Navegando Posts publicados em dezembro, 2013

Seguir a Observar nosso Entorno

A grande diferença entre o inteligente e o estúpido
- entre o chamado inteligente e o chamado estúpido –
é que o primeiro se esforça.

Como nada entenderam do passado,
nada podem sonhar para o futuro.
Agostinho da Silva

A impressão parece ser a de um acelerar, à medida que a idade segue sua trajetória. Estou a me lembrar de que na infância-adolescência o fim do ano demorava uma eternidade para chegar. A inexorabilidade do tempus finitus nos faz sentir mais próximos de nossos destinos finais.

Alguns aspectos mereceriam considerações nesse ano que ora finda. Este post, longe de ser temático, capta algumas impressões assimiladas ao longo do ano de 2013. Não poderia deixar de me posicionar frente ao que estamos a viver em nosso país e na cidade como um todo. É triste constatar a deterioração evidente dos costumes e da desacreditada e nefasta grande maioria de nossa classe política. Raro o dia em que um escândalo a envolver algum personagem político não vem a público, majoritariamente sobre corrupção. Corruptos por vezes são denunciados, corruptores permanecem quase sempre impunes. Aos esclarecidos é motivo de desalento e tristeza; aos beneficiários de bolsas, cotas e demais benesses do governo, esses fatos nocivos não têm a menor influência na hora do voto. O partido planaltino não tem a mínima oposição dessa gigantesca legião de adeptos, mercê desses favorecimentos. Sob outro aspecto, o léxico brasileiro conhecido no Exterior tem uma palavra que se junta a outras bem ventiladas, como samba, Corcovado, Copacabana, Bahia, Pelé, Amazonas… Trata-se de mensalão. Sabem pronunciá-la razoavelmente bem e conhecem os porquês, dois os três personagens principais e a extensão do significado.

A Prefeitura tem no alcaide de plantão figura que, já no Ministério da Educação, foi alvo de críticas fundadas, graças aos episódios sobre os exames do ENEM e a publicação de livros que continham erros essenciais. Ao contribuinte ficou a incumbência de cobrir, com seus impostos, tributos e taxas elevadas, os erros devidos à “desatenção”. À testa da maior cidade da América do Sul, o ex-ministro está a cometer equívocos que igualmente não enaltecem sua figura. O aumento do IPTU algumas vezes acima da inflação gerou protestos generalizados, e a cobrança do imposto predial urbano encontra-se suspensa pelo Judiciário até que o Tribunal de Justiça Paulista aprecie o mérito. O “silêncio” frente à progressiva invasão dos “sem teto” na imensa urbe é outro exemplo de gestão complicada. Neste item, algumas dessas “apropriações” mereceriam destaque. O vão do MASP, o mais importante museu do cone sul americano, tem sido invadido sistematicamente por sem teto; a Praça Cedro do Líbano, em plena Avenida Brasil, abriga algumas tendas de moradores de rua, assim como a Acibe Ballan Camasmie e a perigosa esquina da rua Ribeiro do Vale com a Av. Bandeirantes, no Brooklin. O centro da cidade exibe calçadas a abrigar quantidade expressiva de moradores de rua. Esse é o clima que parece estar a imperar na atual gestão, não enfrentar problemas que possam acarretar algum tipo especial de desgaste junto a determinadas camadas sociais. O atual burgomestre, não tomando qualquer medida para solucionar essa silenciosa e constante invasão, corre o risco de ser personagem similar a “L’Apprenti Sorcier” (O aprendiz de feiticeiro) composição de Paul Dukas (1865-1935), baseado em conto de Goethe e popularizado através do filme Fantasia (1940), de Walt Disney, em que Mickey Mouse é o astro a representar o aprendiz. Ainda há tempo para que essa invasão seja contida. Haveria vontade política?

