Navegando Posts publicados em outubro, 2013

Boas Lembranças não Faltam

Je te l’ai dit de la prière
qui  est exercice de l’amour,
grâce au silence de Dieu.
Si tu avais trouvé Dieu
tu te fonderais en Lui,
désormais accompli.
Saint-Exupéry (Citadelle – LIV)

Convidado pela pintora, escritora e professora doutora Maria Amélia Blasi de Toledo Piza para uma apresentação em Botucatu, de imediato aquiesci, ainda mais pelo fato de o convite envolver o prefácio do novo livro de Maria Amélia, a contar a história da música na cidade (Botucatu – Notas Musicais. Botucatu, Santana, 2013). Li com raro interesse o pormenorizado e carinhoso livro, a narrar desde as origens de Botucatu, à trajetória das manifestações musicais na bela cidade do interior do Estado de São Paulo.

Foi em 1952 que, a convite de Ditinha Vasconcelos, verdadeira secretária da insigne pianista Guiomar Novaes, conheci D.Frei Henrique Golland Trindade (1897-1974), então bispo de Botucatu. Meu irmão e eu nos apresentamos na Igreja de São Francisco, no largo do mesmo nome em São Paulo, num recital com a presença do ilustre prelado e freis da ordem franciscana. E começou a partir desse recital uma amizade que se prolongaria até o último suspiro de D.Henrique.

Durante os anos que se seguiram, anualmente nos apresentávamos em Botucatu e, posteriormente, em várias oportunidades toquei recitais solo no auditório do Conservatório Santa Marcelina. A renda se destinou sempre, integralmente, à Vila dos Meninos Sagrada Família. A única exceção se deu quando reverteram a bilheteria para os magníficos sinos que chegavam à Catedral. Durante o bispado e arcebispado de D.Henrique hospedava-me no Palácio Episcopal. Devo ao ilustre prelado, sacerdote que teve uma vida santa e que um dia deverá estar no altar, o aprimoramento da fé, o sentir no mais humilde o verdadeiro irmão em Cristo. D.Henrique foi meu padrinho de crisma e celebrou, em Campinas, meu casamento com Regina, em 1963. Orador sacro excepcional – considerado primus inter pares por tantos ilustres sacerdotes – autor de inúmeros livros, alguns traduzidos, ensinou-me caminhos inusitados da arte. Tinha um “santo orgulho”, como costumava dizer, ao apresentar a Capela da Santíssima Trindade, de alvenaria e com tijolos à vista, despojada de artifícios, que se situa no interior do Seminário. Na ábside localiza-se o magnífico afresco do pintor Henrique Oswald – neto do grande compositor do mesmo nome – e que faz alusão à Santíssima Trindade. O artista teve a colaboração efetiva de sua esposa Jacyra.  A pintura foi-me pormenorizada em cada traço por D.Henrique. A dissertação de mestrado de Maria Amélia Blasi de Toledo Piza junto à UNESP-Bauru estuda com profundidade as pinturas da singular capela. Participei da banca examinadora.

Estou a me lembrar de três episódios marcantes. Estávamos nos anos 1950. O quarto em que D.Henrique dormia no Palácio Episcopal tinha um leito estreito com uma madeira, ao invés de colchão, coberta e travesseiro. Perguntei-lhe se era essa a sua cama. Respondeu-me que o mínimo de penitência que poderia oferecer era esse sacrifício. D.Henrique sempre chegava “atrasado” ao café da manhã, pois ao raiar o dia já estava a visitar necessitados botucatuenses.  Em 1973, após uma apresentação em Botucatu, fui visitá-lo antes de regressar a São Paulo. Era uma manhã gélida e brumosa e D.Henrique já residia na Vila dos Meninos Sagrada Família. Encontrei-o ajoelhado no jardim, a cabeça coberta pelo capuz, a podar rosas. Ajudei-o a  levantar-se, mas antes indaguei-lhe sobre seu estado de saúde. Abaixou o tradicional capuz franciscano, levantou as mãos ao alto e disse com sua voz grave e inconfundível: “Enquanto puder glorificar a Deus, sou um homem feliz”. Após tomamos o pequeno almoço. Foi nosso último encontro. Lembro ao leitor que D.Henrique foi o primeiro Arcebispo de Botucatu, sendo que dez anos após, em 1968, tornou-se resignatário. A partir dessa decisão recolheu-se à Vila dos Meninos, que ele fundou.

