estudos Contemporâneos, iniciado em 1985. Dedicada In Memoriam a seu progenitor, que estaria a completar o centenário, a obra, com duração aproximada de 20 minutos, encanta-me. Há segmentos onde plana verdadeira magia criativa. A sua estréia se dará em Évora aos 2 de Junho, no belíssimo convento Nª Senhora dos Remédios, sob o patrocínio do Eborae Musica. Ainda teremos muito a falar dessa Missa.

Passado e presente. A incrível missão de um intérprete, verdadeira dádiva, é poder, durante a existência, navegar por mares conhecidos, mas sempre a sonhar com o que pode existir além da linha do horizonte.

Going back to the subject of performers that play the same repertoire over and over again, depriving audiences of a new and unique musical experience, I believe it is rather healthy – for the growth of both performers and public –  to promote new masters instead of offering the same alternatives year in, year out.