Navegando Posts publicados em setembro, 2012

Quando Dias Turbulentos Exigem

Exija muito de ti mesmo e espere pouco dos outros.
Assim ficarás livre de muitos aborrecimentos.
Confúcio

Presenciando escândalos em fase de julgamento; ouvindo promessas impossíveis de serem cumpridas nesses momentos que antecedem as eleições, por todos os candidatos sem exceção; vivendo insegurança quase absoluta, o cidadão comum tem de buscar alívio. Uns o encontram junto aos familiares, outros nas profissões escolhidas amorosamente, outros mais em atividades diversas.

O post Saber Julgar despertou uma série de e-mails, alguns desesperançados, outros corajosos. De leitor assíduo recebi um texto pleno de histórico.

“Rezava” lenda urbana que um texto-poema teria sido deixado anonimamente na igreja Saint Paul, em Baltimore, em 1692, ano da construção do templo. Em data não precisa, um Pastor da igreja teria afixado esse escrito na Old Saint Paul’s Church e o “poema” divulgado e reeditado sem a assinatura do autor, o que significava o anonimato, mas com a data da construção da igreja ao alto. O nascimento da lenda teria nascido de um equívoco. Soube-se que o verdadeiro autor é Max Ehrmann (1872-1945), que escreveu o texto-poema em 1927, publicando-o em 1948 numa coletânea. Denominado Desiderata (plural do termo latino desideratum, ou seja, almejo, desejo) o poema ganhou enorme notoriedade distribuído em folhetos. Estes serviriam também à rede de contra-cultura entre os anos 1950-1970. O texto  foi amplamente divulgado durante o movimento hippie dos anos 1960. Chegou até os nossos dias, já sem a aura lendária, depois da descoberta do autor, mas com intensa carga de mensagem espiritual laica. Possivelmente esse texto-poema não teria ultrapassado a barreira do tempo se o nome do escritor fosse divulgado. Sob outra égide, os frequentadores do templo não teriam verificado minimamente estilos literários do final do século XVII e o vigente na primeira metade do século XX nos U.S.A.

Que o texto mencionado não se confunda com a quantidade de outros escritos e livros que buscam apenas a auto-ajuda. Serviria esse “depoimento”, à maneira do If (Se), de Rudyard Kipling (1865-1936), lido durante gerações em reproduções com as mais distintas caligrafias, ornamentadas e emolduradas em milhares de casas pelo mundo, como um apelo do hipotético “bem”, neste nosso país que tem necessidade imperiosa de encontrar o caminho da moralidade político-empresarial.

Para a tradução busquei a fonte em inglês e várias versões em francês. Nestas, há inúmeras alterações de vocabulário que, sem alterar o sentido, friso, configuram possível atualização. Portanto, explico ao leitor que a versão ora apresentada é quase ad libitum, mas procura manter o sentido do texto original.

Permaneça calmo entre o alarido e a impaciência,
e lembre-se da paz que decorre do silêncio.
Se puder, mas sem renúncia,
viva em bons termos com todos.
Diga o que pensa serena e claramente
e ouça os outros,
tanto os simples de espírito como os ignorantes,
pois eles também têm sua história.

Evite os indivíduos grosseiros e violentos,
são eles tormentos para o espírito.
Não se compare aos outros,
pois, ao fazê-lo, haverá risco de amargor e de  futilidade.
Sempre haverá alguém melhor ou pior do que você.

Alegre-se com o que já foi feito e com seus projetos futuros.
Ame sua profissão, mesmo que humilde;
ela é um bem precioso nesses tempos turbulentos.
Seja prudente nos negócios
nesse mundo pleno de hipocrisia.
Contudo, não fique cego à virtude existente.
Muitos lutam por um ideal
e dão mostras heróicas.

Seja autêntico sobretudo quanto aos afetos.
O amor é permanente como a relva,
portanto, fuja do cinismo que o envolve,
 sinal de amargor no coração e desencanto.
Que a idade lhe traga sabedoria,
fazendo-o renunciar com serenidade aos tempos da juventude.
Esteja forte para enfrentar  as desgraças repentinas,
mas não se destrua a partir de imaginação doentia.
Saiba que muitos medos nascem do cansaço e da solidão.
Afora uma disciplina salutar,
seja gentil consigo.

Você é filho do Universo,
assim como as árvores e as estrelas,
tendo, pois, o direito de integrá-lo.
Mesmo que a ideia não lhe pareça clara,
tudo se passa no Universo como está escrito.
Esteja em paz com o seu Deus,
seja qual for a imagem que dele você tenha.
Através de seu labor e aspirações,
apesar das vicissitudes da vida,
não deixe de estar em paz com a sua alma.

