Urge Desvelar um Grande Artista!

A Essência da Arte, Simplesmente

Pintor superior
Se você quiser sofrer
Nem as verdades, e
Nem as mentiras,
Curam uma dor egoísta.
Porém se eu pudesse hoje
Pintar o amor
Pintaria você…
Simples, pura e bela.
Como uma flor.
Assumo o meu eu e o seu eu
superior.
Luca Vitali

A Exposição que seria realizada na Casa Carramate no último dia 5 de Dezembro em homenagem a Luca Vitali, esse grande artista que partiu em Abril último, estaria sob a égide da emoção. Fortes aguaceiros e uma imensa árvore que caiu, obliteraram passagens e derrubaram a energia elétrica. Prenúncio de um verão que sempre vem acompanhado de tragédias, mercê do descaso de nossas autoridades municipais durante o período de estio. A homenagem teve de ser adiada uma hora antes da Exposição. Contudo, é sempre prazeroso, nostálgico e reverencial falar do imenso artista e saudoso amigo Luca Vitali. O blog já estava montado e, portanto, resolvi publicá-lo, apesar desse impasse. Lembraria o post publicado logo após sua morte (Luca Vitali – 1940-2013, 20/04/2013) e um aspecto quase desconhecido do público: Luca, o poeta de pouquíssimos e argutos poemas.

Em “Amo-te-me” (São Paulo, Ateniense, 1988), Luca Vitali mostra-se o vate crítico, sem concessão a quaisquer derivativos prazerosos. O pequeno livro de poemas tem por vezes o cunho cáustico e as palavras atingem fundo o leitor. Outros merecem várias leituras para que a compreensão se dê, graças a uma hermenêutica própria, que não se destina a agradar a fim do efêmero reconhecimento. Os poemas lá estão, provocativos mas não intencionais, denunciadores sem máculas. O espaço reservado à torrente criativa que jorrava em forma de desenhos, telas acrílicas, design de interiores é um, inequívoco. O poema poderia ser o resultado do desalento frente à civilização em permanente deterioração. Há em muitos versos o desânimo, a certeza de que o homem Luca não foi moldado para se imiscuir nesse lodaçal que corrompe, deteriora, embrutece. Mergulha em si mesmo: “Olhar para o interior,/ o caminho da luz e/ flutuar na estrada, mesmo que irregular, da vida”. Luca é um puro. Nossa profunda amizade fazia-me apreender a alma generosa do artista, sempre propenso a ajudar o próximo incapacitado para que encontrasse o caminho da arte através da luz, do desenho, da cor, do sentimento solidário. Presenciar tantas injustiças, ou mesmo conviver com o irreparável, deve ter deixado profundas marcas na sensibilidade de Luca e “Amo-te-me” é o grito surdo de quem tudo observa e, apenas através da arte, buscava a diária reinvenção.

Poemas traduzem esse apelo que vem do de profundis do saudoso amigo:

O amor transforma uma mentira
E os males numa digna verdade.
Porque o superior é proposta real
De felicidade íntima.
Conta comigo para estar na Glória de
Deus
Conta comigo para
Estar na glória de
Vocês
Não peço perdão, porque
Não tem pecado na ignorância.

No poema que dá título ao livro, “Amo-te-me”,  Luca me faz lembrar versos do compositor russo Alexander Scriabine (1872-1915) em “Mysthère”, onde há nítida influência do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900):

Sou eles. Então sou só.
Com eles ou com muitos, seria
sem nenhum, e comigo também
não sou.
Sou com quem?
Antes comigo para ser eles.
E eles?
São meus seus, sigo comigo.
e eles sou eu
único.
Então sou eles, não deles.
Pai, Filho, Espírito.
Sou um só?
Sim, sou o Sol para ser de
muitos, eu para ser de vocês.
Amo-te-me

Uma das grandes qualidades de Luca Vitali está na profunda percepção. Cerca de 50 desenhos Luca criou para meus blogs ou para situações a partir de nossas profícuas conversas. Ao longo dos posts observei, reiteradas vezes, que Luca tinha um lápis na mente e que me impressionava a presteza com que apreendia uma ideia. Em uma das conversas descontraídas disse-lhe que, se seu cérebro fosse radiografado, preliminarmente deveria ele dizer aos médicos que o lápis lá estava e que não deveriam, portanto, tentar retirá-lo.