Lamentável o que ocorreu na Universidade de São Paulo, que tende a despencar em próximas avaliações internacionais. O Jornal da USP apresenta, em sua edição de 2 a 8 de Dezembro de 2013, cenas da maior barbárie. Bandidos travestidos de alunos, semelhantes aos bandidos igualmente travestidos de torcedores que infestam estádios, destruíram a Reitoria. Uma total falta de autoridade por parte da cúpula da universidade e do Estado. E só de pensar que o delinquente que está com uma marreta em uma das ilustrações deste post deveria ser um dos celerados que pleiteava votação direta para Reitor e outras mais reivindicações!!! Foram presos, haverá sanção aos invasores delinquentes “uspianos” fácilmente reconhecíveis através de inúmeras fotos, serão expulsos da universidade? Neste caso, é o mínimo que se pode pensar antes de uma ação penal rigorosa. Contudo, nada acontecerá e outras greves e destruições ainda maiores poderão ocorrer. E de pensar que esses bandidos que quebraram o que havia dentro da Reitoria, saqueando-a e lá permanecendo durante mais de um mês, um dia estarão a ocupar postos prováveis de importância!

Vergonhoso o estender do tapetão no julgamento de minha desafortunada Portuguesa de Desportos. Neste país, os poderosos sempre obtêm privilégios, ou através de renomados advogados ou pela posição econômico-social influente. Triste constatar que o Fluminense tem farta tradição nessas viradas de mesa em tribunais esportivos instalados na engrenagem da CBF no Rio de Janeiro. Comentaristas afirmaram que, durante o campeonato de 2013 da série A, a Portuguesa foi prejudicada em vários jogos, mercê das arbitragens. Hoje relegada à pequena torcida, mas a merecer continuar na série A graças ao desempenho no campo de futebol, está a dar lugar ao Fluminense em decisão estranhíssima de tribunal esportivo no… Rio de Janeiro, sede do time carioca. A Portuguesa de Desportos tem o dever moral de entrar na Justiça Comum. Não há outra saída. Certamente tomará tal atitude. O mundo esportivo além- fronteiras precisa conhecer o que ocorre no futebol brasileiro. Qual a razão para que não haja concurso público para a composição dos tribunais esportivos?  Meu querido irmão e ilustre advogado Ives Gandra, em entrevista concedida ao programa de Milton Neves na Rádio Bandeirantes, pronunciou-se a respeito dessa concentração de poderes do STJD (Superior Tribunal de Justiça Esportiva) no Rio de Janeiro… em mãos de um feudo: “Temos um tribunal como feudo de uma família, os Zveiters dominam o STJD. O atual presidente (Flávio Zveiter) foi considerado um grande jurista já no terceiro ano de faculdade para ingressar no STJD. Nem o Miguel Reale no terceiro ano de faculdade era considerado um grande jurista.” (band.com.br ; 16 de Dezembro, 17:03). Sem mais comentários!!! Ao fim do julgamento com cartas marcadas, enquanto, com razões de sobra, torcedores da Portuguesa choravam, após luta árdua dentro do campo para se manter na série A, outros do Fluminense, de maneira constrangedora, insensata e melancólica, saudavam com euforia o “Tricampeonato” obtido no tapetão e não no gramado. Especialistas na matéria, dirigentes do Fluminense já têm a tradição de nefasta façanha e saberão valer-se da artimanha sempre que se fizer necessário.

Se quase nada temos a comemorar em nosso país sob o aspecto ético e moral, se o crescimento do Brasil foi pífio, se a Petrobrás – outrora uma das grande empresas mundiais – claudica, após gestões complexas nesses últimos 12 anos, se os corredores dos hospitais públicos mostram vergonhosas imagens que ratificam o descaso, graças à desídia administrativa, se anualmente dezenas de milhares de brasileiros sucumbem nas estradas ou em assassinatos brutais, há que se considerar que o povo saiu às ruas a clamar reivindicações básicas e moralidade política. As imagens de milhões de brasileiros ocupando avenidas e praças em Julho correram o mundo. Esse imenso povo ainda não foi atendido em seus pedidos essenciais.  Tudo está a tender ao esquecimento. Até quando?