Falsidades, ingratidões e sonhos perdidos
não impedem que o mundo continue a ser maravilhoso.

Mantenha o bom humor. Lute para ser feliz.

An assiduous reader of my blog sent me a poem that, according to the common myth, was centuries old. Only in the seventies its authorship was definitely clarified: it had been written in 1927 by the American Max Ehrmann. This week’s post is a free translation of this prose poem, a reminder of how each of us should approach each day of our lives, preaching tolerance and peace on earth

 

  

 

 

Duas Manifestações Emotivas Antagônicas em Debussy

Je reçois ce matin le programme du Concert Parent
où vous devez jouer Masques et L’Isle Joyeuse…
Sans que je doute une seconde de la façon parfaite
dont vous jouez ces deux morceaux,
voulez-vous me faire l’extrême plaisir
de me les faire entendre demain Jeudi dans l’après-midi,
à l’heure qui vous conviendra le mieux ?
Carta de Debussy ao notável pianista Ricardo Viñez (Février  1905)

Mais, Seigneur ! que c’est difficile à jouer…
ce morceau me paraît réunir les façons d’attaquer un piano,
car il réunit la force et la grâce… si j’ose ainsi parler.
Claude Debussy sobre L’Isle Joyeuse.
Carta a seu editor Jacques Durand (Dieppe, Septembre 1904)

No supermercado recebo um tapinha nas costas. Ao virar-me, vem a pergunta imediata: “O que de intenso existe por trás de L’Isle Joyeuse?  Que bela ilustração você colocou! Fale-me dessa composição”. Marly estudou piano, mas dedicou-se a uma outra área do conhecimento e é professora. Conheço-a desde o início do século. Convidei-a para um café e, durante mais de meia hora, conversamos a respeito dessa e de outras criações de Claude Debussy entre 1903-04.   

Para quem conhece a opera omnia do compositor francês, ou ao menos uma boa parcela, L’Isle Joyeuse surge como um ápice emotivo, em se considerando outras preocupações de Debussy. São claras as intenções voltadas ao passional. Há razões para que isso aconteça nessa obra, preferencialmente, e em outras do período.

Debussy teve uma vida sentimental atribulada até a união com sua segunda mulher, Emma Bardac. A cantora Marie Vasnier, dedicatária de melodias inefáveis do compositor durante os anos de formação, Gaby Dupont, com quem viveu alguns anos, Lilly Téxier, sua primeira mulher, até os desdobramentos do envolvimento com Emma Bardac, que data de 1903.  Casada com um rico banqueiro judeu, Emma não apenas era admirada como cantora – Gabriel Fauré dedicou-lhe afeição profunda e La Bonne Chanson (1892-1894), Prison (1894) e Salve Regina (1895); Ravel l’Indifférent, a terceira peça do ciclo para canto e orquestra Shérazade (1903) -, mas também como frequentadora dos salões parisienses onde se reuniam artistas, intelectuais e os senhores do poder. Da ligação musical com Emma surgiria uma relação amorosa que permaneceria para sempre, mas que deixaria vestígios dramáticos durante os primeiros dois anos de idílio. Cartas enviadas à Lilly por Debussy já prenunciavam a separação. Em 30 de Julho de 1904, o compositor e Emma embarcam para a ilha de Jersey, na costa britânica, no fulgor da paixão. Lilly tentaria o suicídio com arma de fogo aos 13 de Outubro, assim como possivelmente o fizera Gaby Dupont em 1897. Parte considerável da sociedade parisiense tomou partido da mulher abandonada. No dia 6 de Novembro dá-se a primeira audição das Deux Danses de Debussy – há minha gravação para o selo belga De Rode Pomp das duas obras sequenciais na transcrição para piano solo do editor e amigo de Debussy, Jacques Durand (vide YouTube). Nessas Danses, originalmente para harpa cromática e orquestra de cordas, escritas entre Abril-Maio de 1904, capta-se também a intensidade emotiva vivida pelo compositor. Emma obteria o divórcio de seu primeiro marido e se casaria com Debussy. Tiveram uma única filha, Claude-Emma (Chouchou), nascida em 1905, menina super dotada que morreria de difteria em 1919 um ano após seu ilustre pai. Emma Debussy viveria até 1934.