A ligação com a cidade ficaria mais intensa quando passei a dar aulas no Conservatório Santa Marcelina. Entre as décadas de 1960-1970, por sete anos, uma vez ao mês visitava Botucatu para aulas que se prolongavam durante os sábados. Duas dedicadas irmãs, Lília Aguiar Ayres e a saudosa Lúcia de Castro Alves, sempre atentas, acompanhavam o desenvolver das alunas, algumas internas do Colégio das Irmãs Marcelinas.

Em inúmeros posts tenho me posicionado quanto à ausência da crítica musical competente, hoje, na megalópole São Paulo. Em seminário na Université Sorbonne pronunciei-me sobre esse fato, aliás a ocorrer também em grandes centros europeus. Entretanto, tem-se, como ficou patente naquele encontro, a crítica tantas vezes de valor através da internet. Na fronteira da segunda metade do século XX, São Paulo tinha 12 ou 13 críticos, muitos deles músicos, como J.H.Koellreutter, Caldeira Filho, Dinorá de Carvalho, Cyro Brisolla. O que de mais significativo representava essa crítica era a presença de quem escrevia nos concertos e recitais de jovens que iniciavam o longo percurso… Todo o estímulo para tantos intérpretes daquela geração veio dessa crítica, que apontava talentos ou, “diplomaticamente”, não dava maiores esperanças. Sessenta anos após, o jovem que está a dar os primeiros passos na difícil carreira não mais tem essa palavra abalizada sobre seu desempenho público. Dirige-se a “crítica” ao consagrado pátrio ou de alhures.

Essas considerações se fazem necessárias, pois em Botucatu na década de 1950, após os recitais, três ou quatro críticos escreviam. Alguns padres que regiam corais e leigos cultos colocavam suas opiniões no Monitor Diocesano, na Folha e no Correio de Botucatu. Posso afirmar que algumas das críticas que mais marcariam o meu já longo caminhar musical vieram de Botucatu. O Padre João Dias Ramalho, do Monitor Diocesano, traçaria o perfil do jovem de 16 anos sem o menor equívoco. Diria que 90% do que sou já estavam sendo apontados pelo crítico, apenas a partir da interpretação musical! Não o conheci, mas ao reler ultimamente essa crítica fiquei impactado. No mesmo jornal, em outra secção, o Dr. Aleixo Delmanto foi preciso em suas observações, e a captação da personalidade através da execução ficaria registrada. Entendo essas críticas, para jovens que despontavam, como farol a guiar o navegante. De onde viria a auto-confiança, a não ser do acúmulo de estímulos espontâneos? Essa crítica, que se estiolou nas décadas posteriores pelo Brasil, era fundamental e evidenciava a competência de quem escrevia. Saudar o consagrado é tarefa tão fácil!!!

No programa do recital inseri obras que me são caras. Carlos Seixas (duas Sonatas), Modest Moussorgsky (Quadros de uma Exposição), Henrique Oswald (Valse-Caprice op. 11 nº 1), Claude Debussy (L’Isle Joyeuse) e Alexander Scriabine (Vers la Flamme). Duas criações recentes do notável compositor francês François Servenière serão apresentadas em primeira audição mundial, o Étude Cosmique nº 4 – Níquel e Outono Cósmico In Memoriam Luca Vitali, o grande artista plástico e designer que nos deixou neste ano.

Quase sessenta anos se passaram… Retornar a Botucatu para o recital, na mesma sala em que me apresentei tantas vezes, leva-me necessariamente à emoção. Tornamo-nos mais sensíveis com o passar dos anos. Reverter toda a renda para a Vila dos Meninos Sagrada Família é a continuação de minha admiração pelo estandarte empunhado por D.Henrique. Estar presente no lançamento do belíssimo livro de Maria Amélia Blasi de Toledo Piza, uma grande alegria.

On my return to the city of Botucatu for a benefit concert. As many times in the past, funds raised will be fully directed to the Vila dos Meninos, a home for poor children founded by the late archbishop of Botucatu, Dom Henrique Golland Trindade.

