História e Natureza, Expressões do Belo

 

Finda a tournée plena de tantos eventos, ficaram as recordações, mormente quando ilustrações documentam episódios inusitados para nós. As viagens a Portugal, sempre a tocar ou a realizar outras atividades musicais, possibilitam tempo restrito para a visão extra-sonora. Todavia, sempre que momentos livres existam, não deixo de ver aquilo que é história: igreja, mosteiro, convento, castelo, museu, biblioteca, livraria, construções outras e… a natureza que está a pedir eternamente que a deixem em paz para a sobrevivência de todos nós.

A preceder a  descida ao Algarve, após as apresentações em Évora, ainda tivemos o prazer de passar por Castro Verde, vila portuguesa pertencente ao Distrito de Beja, na sub-região do Baixo Alentejo. José Maria insistiu em que conhecêssemos a Basílica Real – Igreja Nossa Senhora da Conceição -, mandada construir por D.João V (1707-1750). A extraordinária Basílica, de uma só nave, abriga nas laterais do amplo espaço painéis de magnificente azulejaria, a representar os feitos da batalha de Ourique, que se deu aos 25 de Julho de 1139, em que as tropas cristãs, comandadas por D. Afonso Henriques (1109-1185), derrotaram as muçulmanas que contavam com número superior de combatentes. Causa um grande impacto o conjunto de azulejos do século XVIII e a expressividade gestual de centenas de personagens guerreiras. O Museu da Basílica apresenta raras peças da imaginária cristã.

Da viagem ao Algarve, entre um recital e outro, tivemos a alegria de um regresso à região algarvia, hospedados uma vez mais em casa dos sogros do amigo e professor José Maria Pedrosa Cardoso. Nas várias idas a Lagos, a recepção em casa dos pais de Manuela, Firmino e Maria Elias, é fraterna, descontraída, de intensa troca de afetos. Naturalmente, sabem levar-nos à emoção, tão intensa e sincera a acolhida se faz. Regina e Manuela mais parecem irmãs nas tantas afinidades.

Enquanto Regina tem seus programas com os amigos, José Maria e eu gostamos de caminhar pela orla marítima, mormente à noite, quando o vento que sopra do mar traz parte da história das navegações. Tudo aconteceu naquela região que se estende até o Cabo de São Vicente. Nunca penso nesses ventos como outros de mesma intensidade. Sagres, a epopéia das navegações, que levou intrépidos navegantes a deslizar pela costa de África e por fim contorná-la, a fim de atingir as Índias; o caminho em direção a oeste, que os conduziu à costa brasileira, são episódios que me vêm à mente quando estou a caminhar com José Maria a falar sobre música, literatura, artes, história e tantos outros temas. Em Lagos, passamos pela janela em que D. Sebastião (1554-1578), o jovem e infortunado rei, despediu-se para a tresloucada aventura  para nunca mais voltar, sucumbindo, juntamente com significativas figuras da nobreza portuguesa, na batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos, motivando a crise dinástica de 1580, com consequências seriíssimas para Portugal. O corpo de D. Sebastião jamais foi encontrado, o que gerou mitos e lendas. Criou-se o Sebastianismo, presente na mente do povo de Portugal e do nordeste brasileiro, que, no rico imaginário, “acredita” no regresso do rei.

Lagos é cidade única. Da orla pode-se ver, a leste, Portimão iluminada; a oeste, durante o dia, os contornos, das formações rochosas e falésias que convivem com o mar, tantas vezes bravio, e que se estendem além de Sagres até o Cabo de São Vicente. O Algarve é realmente uma região de rara beleza.

José Maria, ao sentir meu interesse traduzido em tantas perguntas, convida-nos para um passeio inusitado, a visita às grutas que se situam a oeste de Lagos, sempre a ter as falésias e as pequenas praias como decorações marcantes. Em uma manhã de maré baixa partimos em uma canoa a motor conduzida por Gilberto, barqueiro bem experiente, e fomos a contornar essa forte paisagem. Passeio de uma hora. Entramos em várias grutas de rara beleza, e que no imaginário popular adquirem nomes curiosos: elefante, gorila, bolo de noiva… Podíamos, por vezes, tocar as rochas, mercê da extrema habilidade do barqueiro. O mar, que nessas grutas tem  transparência absoluta quando à luz do sol, torna-se sombrio ao nelas adentrarmos, o que propicia um espetáculo da natureza quando raios solares penetram em determinada fenda, revelando focos da imaculada limpidez das águas. Como souberam alguns pintores que pertenceram ao impressionismo e às suas ramificações captar em França a magia e o mistério de rochedos e falésias! Claude Monet (1840-1926), Georges Seurat (1859-1891), Armand Guillaumin (1841-1927), Paul Cézanne (1839-1906)  ), Henry Moret (1856-1913) e tantos outros… Que fascínio essas formações rochosas exerceram para os artistas da cor e da luminosidade! Se conhecessem as da Ponta da Piedade na região de Lagos! Foi o Presidente da Nova República Velha Portuguesa, Manuel Teixeira Gomes, que, na década de 1920, teria dito que considerava as grutas da região lacobrigense as mais belas do mundo.

Em certo momento, perguntei a Gilberto se conhecia Firmino, o homem que durante 60 anos entendeu o vento como o segredo do mar. Discorreu sobre a intrepidez do sogro de José Maria, pois Firmino tornou-se  verdadeira lenda entre os pescadores. Perguntei-lhe se ele, no centro de Lagos, sentava-se no banco “picha murcha”. Essa expressão, que conheci em Évora, através do amigo Urbano, teria até praça desse nome em Viana do Alentejo. Refere-se ao banco dos velhotes e aposentados que ficam a trocar conversa durante o dia. Gilberto prontamente disse não. Era essa a resposta que esperava, pois, aposentado, o quase octogenário Firmino todos os dias pega bem cedo o ônibus que o leva a Sagres. Viagem de cerca de uma hora, pois o veículo para em inúmeros lugares. Trabalha o dia inteiro a consertar redes, limpar peixes e ajudar pescadores. Um herói do mar que, fora dele, permanece na ativa, a continuar a trajetória vocacional.

Na descida ao Algarve, vindos do Alentejo, vêem-se inúmeros ninhos de cegonhas. Ficam sempre ao alto, seja em torres de transmissão, ou em topo de alguma chaminé de fábrica desativada, mas independentes de matas mais cerradas, aliás raras na região. Por vezes as vemos sobrevoar com elegância a planura em busca de pequenos roedores ou serpentes. Maria Elias, esposa de Firmino, presenteou Regina com uma bonita tela em que um ninho está evidente. Sensível, Maria Elias soube captar o que nossas retinas já tinham fixado com rara acuidade.

 

Quanta razão não teve Claude Debussy ao afirmar que preferia ver o por do sol a ouvir a bela Sinfonia Pastoral de Beethoven. Contextualizando, temos a imagem que deveríamos reverenciar dessa natureza que clama pela atenção dos homens e que, pouco a pouco, está a ser destruída.  A incúria administrativa de mãos dadas com o poder econômico. Nada a fazer, infelizmente.

Fotos dizem e não dizem.  Se vivemos o instante do acontecido, podemos prescindir da imagem retida indelevelmente em nossas mentes. Contudo, são elas preciosas no sentido da documentação, menos pelo fato de que lá estivemos, mas mais pela beleza intrínseca que a natureza e a história generosamente nos ofertam. Partilhá-las com os leitores é motivo prazeroso.