Entre Junho-Julho de 1904 surge uma das criações para piano mais emblemáticas de Debussy, Masques que deveria integrar uma 1ª série de Images. Há mistérios sobre título e motivo dessa obra. Masques tem norteamento oposto a L’Isle Joyeuse, mas ambas foram escritas nos momentos de intensidade passional de Debussy. A indicação inicial Très vif et fantasque leva à reflexão. Masques apresenta flutuações dinâmicas intensas e austeridade a partir da forma  A-B-A, ou seja, uma primeira parte a percutir quintas à exaustão, por onde flui a temática, e que será basicamente a terceira parte, e a ter a intermediá-las uma contrastante, mais lenta e enigmática. Um de seus biógrafos, Marcel Dietschy, escreveria (La Passion de Claude Debussy, Neuchâtel, La Baconnière, 1962): “máscaras mordazes, fantásticas, apavorantes na branca impassibilidade, disfarce destruindo uma consciência alarmada”. Remorsos? Vislumbre de incerto percurso emocional? Lilly abandonada à sorte? Foi essa afirmação de Dietschy que levaria o notável artista norte-americano Johan Howard, que mais tarde ficaria conhecido como Dinossauro dos grafiteiros e também como o maior artista no gênero do Brasil, a realizar uma das ilustrações para meu livro O Som Pianístico de Claude Debussy (São Paulo, Novas Metas, 1982), criando instigante desenho. Para o leitor, recomendaria duas interpretações pianísticas exemplares encontráveis no YouTube: Marcelle Meyer e Monique Haas.

L’Isle Joyeuse é desse período passional. Considerou-se, durante muito tempo, que a obra fora escrita na Ilha de Jersey. Na realidade, ela teria sido composta um ano antes, período já impregnado pelo idílio avassalador. O compositor remanejaria L’Isle Joyeuse nos dias ilhéus, entre Julho-Agosto de 1904. A inspiração teria vindo do quadro de Antoine Watteau (1684-1721), L’Embarquement pour Cythère. Todavia, a pujança emocional que percorre toda essa peça extraordinária estaria a apontar que o  fulcro   procederia do envolvimento, ainda inicial, com Emma.

Não caberia neste post uma análise de L’Isle Joyeuse. Há muitas, sob os mais diversos métodos e tendências, tradicionais e hodiernas, espalhadas em livros e artigos. Creio que ao leitor poderia interessar uma apreciação muito pertinente realizada por Marguerite Long (1874-1966), pianista muitas vezes mencionada em posts anteriores por ter sido minha mestra durante anos em Paris.  L’Isle Joyeuse foi a primeira peça que Madame Long tocou para Debussy. Relata em seu livro: “Afeiçoei-me também a essa peça incrível, colorida, difícil e na qual a virtuosidade engrinalda uma harmonia, a sugerir as grandes obras do século XVIII. Tem-se visão fastuosa, um vento de alegria de prodigiosa exuberância, uma festa do ritmo onde, sobre vastas correntes modulatórias, o virtuoso deverá manter uma técnica exata, sob asas de sua imaginação” (Au Piano avec Claude Debussy. Paris, Julliard, 1960). L’isle… é a peça isolada para piano mais plena de segmentos diversificados, alguns repetitivos sobre outra roupagem, e rítmica basicamente obstinada.

Para L’Isle Joyeuse, Howard quis conhecer as origens da criação. Contei ao amigo a história a envolver a obra. Não faltaram os personagens centrais, Debussy e Emma, assim como Lilly a se afastar, La Vague (A onda) de Hokusai (1760-1849), que inspiraria o magistral tríptico sinfônico La Mer (1903-5), peixe (alusão a Poissons d’or para piano, que seria escrita poucos anos após), pássaro e outros ingredientes mais.

O belo trabalho gráfico de Penka Kasandjiev que ilustra o post sobre Debussy de 18/08/2012, inspirado em L’Isle Joyeuse, suscitou série de e-mails admirando a criação da artista. Naquele post, dedicado ao sesquicentenário de nascimento de Claude Debussy, inseri minha gravação de L’Isle Joyeuse realizada na Bélgica em 2005. Recomendaria duas gravações marcantes no YouTube, a de Wladimir Horowitz e a de Samson François. Esta última particularmente guarda qualidades essenciais da tradição francesa quanto à interpretação da obra de Debussy.

On Debussy’s works L’Isle Joyeuse and Masques and the relationship there is between the antagonistic passionate intensity of both pieces and Debussy’s personal life.

 

A Qualidade como Única Salvaguarda

Assim o povo, que tem sempre melhor gosto e mais puro
do que essa escuma descorada que anda ao de cima das populações,
e que se chama a si mesma por excelência a Sociedade…”.
Almeida Garret (1799-1854)  

A justiça há-de ser para nós amparo criador,
consolação e aproveitamento das forças que andam desviadas;
há-de ter por princípio e por fim
o desejo de uma Humanidade melhor;
há-de ser forte e criadora;
no seu grau mais alto não a distinguiremos do amor.
Agostinho da Silva (1906-1994)

Desde a antiguidade as cãs simbolizavam a concentração de conhecimentos. Envelhecer representava, aos olhares dos mais jovens, a compreensão de que aqueles que acumulavam experiências poderiam, se reunidos, orientar tal grupo. Assim foi durante muito tempo. Quando as sociedades se organizaram na formação das várias denominações de Estado ao longo da história e, a seguir, nos mais variados tipos de ordenamento, convivência, categorias, ainda nesses períodos o assim denominado – a depender dos grupos sociais – Conselho de Anciões permaneceria como uma espécie de corte decisória. No Velho Testamento, na Grécia antiga, no Império Romano e nas várias sociedades nesse caminhar da história, não apenas ocidental, a ancianidade determinaria o respeito dos povos.