 

      

“Amigos para Sempre”

O essencial na vida não é convencer ninguém,
nem talvez isso seja possível;
o que é preciso é que eles sejam nossos amigos;
para tal, seremos nós amigos deles;
e que forças hão-de trabalhar o mundo,
se pusermos de parte a amizade?
Agostinho da Silva (“Sete cartas a um jovem filósofo”)

Um outro livro me acompanhou durante a travessia atlântica. O meu bom amigo Antônio Toloi, engenheiro nascido na cidade de Brodowski, no interior de São Paulo, ofereceu-me há cerca de dois anos um livro escrito em parceria com sua colega de adolescência, Delsa Deise Macchetti. O título por si só já desperta curiosidade: “A Turma que Viajou no Ônibus do Nilo” (Brodowski, Legis Summa, 2010). Lembremo-nos que a cidade viu nascer o grande pintor pátrio Cândido Portinari.

Inúmeras vezes neste espaço salientei que a memória das aldeias, cidades, urbes não se resume apenas nas figuras que porventura ganharam notoriedade por seus feitos, ou no desenvolvimento sócio-cultural-econômico que acompanha respectivas trajetórias citadinas. Perder-se-iam para sempre etapas de real importância que caracterizam a vida dos personagens que viveram período que permaneceria na penumbra, não fosse a intenção de alguns em preservar a memória individual de determinado grupo, passados mais de meio século. A busca dessa recuperação, décadas após intenso pulsar, o cotejamento das lembranças que permaneceram, o coleguismo que imperou, o reviver uma época quase que inimaginável para as novas gerações são fatos que corroboram o imenso contributo que determinado grupo de companheiros de escola traz para a história da cidade e, na abrangência, para a cultura do país, pois viveu esse núcleo de estudantes uma realidade que se nos antolha riquíssima em pormenores de um tempo que se transformou. Essas considerações tornam-se ainda mais significativas se considerado for o fato de que tudo se passou sob a égide do coleguismo, diria puro, ingênuo e pleno de situações, por vezes hilariantes.

Os fatos deram-se em torno da década de 1950, quando crianças e adolescentes de  Brodowsky, tendo completado o Grupo Escolar, dirigiam-se a Batatais para cursar outros estágios escolares. Entre os anos 1947 e 1958, o ônibus do senhor Nilo Lascala realizava três viagens de ida e de volta à cidade vizinha, levando e trazendo as várias turmas de estudantes. Esse trato diário dos alunos com Nilo, a convivência amistosa, constituída de tantas brincadeiras hoje não mais praticadas, a descontração, todos esses aspectos são deliciosamente tratados pelos que empreenderam o projeto e através de depoimentos pessoais daqueles que se propuseram a relembrar o passado feliz.

Entre Brodowsky e Batatais, a estrada era de terra batida e os estudantes usavam guarda-pó e lenços, mercê da poeira intensa, a fim de não sujar uniformes. Durante o trajeto não faltavam peraltices dos adolescentes e aquelas que mais marcaram são repetidas nos vários depoimentos. Frise-se que em nenhuma dessas “confissões” há algo que não seja a lembrança prazerosa.

Em torno da temática a envolver o ônibus do Nilo, Antônio Toloi e Delsa Deisi Marchetti traçam a história das origens de Brodowski, que remonta a 1894, e como tantas cidades do nosso interior, a partir da Estação Ferroviária. Seria a Companhia Mogiana de Estrada de Ferro que se lembraria do inspetor geral, dando à estação o nome de Engenheiro Brodowsky. Quando da turma do ônibus do Nilo, isso por volta de 1950, Brodowsky contava 3.000 habitantes. Comentam os autores que “Brodowski é um tanto diferente das demais cidades: em todas, a praça principal fica em frente à igreja matriz; em Brodowsky não, a praça principal fica em frente à estação ferroviária da Mogiana e o povo chamava essa praça de Jardim”. Realmente, as que nasceram antes da chegada da via férrea brotavam circundando igrejas ou  cresciam junto aos portos marítimos ou fluviais.