A visita de Sua Santidade Papa Francisco foi o mais belo exemplo de fé, congraçamento, integração, despojamento. Milhões de jovens vindos de tantos países para a JMJ participaram durante uma semana inteira dos encontros com o Papa no Rio de Janeiro e na Basílica de Aparecida. A não se esquecer jamais aqueles momentos. Sob o plano individual, tristeza ao perder minha sogra, a ilustre professora Olga Normanha e o diletíssimo amigo, o pintor Luca Vitali. As alegrias vieram do amoroso convívio familiar e dos poucos e fiéis amigos; das leituras de tantos universos contidos nos livros percorridos; dos posts semanais; da Música, minha companheira desde a infância; das corridas de rua, que já somam 73 em cinco anos. Após um lustro participando ininterruptamente da Corrida de São Silvestre, não mais correrei a prova, mercê da irresponsabilidade da organização em manter a perigosa descida da Major Natanael neste próximo dia 31, causadora na edição passada da morte de um cadeirante. Israel Cruz Jackson de Barros não conseguiu fazer a curva no final da rua, a cadeira de rodas virou e o atleta amador bateria a cabeça no muro do complexo do Estádio do Pacaembu. Um desrespeito à comunidade esportiva a manutenção do percurso para este fim de ano. Quando interesses estão em jogo…

Enquanto o sopro existir continuarei a manter os posts semanais e a estreita relação com os leitores. São eles que me dão o estímulo para prosseguir. A todos, os meus votos profundos de um 2014 mais esperançoso.

It’s New Year again but I don’t see much to celebrate. All I see is the defeat of Christian morals, corruption, the streets of my city invaded by homeless people and panhandlers and authorities not dealing with the problem, the building of the Rectorate of USP (University of São Paulo) destroyed by revolted students whose acts remained unpunished, my football team relegated to the 2nd division of our national league thanks to a dirty trick played by directors of Fluminense, one of the most widely supported football teams in Brazil – and thus a guarantee of sold-out stadiums. What remains to be celebrated are family, friends, my music, my books, my blog and always the hope for a new beginning.

Quando Lembrança é Bem-Vinda

Espelho, amigo verdadeiro, 
Tu refletes as minhas rugas, 
Os meus cabelos brancos, 
Os meus olhos míopes e cansados. 
Espelho, amigo verdadeiro, 
Mestre do realismo exato e minucioso, 
Obrigado, obrigado! 

Mas se fosses mágico, 
Penetrarias até o fundo desse homem triste, 
Descobririas o menino que sustenta esse homem, 
O menino que não quer morrer, 
Que não morrerá senão comigo, 
O menino que todos os anos na véspera do Natal 
Pensa ainda em pôr os seus chinelinhos atrás da porta.
Manuel Bandeira  (Lira dos cinquent’anos)

Aproxima-se mais um Natal. Para o cristão que apreendeu, através de ascendentes, o espírito do nascimento do Cristo, há sensíveis motivos para que a comemoração represente um repensar o ano que está a findar, experiências boas ou menos favoráveis que foram percorridas e, entre os seus mais caros, congraçar-se de maneira fraterna. Sob outra égide, mais e mais antecipa-se a propaganda natalina, a descaracterizar por completo a essência do evento. Publicidades já em fins de Agosto!!! Uma total irreverência. Estou a me lembrar de que em minha infância-adolescência todo o pensamento voltado ao Natal iniciava-se no dia 1º de Dezembro. Comércio e Mídia conseguiram banalizar a festividade maior da cristandade, mormente para quem não vive intensamente o nascer de Cristo.

Estou a me lembrar de episódio que ficaria registrado para sempre. Nas décadas de 1980-1990 foram várias as viagens a Paris para aprofundamentos na obra de Claude Debussy. Em uma delas, ainda no aeroporto de Guarulhos, encontro-me casualmente com o competente historiador e estudioso de uma das vertentes da musicologia, Arnaldo Contier, então professor da FFLCH da Universidade de São Paulo. Coincidentemente viajávamos na mesma aeronave para pesquisas na Bibliothèque Nationale, ele a buscar subsídios para a sua área. Durante duas semanas encontrávamo-nos na BN e algumas vezes almoçamos no entorno.