Nos tempos atuais assistimos, em princípio nos regimes presidencialistas, aos personagens centrais dos Poderes Executivo e Legislativo eleitos pelo voto universal e os resultados aceitos nos países democráticos. Quanto ao Poder Judiciário do Brasil,  nos altos tribunais a escolha de seus membros decorre de decisões do Executivo e do Legislativo. O cargo não tem mandato fixo: o limite máximo é a aposentadoria compulsória, quando atinge o ocupante da cadeira os setenta anos de idade.

Reza a nossa Constituição em seu Artigo 101: “O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco anos e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. Paragráfo único – Os Ministros do Supremo Tribunal Federal serão nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal.”

Pressupõem-se que os Ministros do Poder Judiciário estejam fundamentados no mérito, competência, experiência, discernimento, imparcialidade. A escolha  não deveria conter a menor possibilidade de dúvida quanto a essas qualidades, pois a vida pessoal e profissional do escolhido estaria a ser um espelho a refletir  idoneidade e isenção absolutas. O povo, mormente o que não teve acesso à educação condigna e, portanto, sujeito à manipulação, teria em quem confiar plenamente.

Sob outra égide, sentimos uma espécie de anestesia que bloqueia nosso poder de reação, sabedores que teria de haver uma reestruturação fantasticamente enorme para que eficácia, rapidez decisória e ausência de intermináveis recursos - que são do agrado de tantos advogados - dessem ao povo a certeza da total confiabilidade do Judiciário. Suspeitos poderosos têm à disposição os mais afamados advogados para sua defesa, a custos inimagináveis para o cidadão comum. É fato.

Acredito que uma medida necessária, que denotaria a absoluta lhaneza de todo um processo para a composição de um tribunal superior, residiria em outro modo de escolha de seus membros. Para tanto, haveria a necessidade de alteração da Constituição Federal mediante emenda constitucional do Artigo mencionado. O que não estaria a ser cumprido, em certos casos, é a escolha dentre os cidadãos de “notável saber jurídico e reputação ilibada”. Essas categorizações prestam-se, infelizmente, a tantas interpretações “subjetivas” na mente dos políticos!!!  Haveria que se terminar um dia, pelo menos vale a pena sonhar, com o processo que permite ao Presidente da República indicar o nome do membro do STF que, após sabatinado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado e pelo plenário dessa Casa, se aprovado por unanimidade, é finalmente nomeado pelo chefe do Executivo. A depender de seu nível intelectual, pode-se incorrer em equívocos insanáveis e caracterizar, até, conotação política e de interesse. O hipotético desconhecimento dos mais elementares princípios do Direito por parte de um Presidente poderia acarretar, sempre a depender da decisão de uma só pessoa, resultado que levaria a dúvidas fortes quanto à competência do “ungido” e esse fato, por si só, é um drama. No campo das probabilidades, sempre haveria aspectos ideológicos insondáveis a nortear indicação de um nome para a Suprema Corte do Brasil.

O país poderia dar uma lição ao mundo se mudasse todo esse processo. Que a indicação de um membro para o Supremo Tribunal Federal fosse feita por representantes competentes da O.A.B. e do Ministério Público, a partir de currículos irrepreensíveis de nomes sugeridos pelas instituições para escolha daquele que deveria, doravante, empenhar-se no estudo de processos e nas decisões imparciais. Seria minimamente plausível entender que os “cabelos brancos”  mencionados estariam a evidenciar toda a trajetória plena de méritos de um escolhido, mercê de atividades precedentes nas várias esferas judiciais ou acadêmicas. Sob outro aspecto, nessa eleição intramuros, não poderiam pairar quaisquer dúvidas quanto ao não envolvimento ideológico de um futuro Ministro da Suprema Corte. A isenção teria de ser absoluta, irrepreensível, pois a menor suspeição indicaria que favorecimentos tenderiam a ocorrer nos julgamentos, tantos deles tumultuosos.

Apesar de esvaírem-se, tenhamos esperanças, ainda.

This post discusses our President’s power to nominate justices for the Supreme Court,  followed by their confirmation by the Senate, and how in my view this power may impact the goal of impartiality and independent thought one expects from our highest judicial body.