Os autores enumeram características de Brodowsky no tempo da  infância e da adolescência: jardim, bandas, coreto, o passeio nos fins de semana, onde os jovens “paqueravam” com “educação”, pois no máximo era permitido em público mãozinhas dadas dos namorados. Comentam as técnicas, a fim do início de um namoro. O cinema tem bom espaço no livro e como não pensar em “Cinema Paradiso”, do diretor Giuseppe Tornatore com música do extraordinário Ennio Morricone? Semelhança brodowskiana real com o desenrolar do comovente filme. Quermesses, circo onde os autores contam as peraltices, a fim de passar por baixo da lona sem pagar os tostões da entrada. Os bailinhos são mencionados com muito humor. Saraus que aconteciam, grupos musicais da cidade ou que a visitavam. Descrevem a importância de festivais, quando peças teatrais eram apresentadas, e os carnavais participativos. Observam a edificação de novas construções à medida que a cidade se expande.

Hilariante o subtítulo “As diversões proibidas: o prostíbulo da Dª Sinhaninha”. Certamente é António Toloi que escreve: “Ai de quem fosse visto descendo a Floriano Peixoto, se não morasse no Saci ou lá tivesse parentes! Se isso acontecesse à noite então… é bom nem falar”!

Comovente a lembrança dos professores e de suas características, assim como o depoimento de tantos alunos da “turma que viajou no ônibus do Nilo”. Situações onde a puerilidade, a traquinagem, mas também um espírito bonito de camaradagem reinavam. Quase todos os depoimentos têm pontos em comum, o que autentica a narrativa. Estou a me lembrar de três livros, entre outros, que, sob outro contexto e sem juízo de valor neste post, mas com pontos em comum, encantaram minha adolescência-juventude: do italiano Edmondo De Amicis (1846-1908), “Cuore”; do húngaro Ferenc Molnár (1878-1952), “Os Meninos da Rua Paula” e do francês Alain-Fournier (1886-1914), “Le Grand Meaulnes”. 

Um aspecto interessante a ser colocado e que marcou aquela turma do ônibus do Nilo: como o veículo seguia superlotado, sorteavam semanalmente aqueles que iriam sentados e os que seguiriam em pé. A estrada era de terra batida e viajar nessa segunda hipótese era tudo o que a turma não queria. Contudo, “democraticamente” aceitavam o resultado do sorteio.

O reencontro do grupo de estudantes com o Sr. Nilo foi pleno de emoção. Ainda na ativa, hoje a realizar outras atividades, o motorista recordou aquela fase que ficaria marcada para sempre na memória dos estudantes.

Muitos já se foram. Os autores mencionam 148 alunos que viajaram num período de 10 anos. Há uma breve ficha biográfica de cada estudante e até estado civil e descendência. Tudo a seguir um ritual amoroso.

Foi deliciosa a leitura de “A Turma que Viajou no ônibus do Nilo”. Os autores e seus colegas de antão souberam resgatar um período importante para o conhecimento de costumes que se estiolaram após mais de meio século. E basta esse fato para que o pequeno livro permaneça como testemunho inequívoco da transformação de Brodowski.

This post is an appreciation of the book “A Turma que Viajou no Ônibus do Nilo” (The Group that Has Traveled on Nilo’s Bus), written by my friend and engineer Antônio Toloi together with his childhood friend Delsa Deise Macchetti. They recall their youth in the small city of Brodowski – countryside of São Paulo State – in the fifties, with precious and often funny details about customs and social conventions that no longer exist.

 

 

A Liberdade Individual como Fundamento

La solitude,
compagne qui ne s’enfuira jamais.
Sylvain Tesson

Ao transpor o Atlântico levo sempre meus livros. Nessa circunstância, preferencio leitura prazerosa, de aventura, curtas narrativas ou romances. Se somar livros onde a concentração torna-se imperativa à atividade musical intensa que se me antolha, deixarei uma parte de mim em desequilíbrio. A cada um entender suas necessidades.

Em várias viagens a leitura dos livros de um de meus autores preferidos, Sylvain Tesson, andarilho, vagabond (não na conceituação que cá atribuímos), wanderer, mas pensador arguto, que sabe auscultar aqueles que lhe cruzam o caminho e que faz da reflexão a sua segunda respiração. A obsessiva apreensão da liberdade do homem, sob quaisquer circunstâncias, é-lhe clausula petrea. Suas armas, andar, olhar e escrever. O planeta percorrido a pé, por vezes de bicicleta e, em casos especiais, a cavalgar velhos animais.

