Boas Lembranças não Faltam

Je te l’ai dit de la prière
qui  est exercice de l’amour,
grâce au silence de Dieu.
Si tu avais trouvé Dieu
tu te fonderais en Lui,
désormais accompli.
Saint-Exupéry (Citadelle – LIV)

Convidado pela pintora, escritora e professora doutora Maria Amélia Blasi de Toledo Piza para uma apresentação em Botucatu, de imediato aquiesci, ainda mais pelo fato de o convite envolver o prefácio do novo livro de Maria Amélia, a contar a história da música na cidade (Botucatu – Notas Musicais. Botucatu, Santana, 2013). Li com raro interesse o pormenorizado e carinhoso livro, a narrar desde as origens de Botucatu, à trajetória das manifestações musicais na bela cidade do interior do Estado de São Paulo.

Foi em 1952 que, a convite de Ditinha Vasconcelos, verdadeira secretária da insigne pianista Guiomar Novaes, conheci D.Frei Henrique Golland Trindade (1897-1974), então bispo de Botucatu. Meu irmão e eu nos apresentamos na Igreja de São Francisco, no largo do mesmo nome em São Paulo, num recital com a presença do ilustre prelado e freis da ordem franciscana. E começou a partir desse recital uma amizade que se prolongaria até o último suspiro de D.Henrique.

Durante os anos que se seguiram, anualmente nos apresentávamos em Botucatu e, posteriormente, em várias oportunidades toquei recitais solo no auditório do Conservatório Santa Marcelina. A renda se destinou sempre, integralmente, à Vila dos Meninos Sagrada Família. A única exceção se deu quando reverteram a bilheteria para os magníficos sinos que chegavam à Catedral. Durante o bispado e arcebispado de D.Henrique hospedava-me no Palácio Episcopal. Devo ao ilustre prelado, sacerdote que teve uma vida santa e que um dia deverá estar no altar, o aprimoramento da fé, o sentir no mais humilde o verdadeiro irmão em Cristo. D.Henrique foi meu padrinho de crisma e celebrou, em Campinas, meu casamento com Regina, em 1963. Orador sacro excepcional – considerado primus inter pares por tantos ilustres sacerdotes – autor de inúmeros livros, alguns traduzidos, ensinou-me caminhos inusitados da arte. Tinha um “santo orgulho”, como costumava dizer, ao apresentar a Capela da Santíssima Trindade, de alvenaria e com tijolos à vista, despojada de artifícios, que se situa no interior do Seminário. Na ábside localiza-se o magnífico afresco do pintor Henrique Oswald – neto do grande compositor do mesmo nome – e que faz alusão à Santíssima Trindade. O artista teve a colaboração efetiva de sua esposa Jacyra.  A pintura foi-me pormenorizada em cada traço por D.Henrique. A dissertação de mestrado de Maria Amélia Blasi de Toledo Piza junto à UNESP-Bauru estuda com profundidade as pinturas da singular capela. Participei da banca examinadora.

Estou a me lembrar de três episódios marcantes. Estávamos nos anos 1950. O quarto em que D.Henrique dormia no Palácio Episcopal tinha um leito estreito com uma madeira, ao invés de colchão, coberta e travesseiro. Perguntei-lhe se era essa a sua cama. Respondeu-me que o mínimo de penitência que poderia oferecer era esse sacrifício. D.Henrique sempre chegava “atrasado” ao café da manhã, pois ao raiar o dia já estava a visitar necessitados botucatuenses.  Em 1973, após uma apresentação em Botucatu, fui visitá-lo antes de regressar a São Paulo. Era uma manhã gélida e brumosa e D.Henrique já residia na Vila dos Meninos Sagrada Família. Encontrei-o ajoelhado no jardim, a cabeça coberta pelo capuz, a podar rosas. Ajudei-o a  levantar-se, mas antes indaguei-lhe sobre seu estado de saúde. Abaixou o tradicional capuz franciscano, levantou as mãos ao alto e disse com sua voz grave e inconfundível: “Enquanto puder glorificar a Deus, sou um homem feliz”. Após tomamos o pequeno almoço. Foi nosso último encontro. Lembro ao leitor que D.Henrique foi o primeiro Arcebispo de Botucatu, sendo que dez anos após, em 1968, tornou-se resignatário. A partir dessa decisão recolheu-se à Vila dos Meninos, que ele fundou.

