“Amigos para Sempre”

O essencial na vida não é convencer ninguém,
nem talvez isso seja possível;
o que é preciso é que eles sejam nossos amigos;
para tal, seremos nós amigos deles;
e que forças hão-de trabalhar o mundo,
se pusermos de parte a amizade?
Agostinho da Silva (“Sete cartas a um jovem filósofo”)

Um outro livro me acompanhou durante a travessia atlântica. O meu bom amigo Antônio Toloi, engenheiro nascido na cidade de Brodowski, no interior de São Paulo, ofereceu-me há cerca de dois anos um livro escrito em parceria com sua colega de adolescência, Delsa Deise Macchetti. O título por si só já desperta curiosidade: “A Turma que Viajou no Ônibus do Nilo” (Brodowski, Legis Summa, 2010). Lembremo-nos que a cidade viu nascer o grande pintor pátrio Cândido Portinari.

Inúmeras vezes neste espaço salientei que a memória das aldeias, cidades, urbes não se resume apenas nas figuras que porventura ganharam notoriedade por seus feitos, ou no desenvolvimento sócio-cultural-econômico que acompanha respectivas trajetórias citadinas. Perder-se-iam para sempre etapas de real importância que caracterizam a vida dos personagens que viveram período que permaneceria na penumbra, não fosse a intenção de alguns em preservar a memória individual de determinado grupo, passados mais de meio século. A busca dessa recuperação, décadas após intenso pulsar, o cotejamento das lembranças que permaneceram, o coleguismo que imperou, o reviver uma época quase que inimaginável para as novas gerações são fatos que corroboram o imenso contributo que determinado grupo de companheiros de escola traz para a história da cidade e, na abrangência, para a cultura do país, pois viveu esse núcleo de estudantes uma realidade que se nos antolha riquíssima em pormenores de um tempo que se transformou. Essas considerações tornam-se ainda mais significativas se considerado for o fato de que tudo se passou sob a égide do coleguismo, diria puro, ingênuo e pleno de situações, por vezes hilariantes.

Os fatos deram-se em torno da década de 1950, quando crianças e adolescentes de  Brodowsky, tendo completado o Grupo Escolar, dirigiam-se a Batatais para cursar outros estágios escolares. Entre os anos 1947 e 1958, o ônibus do senhor Nilo Lascala realizava três viagens de ida e de volta à cidade vizinha, levando e trazendo as várias turmas de estudantes. Esse trato diário dos alunos com Nilo, a convivência amistosa, constituída de tantas brincadeiras hoje não mais praticadas, a descontração, todos esses aspectos são deliciosamente tratados pelos que empreenderam o projeto e através de depoimentos pessoais daqueles que se propuseram a relembrar o passado feliz.

Entre Brodowsky e Batatais, a estrada era de terra batida e os estudantes usavam guarda-pó e lenços, mercê da poeira intensa, a fim de não sujar uniformes. Durante o trajeto não faltavam peraltices dos adolescentes e aquelas que mais marcaram são repetidas nos vários depoimentos. Frise-se que em nenhuma dessas “confissões” há algo que não seja a lembrança prazerosa.

Em torno da temática a envolver o ônibus do Nilo, Antônio Toloi e Delsa Deisi Marchetti traçam a história das origens de Brodowski, que remonta a 1894, e como tantas cidades do nosso interior, a partir da Estação Ferroviária. Seria a Companhia Mogiana de Estrada de Ferro que se lembraria do inspetor geral, dando à estação o nome de Engenheiro Brodowsky. Quando da turma do ônibus do Nilo, isso por volta de 1950, Brodowsky contava 3.000 habitantes. Comentam os autores que “Brodowski é um tanto diferente das demais cidades: em todas, a praça principal fica em frente à igreja matriz; em Brodowsky não, a praça principal fica em frente à estação ferroviária da Mogiana e o povo chamava essa praça de Jardim”. Realmente, as que nasceram antes da chegada da via férrea brotavam circundando igrejas ou  cresciam junto aos portos marítimos ou fluviais.

Os autores enumeram características de Brodowsky no tempo da  infância e da adolescência: jardim, bandas, coreto, o passeio nos fins de semana, onde os jovens “paqueravam” com “educação”, pois no máximo era permitido em público mãozinhas dadas dos namorados. Comentam as técnicas, a fim do início de um namoro. O cinema tem bom espaço no livro e como não pensar em “Cinema Paradiso”, do diretor Giuseppe Tornatore com música do extraordinário Ennio Morricone? Semelhança brodowskiana real com o desenrolar do comovente filme. Quermesses, circo onde os autores contam as peraltices, a fim de passar por baixo da lona sem pagar os tostões da entrada. Os bailinhos são mencionados com muito humor. Saraus que aconteciam, grupos musicais da cidade ou que a visitavam. Descrevem a importância de festivais, quando peças teatrais eram apresentadas, e os carnavais participativos. Observam a edificação de novas construções à medida que a cidade se expande.

Hilariante o subtítulo “As diversões proibidas: o prostíbulo da Dª Sinhaninha”. Certamente é António Toloi que escreve: “Ai de quem fosse visto descendo a Floriano Peixoto, se não morasse no Saci ou lá tivesse parentes! Se isso acontecesse à noite então… é bom nem falar”!

Comovente a lembrança dos professores e de suas características, assim como o depoimento de tantos alunos da “turma que viajou no ônibus do Nilo”. Situações onde a puerilidade, a traquinagem, mas também um espírito bonito de camaradagem reinavam. Quase todos os depoimentos têm pontos em comum, o que autentica a narrativa. Estou a me lembrar de três livros, entre outros, que, sob outro contexto e sem juízo de valor neste post, mas com pontos em comum, encantaram minha adolescência-juventude: do italiano Edmondo De Amicis (1846-1908), “Cuore”; do húngaro Ferenc Molnár (1878-1952), “Os Meninos da Rua Paula” e do francês Alain-Fournier (1886-1914), “Le Grand Meaulnes”. 

Um aspecto interessante a ser colocado e que marcou aquela turma do ônibus do Nilo: como o veículo seguia superlotado, sorteavam semanalmente aqueles que iriam sentados e os que seguiriam em pé. A estrada era de terra batida e viajar nessa segunda hipótese era tudo o que a turma não queria. Contudo, “democraticamente” aceitavam o resultado do sorteio.

O reencontro do grupo de estudantes com o Sr. Nilo foi pleno de emoção. Ainda na ativa, hoje a realizar outras atividades, o motorista recordou aquela fase que ficaria marcada para sempre na memória dos estudantes.

Muitos já se foram. Os autores mencionam 148 alunos que viajaram num período de 10 anos. Há uma breve ficha biográfica de cada estudante e até estado civil e descendência. Tudo a seguir um ritual amoroso.

Foi deliciosa a leitura de “A Turma que Viajou no ônibus do Nilo”. Os autores e seus colegas de antão souberam resgatar um período importante para o conhecimento de costumes que se estiolaram após mais de meio século. E basta esse fato para que o pequeno livro permaneça como testemunho inequívoco da transformação de Brodowski.

This post is an appreciation of the book “A Turma que Viajou no Ônibus do Nilo” (The Group that Has Traveled on Nilo’s Bus), written by my friend and engineer Antônio Toloi together with his childhood friend Delsa Deise Macchetti. They recall their youth in the small city of Brodowski – countryside of São Paulo State – in the fifties, with precious and often funny details about customs and social conventions that no longer exist.