No livro “Sous l’Étoile de la Liberté” (Paris, Arthaud Poche, 2012), Sylvain Tesson, sob outro contexto, (re) narra a epopeia que resultou “L’axe du loup”, onde descreve sua caminhada da Sibéria à Índia sobre os passos dos fugitivos do gulag (o item “Livros – Resenhas e Comentários” do menu do blog contém a lista das obras de Sylvain Tesson comentadas em posts). O gesto em direção à liberdade é ampliado e “Sous l’Étoile de la Liberté” apresenta-se extraordinariamente bem documentado fotograficamente por Thomas Goisque, que em quatro oportunidades – Sibéria, Mongólia, Lhassa e Darjeeling – junta-se a Tesson nessa longa caminhada basicamente solitária de 6.000km. O autor revela que a vontade a impulsioná-lo à travessia de “L’axe du loup” teria reflexos posteriores em uma interpretação mais vasta  sobre o anseio do homem de poder viver em liberdade. O recontar a história fá-lo refletir não apenas nos gulags da extinta União Soviética, mas também nos laogais da China, campos de “reeducação” onde milhões de cidadãos foram recolhidos. O trabalho forçado destinava-se à construção de obras, extração de minérios e tantas outras atividades onde ao raro descanso somava-se à alimentação escassa. Tantos sucumbiram. Glorifica a fuga nessas circunstâncias, pois campos de “reeducação” (eufemismo) ou de concentração correspondem ao que de mais vil pode ser “oferecido” ao ser humano. “A fuga assemelha-se ao corredor da morte, mas que definitivamente pode levar à vida”, comenta Tesson.

Escapar de um gulag representava a entrada em um mundo inóspito, pois a Sibéria exibe mil perigos: frio, fome, ursos, tempestades, torrentes, pântanos e a morte sempre à espreita. A travessia pela Mongólia, nessa conceituação diversa daquela de “L’axe du loup”, iria levá-lo às considerações relevantes sobre a maneira nômade de viver, mas também ao sacrifício que levou tantos mongóis ao trabalho escravo em campos de “reeducação” ou à morte. União Soviética e China não são poupadas. Sylvain Tesson, ao atravessar os vastos espaços, refez as tragédias. Enumera milhões de vítimas. Ao passar pelo Tibete não poupa chineses pelo massacre, pouco comentado no Ocidente, de milhões de tibetanos. Lhassa, a antiga capital da mística budista, hoje se transformou numa cidade militar e a monumental estrada ferroviária que está a ser construída, ligando Pequim à outrora capital da meditação, tem quantidade não calculada de trabalhadores, onde se misturam funcionários, recrutados e sabe-se mais quem e em quais condições. Ainda hoje tantos tibetanos buscam a fuga pelas estreitas gargantas himalaias rumo à India. Muitos perecem.

Sylvain Tesson não poupa críticas a Lenin, Stalin e Hitler, a seu ver os três mais cruéis títeres da recente história do mundo. Outros menores, mas não menos cruentos, não são nomeados, mas explícito fica que a privação da liberdade individual é desiderato de ditadores que se perenizam no poder e, portanto, fulcro central das preocupações do autor. Dissidentes exterminados em massa ou levados aos campos de “reeducação”, a proibição de atravessar fronteiras, a privar o homem de escolher seu caminho, são aspectos que não passam ao largo na pena de Tesson. Insiste, e metáforas são constantes em seu discurso. Observa que “o fugitivo não deixa traços atrás de si, assim como o martim-pescador não molha suas penas ao mergulhar”. A repressão desperta a vontade dos mais intrépidos nessa busca incessante pelo arejamento.

 A crítica que Tesson faz ao longo período da ex União Soviética e ao regime chinês é de rara acuidade e gulags e laogais ainda existem!  Bem perto de nós, não assistimos no “gulag tropical cubano”, segundo Mario Vargas Llosa, Prêmio Nobel de Literatura em 2010, ao famigerado “El Paredón”, a exterminar milhares de dissidentes, provocando a evasão dos que buscaram no mar a liberdade? Muitos conseguiram, outros foram recapturados e tantos mais desapareceram nas águas caribenhas. Infelizmente, ideólogos espalhados pelos continentes, mormente na nossa América Latina, ainda “cultuam” regimes totalitários, apesar de seus ditadores não tolerarem o gesto mínimo da oposição.