A ligação com a cidade ficaria mais intensa quando passei a dar aulas no Conservatório Santa Marcelina. Entre as décadas de 1960-1970, por sete anos, uma vez ao mês visitava Botucatu para aulas que se prolongavam durante os sábados. Duas dedicadas irmãs, Lília Aguiar Ayres e a saudosa Lúcia de Castro Alves, sempre atentas, acompanhavam o desenvolver das alunas, algumas internas do Colégio das Irmãs Marcelinas.

Em inúmeros posts tenho me posicionado quanto à ausência da crítica musical competente, hoje, na megalópole São Paulo. Em seminário na Université Sorbonne pronunciei-me sobre esse fato, aliás a ocorrer também em grandes centros europeus. Entretanto, tem-se, como ficou patente naquele encontro, a crítica tantas vezes de valor através da internet. Na fronteira da segunda metade do século XX, São Paulo tinha 12 ou 13 críticos, muitos deles músicos, como J.H.Koellreutter, Caldeira Filho, Dinorá de Carvalho, Cyro Brisolla. O que de mais significativo representava essa crítica era a presença de quem escrevia nos concertos e recitais de jovens que iniciavam o longo percurso… Todo o estímulo para tantos intérpretes daquela geração veio dessa crítica, que apontava talentos ou, “diplomaticamente”, não dava maiores esperanças. Sessenta anos após, o jovem que está a dar os primeiros passos na difícil carreira não mais tem essa palavra abalizada sobre seu desempenho público. Dirige-se a “crítica” ao consagrado pátrio ou de alhures.

Essas considerações se fazem necessárias, pois em Botucatu na década de 1950, após os recitais, três ou quatro críticos escreviam. Alguns padres que regiam corais e leigos cultos colocavam suas opiniões no Monitor Diocesano, na Folha e no Correio de Botucatu. Posso afirmar que algumas das críticas que mais marcariam o meu já longo caminhar musical vieram de Botucatu. O Padre João Dias Ramalho, do Monitor Diocesano, traçaria o perfil do jovem de 16 anos sem o menor equívoco. Diria que 90% do que sou já estavam sendo apontados pelo crítico, apenas a partir da interpretação musical! Não o conheci, mas ao reler ultimamente essa crítica fiquei impactado. No mesmo jornal, em outra secção, o Dr. Aleixo Delmanto foi preciso em suas observações, e a captação da personalidade através da execução ficaria registrada. Entendo essas críticas, para jovens que despontavam, como farol a guiar o navegante. De onde viria a auto-confiança, a não ser do acúmulo de estímulos espontâneos? Essa crítica, que se estiolou nas décadas posteriores pelo Brasil, era fundamental e evidenciava a competência de quem escrevia. Saudar o consagrado é tarefa tão fácil!!!

No programa do recital inseri obras que me são caras. Carlos Seixas (duas Sonatas), Modest Moussorgsky (Quadros de uma Exposição), Henrique Oswald (Valse-Caprice op. 11 nº 1), Claude Debussy (L’Isle Joyeuse) e Alexander Scriabine (Vers la Flamme). Duas criações recentes do notável compositor francês François Servenière serão apresentadas em primeira audição mundial, o Étude Cosmique nº 4 – Níquel e Outono Cósmico In Memoriam Luca Vitali, o grande artista plástico e designer que nos deixou neste ano.

Quase sessenta anos se passaram… Retornar a Botucatu para o recital, na mesma sala em que me apresentei tantas vezes, leva-me necessariamente à emoção. Tornamo-nos mais sensíveis com o passar dos anos. Reverter toda a renda para a Vila dos Meninos Sagrada Família é a continuação de minha admiração pelo estandarte empunhado por D.Henrique. Estar presente no lançamento do belíssimo livro de Maria Amélia Blasi de Toledo Piza, uma grande alegria.

On my return to the city of Botucatu for a benefit concert. As many times in the past, funds raised will be fully directed to the Vila dos Meninos, a home for poor children founded by the late archbishop of Botucatu, Dom Henrique Golland Trindade.