Nesse profícuo período, o ilustre musicólogo e amigo François Lesure – quase que consensualmente o mais importante especialista em Claude Debussy num plano mundial na segunda metade do século XX – dirigia o Departamento de Música da BN. Propiciou-me o privilégio de poder trabalhar durante as duas semanas os manuscritos originais para piano do grande mestre. Recolhia-me a uma sala individual e, à medida que findava o estudo de determinada partitura, uma funcionária a retirava e colocava à mesa outro manuscrito. Munido de luvas e de um sistema para virar páginas amarelecidas pelo tempo, percorri com reverência cada compasso, a entender a escrita precisa, não desprovida de certas rasuras. Debussy escreveria em 1915 ao seu editor Jacques Durand, ao concluir os “Douze Études” para piano: “a mais minuciosa estampa japonesa é uma brincadeira de criança ao lado do grafismo de certas páginas, mas estou contente, foi um bom trabalho”!

Certa noite François Lesure convidou-me para jantar em seu apartamento. Noite muito agradável em que a adorável Anik Lesure e François mostraram-se impecáveis anfitriões. Estava presente dirigente da importante livraria Aux Amateurs de Livres, Alain Baudry, que, após relato de François a respeito de meu longo envolvimento com a obra de Debussy, mostrar-se-ia interessado pelos estudos que eu estava a realizar. Comentei que faltavam à minha biblioteca particular determinados livros sobre o compositor, mormente escritos na primeira metade do século XX. Convidou-me a visitar a livraria-editora, pois não apenas trabalhavam com  edições raras abrangendo várias áreas, como também exportavam obras francesas relevantes, em edições cuidadosas, para  universidades da América do Norte e do Japão. Editavam igualmente teses meritórias de séculos precedentes. A livraria mantinha  importante acervo de livros de arte e de literatura não mais encontráveis no mercado.

Manhã fria de um 24 de Dezembro, véspera de Natal. Convidei Arnaldo Contier para me acompanhar à livraria, situada no 62 da Avenue de Suffren, bem próxima à Tour Eiffel. Atônito e encantado, encontrei a maioria dos títulos que buscava, desde o livro do amigo de Debussy e seu biógrafo, Louis Laloy, editado em 1909 e tendo o número 17 de uma tiragem de 200 exemplares, assim como um dos compêndios (1926) de um dos mais importantes estudiosos do compositor, Léon Vallas, com dedicatória do punho do autor à “Ouvreuse du Cirque d’Été”, a célebre romancista francesa Colette. Cerca de vinte livros dessa rica bibliografia da primeira metade do século XX foram por mim selecionados. Ainda era a época dos francos franceses e a soma foi além dos 1.500 euros de hoje. Fui ao caixa para saber quais livros levar, pois teria de adequá-los ao meu orçamento econômico. Perguntei à senhora que me atendeu pelo senhor Alain Baudry. Avisado, desceu as escadarias com um grande cão labrador, a dizer que acabara de ler meu artigo publicado nos Cahiers Debussy, “La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy” (1985). A senhora apresentou-lhe a elevada conta com a relação completa. Alain Baudry leu o papel, olhou-me e, apertando minha mão, disse: “C’est l’esprit de Noël”. Ofereceu-me ainda livros recentes sobre música, publicados pelas Éditions Klincksieck, também sob sua direção.  Fiquei estupefato e essas obras vieram enriquecer meu conhecimento sobre o grande mestre francês. Arnaldo e eu saímos maravilhados com o gesto de tamanha generosidade.  À noite, Contier e eu, fomos comemorar o Natal em restaurante italiano em Montparnasse. Ao comentar com François Lesure sobre o ato do amigo, disse-me: “esse é Alain Baudry”.