Após meu recital em Paris em fins de Janeiro, Regina e eu fomos visitar François Servenière, Elisa e os filhos em Blangy-le-Chatêau, na Normandia. Em nossas conversas, um dos temas foi a série constituída de Sept Études Cosmiques, que Servenière compôs a partir de pinturas em acrílico  sobre tela de Luca Vitali, a Série Cósmica. A morte prematura de Luca levou François a compor, sob forte emoção, o Outono Cósmico. Os sete estudos, mais a obra in memoriam de Luca Vitali, penso gravá-los em 2015 na Bélgica. Nessa curta estadia na Normandia, o dileto amigo nos levou conhecer pontos pitorescos da região: Deauville, Trouville, Honfleur. Visitei essa bela região em 1959. A Normandia ficou ainda mais divulgada após o desembarque aliado em 1944, início da grande ofensiva que levaria à derrota do nazismo. Ao contar a Luca os episódios em que milhares de jovens pereceram, o pintor ficou impactado. O desenho “Reenergização da Normandia” representa o duplo tributo, aos soldados que batalharam e ao amigo François Servenière. O compositor não deixaria de pensar um só dia nessa imagem em que, dos arames farpados, Luca tiraria a essência do acontecido, a fazer transcender do ferro retorcido a clave de Sol, a esperança através da música. O desaparecimento do artista, pouco depois, despertou ainda mais as musas que povoam a mente de Servenière. Surgiria a “Symphony for the Braves” para orquestra. São sete movimentos profundamente intensos e emotivos. Dois deles, o sexto e o sétimo, podem ser ouvidos pelo leitor ao clicar os links abaixo.

6º movimento: Peace for the Braves

7º movimento: Redemption

Luca pintor, puro, não afeito aos modismos nem à condução de sua arte pelos marchands. Caem como uma luva as palavras do Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa, quando afirma que “verdadeiros enganadores, graças à moda e a manipulação do gosto dos colecionadores provocadas pelos marchands e críticos, têm obras que alcançam preços vertiginosos”. Observa que “escritores, pensadores e artistas medíocres ou nulos, mas vistosos e pirotécnicos, espertos em publicidade e autopromoção, manobram com destreza os piores instintos do público e alcançam altíssimos índices de popularidade. Ficam parecendo os melhores para a inculta maioria, e suas obras valorizadas e divulgadas” (La Civilización del Espectáculo). Estou a me lembrar que visitei com Luca uma galeria de arte que expunha obras contemporâneas. Pormenorizou-me as técnicas de pintura empregadas, elogiando algumas e execrando outras, que considerava verdadeiros embustes. Luca desconhecia alguns dos expositores. Na sequência, vimos que um desses medíocres exemplares era um dos mais festejados. Realmente pinturas sem plano estabelecido, sem nuances, sem alma… sem nada. Fatos como esse, que ocorrem no mundo inteiro, levaram Vargas Llosa a não mais visitar Bienais de Arte. Acrescentaria, nas Artes Plásticas e na Música pululam exemplos, a todo instante.

Certamente a data da homenagem será remarcada. Não retirei o convite acima, pois as palavras nele contidas traduzem muito a intimidade e o carinho de familiares e amigos pelo homem, o artista, o amigo. Um pintor que não pode ser esquecido.

An exhibition in tribute to Luca Vitali, who passed away last April, was scheduled to take place on 5 December, but was postponed due to the heavy rain that hit São Paulo. Anyway, this post was written as a tribute to his memory. A multi-talented painter and graphic artist, Luca was also a poet with a book published. In this post I comment on some of his poems and also on François Servenière’s work for orchestra, “Symphony for the Braves”, inspired by one of Luca’s drawings. By clicking on the links provided readers may listen to two movements of Servenière’s symphony.