Romance de Época – Variantes

Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.
Eugénio de Andrade

Luiz Gonzaga é bom amigo e vizinho. Encontramo-nos sempre pelas calçadas mal tratadas de nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, pouco a pouco sendo frequentado pelos sem teto, pessoas a quem a Prefeitura de São Paulo prefere não dar destino claro, a escolher, à maneira do avestruz, mergulhar a cabeça do “poder” sob a terra, quando de decisões que possam provocar incômodos à administração pública. Num desses dias fomos tomar um curto no Natural da Terra. Bom momento para descontração. Política, futebol, cotidiano e o descaso das gestões da Prefeitura, mormente a atual, pelos problemas cruciais da cidade-bairro e da urbe como um todo.

A certa altura, Luiz Gonzaga disse-me que encontrou em um alfarrabista o romance de João Silvério Trevisan, “Ana em Veneza”. Folheou-o e prontamente comprou-o. Gostou imenso da leitura, apesar de ter ficado desorientado com o final, que lhe causou uma sensação de desequilíbrio devido à situação delirante do personagem central, “transmigrado” para a modernidade. Disse-lhe que li o romance, gostei, mas tive sensação muito próxima à sua.

Conversamos sobre a obra, que teve publicação em 1994 (São Paulo, Best Seller), e lá pelas tantas Luiz Gonzaga indagou-me sobre a menção, no romance, ao compositor romântico brasileiro Henrique Oswald (1852-1931). A fim de esclarecimento para o leitor que porventura desconheça a obra, mencionaria o enredo básico de “Ana em Veneza”. Estamos diante de romance de época, que permeia a segunda metade do século XIX e adentra o XX. Ficção e realidade se amalgamam, abordando personagens como Júlia da Silva Bruhns Mann (1851-1923), nascida em Parati e mãe do escritor alemão Thomas Mann (1875-1955); a mucama de Júlia, a negra Ana; o ilustre compositor Alberto Nepomuceno (1864-1920) e tantos outros mais. Tem-se desde a apresentação do bucólico vivido em Parati às infiltrações, na Europa, de conteúdos  culturais outros,  que tenderiam a modificar posturas dos figurantes.

Toda essa premissa para louvar a seriedade de João Silvério Trevisan na “fixação” histórica que leva a um hipotético encontro de Nepomuceno com Henrique Oswald, em Florença, onde este último vivia com sua família constituída na Península. Sabedor de minha tese de doutorado sobre Oswald, a primeira realizada sobre o compositor, quis saber pormenores. Conversamos e emprestei-lhe o volume que correspondia ao compartimento biográfico. Trevisan inteirou-se do tema e, com raríssima acuidade, realizou o “encontro” entre os dois mestres. Inicialmente fixa o autor a data de 12 de Agosto de 1890, e Nepomuceno relataria nesse imaginário criado: “Já estou em casa do Henrique Oswald, o compositor amigo do Miguez. Fui muito bem recebido. O Oswald mora com a mulher, Signora Laudomia, e os filhos numa villa modesta mas muito agradável, com um jardinzinho cheio de rosas, hortências e gerânios. A quinta chama-se Villino San Paolo e fica no alto da colina de Fiesole, em meio a vilas luxuosas onde moram muitos estrangeiros abastados”. Trevisan menciona os quatro filhos, mas ressalva que “a mais nova, Nini, é ainda de colo e tem saúde bem fraca”. Há sutileza, pois Nini morreria logo após. Na ficção, Nepomuceno mencionaria que “À noite, o Oswald tocou algumas de suas peças para piano. São obras cheias de elegância e colorido, esplendidamente elaboradas”. A exacerbação quanto à feitura tem procedência, pois realmente elas excedem na escritura, como argumentei na tese. Arguta a afirmação, “atribuída” a Nepomuceno, que “tocou também trechos de um concerto para piano e orquestra, que está terminando de escrever”. A essa altura, Oswald estava em plena elaboração do Concerto para piano e orquestra op. 10. Como curiosidade, a neta do compositor, minha saudosa amiga Maria Isabel Oswald Monteiro, presenteou-me com o manuscrito autógrafo da versão para quinteto de cordas e piano que o autor fez do Concerto em menção. A gravação na íntegra, a partir desse manuscrito, está no YouTube (Quarteto Rubio, contrabaixo, e JEM ao  piano). Importa considerar, entre tantas outras situações de “Ana em Veneza”, a consciência de Trevisan em saber encontrar a fórmula que permitisse a fusão do fato real com a sua imaginação criativa. Luiz Gonzaga e eu ainda trocamos considerações sobre outras situações propostas por Trevisan, mormente a sócio-econômica de Parati nos anos 1860.

Entre incontáveis exemplos de romances de época, tantas vezes biográficos, mencionaria um pequeno e delicioso livro de Jean Echenoz sobre o compositor francês Maurice Ravel (Ravel. Paris, Minuit, 2006). O autor realizou extenso aprofundamento sobre a vida do músico, mormente os dez últimos anos. Pormenoriza os gostos voltados ao dandismo, possivelmente para atenuar a sua estatura bem pequena; atenta aos estados de ânimo do compositor; descreve os cuidadosos ambientes em que morava; relata, nesse “imaginário”, a célebre desavença real que teve em Nova York com o afamado regente italiano Arturo Toscanini em torno do célebre Bolero: “Quando Toscanini regeu à sua maneira, duas vezes mais rápido e accelerando, Ravel, aborrecido, foi vê-lo no camarim. Este não é o meu movimento, observou o compositor. Quando eu toco no movimento indicado, respondeu Toscanini, nenhum efeito se dá. Bem, retruca Ravel, então não mais conduza minha obra. Mas o senhor não conhece nada de sua música, continuou Toscanini, essa foi a única maneira que encontrei de agradar ao público. Ravel escreveria a Toscanini e o teor da carta é desconhecido”. O compositor, tendo sofrido problema degenerativo de origem neurológica, que o fez  afastar-se progressivamente do contato social, sofreria delicada intervenção cirúrgica que constataria a nítida diminuição de seu cérebro (não teria sido o que mais tarde ficaria conhecido como Mal de Alzheimer?). Echenoz, certamente após pesquisas na área, pormenoriza os lances do procedimento cirúrgico.   

Se a “fidelidade” ao real depende da intenção do autor em sua narrativa, há que se entender que o desvio da veracidade de maneira até acintosa é geralmente a norma em um romance ou filme. Neste, fatos até hilariantes e distorcidos podem influenciar incautos que entendem, falta de outra opção, a fantasia plena como autenticidade absoluta. O romance de época, ao centralizar figura relevante, pode desenvolver o simulacro, o caricato ou a busca do real. Nos dois romances mencionados, essa última via teria sido a intenção dos autores, fator meritório. Ao longo da trajetória da narrativa, desde a antiga Grécia deparamo-nos com o real e o imaginário. A mitologia está plena dessa mescla e os relatos sacros também. Creio que o leitor, munido das ferramentas para separar as opções propostas por um autor, estará apto a distinguir, no desenrolar do relato, o real e o ficcional. 

The idea for this week’s post came after a chat with a friend about characters in historical novels: authors may mix historical characters and settings with sheer fantasy. It is for the reader to find out, as the story unfolds, what is history and what is fiction.