Estou a me lembrar de Junho de 1989, meses antes da queda do Muro de Berlim, quando, na antiga República Democrática Alemã (RDA) para três recitais de piano em Potsdam e Berlim Oriental, certo fim de tarde, a tomar chá no apartamento de uma amiga, esta nostalgicamente mostrou-me da janela aviões partirem do aeroporto de Berlim Ocidental. Perguntei-lhe qual o seu grande sonho. A resposta imediata da amiga foi o de atravessar a fronteira transpondo o muro de Berlim, e partir. Faltava-lhe a coragem, pois amigos seus perderam a vida tentando a fuga. Hoje vive no Canadá com seu filho. É essa inalienável liberdade individual que Tesson defende com raro empenho ao afirmar que é “à celebração da figura do fugitivo político que eu consagrei minha longa caminhada…”.

“L’Étoile de la Liberté” revela, sob outra égide, reflexões precisas sobre aspectos do viajante solitário. Henry de Montherlant já observara que esse andarilho é um diabo, Paul Valéry escrevera que o homem só estava em má companhia. Tesson, antes de partidas, supõe que a solidão possa ser sua maior inimiga. Comenta: “Eu não a conhecia, mas na verdade trata-se de uma companhia maravilhosa. Deveríamos denominá-la Felicidade. A solidão é a mais bela dádiva que se pode oferecer à alma. Ela mantém o equilíbrio entre nós mesmos e o mundo exterior, ela renova a ligação entre o ser e o cosmos. A solidão é um meio de transporte, uma infatigável parelha. Ela provoca sofrimento. Senti-me surpreso, por vezes, a falar em voz alta para espantá-la. Maldisse-a nas estepes, onde não há uma só árvore para se encostar ou se enforcar. Quando, após curta ou longa siesta, depois de ter sonhado com parentes e amigos, acordava e, só, no absolutamente nada, cercado pelo vazio, a solidão apertava meu coração. O resto do tempo, ela estufava minha alma como o vento que preenche a vela” (tradução jem).

Reconhece Sylvain Tesson que o livro de Slavomir Rawicz, “À Marche Forcée”, inspirou-o a refazer a caminhada empreendida pelo fugitivo polonês de um gulag na Sibéria a Calcutá, na Índia. O relato de Rawicz, tão contestado por especialistas, não impediu a vontade de Tesson de empreender o trajeto. Importa ao autor a essência da liberdade, que levou e leva milhares de homens e mulheres a correrem tantos riscos numa “marcha forçada” para escapar dos grilhões. Afirma: “E é precisamente pelo fato de serem muitos a embrenhar-se pelas sendas, aceitando ir além do perigo, sempre a pensar na liberdade como fim, que a questão de saber se Rawicz mentiu perde todo o interesse”. Importa a Tesson o fato transparente, a soberana possibilidade de o homem ser livre e escolher seu destino. O fugitivo político é, antes de tudo, um ser humano em busca da sagrada liberdade e essa conquista é tão mais reverenciada pelo autor por representar um sublime ato de coragem. Infelizmente, estamos diante de triste realidade, e tanto o fugitivo político, como a massa de tantos outros que pelo planeta diariamente buscam refúgio além-fronteiras, são a grande chaga exposta da humanidade. Títeres, ditadores, absolutistas e legião de acólitos, sempre a seguir as ordens da crueldade e da subjugação dos povos, estarão sempre, hélas, a infestar os continentes. Nada a fazer, desde os primórdios da civilização.

On the book “L’Axe du Loup”, in which the French writer,  geographer and adventurer Sylvain Tesson recounts his eight-month journey from Yakutsk (Siberia) to Calcultta (India), tracing – on foot, horseback or by bike – the treacherous paths followed by political prisoners who dared to escape from the Soviet labor camps in search of freedom. Also a philosopher, the experience is a chance for Tesson to reflect on nature, modern society and totalitarianism.