O Espírito de Natal pode estar traduzido nas mais diversas ações de generosidade. Tem ela de ser natural, daquele que entende a dádiva  como extensão. Entidades religiosas ou laicas, sem contágio político, têm apreendido, ao longo dos tempos, o evento maior da cristandade como congraçamento pleno. Contudo, é no seio familiar que a semente de solidariedade torna-se planta e frutifica. Que a família continue como o bem maior! A todos leitores envio votos de paz e congraçamento nesta data maior da Cristandade.

On Christmas season and commercial interests transforming the date into a secular holiday for the celebration of materialistic consumerism. This reminded me of a Xmas spent in Paris. Visiting the bookshop of editor Alain Baudry, I selected a pile of books about Debussy I could not afford. While trying to sort out the ones I needed most, Alain Baudry, who was aware of my research on Claude Debussy’s works, shook my hand and offered me all the books as a gift, saying: c’est l’esprit de Noël.

Romance de Época – Variantes

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
Eugénio de Andrade

Luiz Gonzaga é bom amigo e vizinho. Encontramo-nos sempre pelas calçadas mal tratadas de nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, pouco a pouco sendo frequentado pelos sem teto, pessoas a quem a Prefeitura de São Paulo prefere não dar destino claro, a escolher, à maneira do avestruz, mergulhar a cabeça do “poder” sob a terra, quando de decisões que possam provocar incômodos à administração pública. Num desses dias fomos tomar um curto no Natural da Terra. Bom momento para descontração. Política, futebol, cotidiano e o descaso das gestões da Prefeitura, mormente a atual, pelos problemas cruciais da cidade-bairro e da urbe como um todo.

A certa altura, Luiz Gonzaga disse-me que encontrou em um alfarrabista o romance de João Silvério Trevisan, “Ana em Veneza”. Folheou-o e prontamente comprou-o. Gostou imenso da leitura, apesar de ter ficado desorientado com o final, que lhe causou uma sensação de desequilíbrio devido à situação delirante do personagem central, “transmigrado” para a modernidade. Disse-lhe que li o romance, gostei, mas tive sensação muito próxima à sua.

Conversamos sobre a obra, que teve publicação em 1994 (São Paulo, Best Seller), e lá pelas tantas Luiz Gonzaga indagou-me sobre a menção, no romance, ao compositor romântico brasileiro Henrique Oswald (1852-1931). A fim de esclarecimento para o leitor que porventura desconheça a obra, mencionaria o enredo básico de “Ana em Veneza”. Estamos diante de romance de época, que permeia a segunda metade do século XIX e adentra o XX. Ficção e realidade se amalgamam, abordando personagens como Júlia da Silva Bruhns Mann (1851-1923), nascida em Parati e mãe do escritor alemão Thomas Mann (1875-1955); a mucama de Júlia, a negra Ana; o ilustre compositor Alberto Nepomuceno (1864-1920) e tantos outros mais. Tem-se desde a apresentação do bucólico vivido em Parati às infiltrações, na Europa, de conteúdos  culturais outros,  que tenderiam a modificar posturas dos figurantes.

Toda essa premissa para louvar a seriedade de João Silvério Trevisan na “fixação” histórica que leva a um hipotético encontro de Nepomuceno com Henrique Oswald, em Florença, onde este último vivia com sua família constituída na Península. Sabedor de minha tese de doutorado sobre Oswald, a primeira realizada sobre o compositor, quis saber pormenores. Conversamos e emprestei-lhe o volume que correspondia ao compartimento biográfico. Trevisan inteirou-se do tema e, com raríssima acuidade, realizou o “encontro” entre os dois mestres. Inicialmente fixa o autor a data de 12 de Agosto de 1890, e Nepomuceno relataria nesse imaginário criado: “Já estou em casa do Henrique Oswald, o compositor amigo do Miguez. Fui muito bem recebido. O Oswald mora com a mulher, Signora Laudomia, e os filhos numa villa modesta mas muito agradável, com um jardinzinho cheio de rosas, hortências e gerânios. A quinta chama-se Villino San Paolo e fica no alto da colina de Fiesole, em meio a vilas luxuosas onde moram muitos estrangeiros abastados”. Trevisan menciona os quatro filhos, mas ressalva que “a mais nova, Nini, é ainda de colo e tem saúde bem fraca”. Há sutileza, pois Nini morreria logo após. Na ficção, Nepomuceno mencionaria que “À noite, o Oswald tocou algumas de suas peças para piano. São obras cheias de elegância e colorido, esplendidamente elaboradas”. A exacerbação quanto à feitura tem procedência, pois realmente elas excedem na escritura, como argumentei na tese. Arguta a afirmação, “atribuída” a Nepomuceno, que “tocou também trechos de um concerto para piano e orquestra, que está terminando de escrever”. A essa altura, Oswald estava em plena elaboração do Concerto para piano e orquestra op. 10. Como curiosidade, a neta do compositor, minha saudosa amiga Maria Isabel Oswald Monteiro, presenteou-me com o manuscrito autógrafo da versão para quinteto de cordas e piano que o autor fez do Concerto em menção. A gravação na íntegra, a partir desse manuscrito, está no YouTube (Quarteto Rubio, contrabaixo, e JEM ao  piano). Importa considerar, entre tantas outras situações de “Ana em Veneza”, a consciência de Trevisan em saber encontrar a fórmula que permitisse a fusão do fato real com a sua imaginação criativa. Luiz Gonzaga e eu ainda trocamos considerações sobre outras situações propostas por Trevisan, mormente a sócio-econômica de Parati nos anos 1860.

Entre incontáveis exemplos de romances de época, tantas vezes biográficos, mencionaria um pequeno e delicioso livro de Jean Echenoz sobre o compositor francês Maurice Ravel (Ravel. Paris, Minuit, 2006). O autor realizou extenso aprofundamento sobre a vida do músico, mormente os dez últimos anos. Pormenoriza os gostos voltados ao dandismo, possivelmente para atenuar a sua estatura bem pequena; atenta aos estados de ânimo do compositor; descreve os cuidadosos ambientes em que morava; relata, nesse “imaginário”, a célebre desavença real que teve em Nova York com o afamado regente italiano Arturo Toscanini em torno do célebre Bolero: “Quando Toscanini regeu à sua maneira, duas vezes mais rápido e accelerando, Ravel, aborrecido, foi vê-lo no camarim. Este não é o meu movimento, observou o compositor. Quando eu toco no movimento indicado, respondeu Toscanini, nenhum efeito se dá. Bem, retruca Ravel, então não mais conduza minha obra. Mas o senhor não conhece nada de sua música, continuou Toscanini, essa foi a única maneira que encontrei de agradar ao público. Ravel escreveria a Toscanini e o teor da carta é desconhecido”. O compositor, tendo sofrido problema degenerativo de origem neurológica, que o fez  afastar-se progressivamente do contato social, sofreria delicada intervenção cirúrgica que constataria a nítida diminuição de seu cérebro (não teria sido o que mais tarde ficaria conhecido como Mal de Alzheimer?). Echenoz, certamente após pesquisas na área, pormenoriza os lances do procedimento cirúrgico.   

Se a “fidelidade” ao real depende da intenção do autor em sua narrativa, há que se entender que o desvio da veracidade de maneira até acintosa é geralmente a norma em um romance ou filme. Neste, fatos até hilariantes e distorcidos podem influenciar incautos que entendem, falta de outra opção, a fantasia plena como autenticidade absoluta. O romance de época, ao centralizar figura relevante, pode desenvolver o simulacro, o caricato ou a busca do real. Nos dois romances mencionados, essa última via teria sido a intenção dos autores, fator meritório. Ao longo da trajetória da narrativa, desde a antiga Grécia deparamo-nos com o real e o imaginário. A mitologia está plena dessa mescla e os relatos sacros também. Creio que o leitor, munido das ferramentas para separar as opções propostas por um autor, estará apto a distinguir, no desenrolar do relato, o real e o ficcional. 

The idea for this week’s post came after a chat with a friend about characters in historical novels: authors may mix historical characters and settings with sheer fantasy. It is for the reader to find out, as the story unfolds, what is history and what is fiction.