Navegando Posts publicados em março, 2014

Considerações sobre Criação e Descoberta, Arte e Aventura

O conceito “dois”
está estreitamente ligado ao conceito “semelhança”, “repetição”.
O conceito “outro”
com o conceito “diferenciação”, “novo”.
Alexandre Scriabine (Cahier II-91,  1904-1905)

Após o regresso da Europa escrevi posts sobre Sylvain Tesson e suas viagens através do planeta, assim como a respeito do longo estágio do wanderer às margens do lago Baikal, na Sibéria. Um outro foi dedicado à dileta amiga Idalete Giga, especialista amorosa do canto coral. Meu estimado amigo François Servenière, compositor e pensador, admira igualmente os livros de Tesson e a arte de Idalete. Dele recebi e-mail abrangente. Compartilho com o prezado leitor tópicos fundamentais.

“Há muito a dizer a respeito de seus últimos posts. Gostei muito da comparação (post de 15/02/2014) entre a pesquisa concernente às novas partituras (passado e presente) pelo intérprete musicólogo e a pesquisa de novos territórios (do pensamento) pelo geógrafo escritor. Ela causa impacto e estou absolutamente seguro que a sua tese é a coluna vertebral da pesquisa – do tempo perdido (Proust), dos territórios desconhecidos (Tesson), das partituras esquecidas (Martins), etc… Tive anteriormente discussões inflamadas sobre o aprofundamento e as grandes descobertas, que nos levaram a distinguir as buscas fundamentais (que descobrem ou inventam uma realidade, não se sabe), empreendidas por inventores, descobridores, geógrafos, pioneiros, aventureiros… Fiquei impressionado por todas as divergências de apreensões e de definições, acompanhando o propósito da discussão pelo conceito atribuído a Michelangelo Buonarroti. Pretendia ele, como você bem sabe, não estar a esculpir estátuas, mas sim a retirar das entranhas da pedra a criação existente que lá estava reclusa. A reflexão inusitada do imenso artista levou-me a compreender que a criação e as descobertas têm duplo sentido. Elas se abrem sob dedos, olhos, pernas ou espíritos de descobridores ou inventores – diz-se que um descobridor de sepulcros ou grutas pré-históricas é um ‘inventor’, – mas poderíamos também pretender evidentemente, para os espaços geográficos, que eles lá estavam antes de seus descobridores. Poderíamos igualmente afirmar o mesmo concernente à criação musical em geral. Estariam os compositores organizando a matéria segundo esquemas pré-concebidos do universo, aquela que está representada em suas mentes através de programações antediluvianas? Que eu saiba não há foto dessa evidência. Se pretendermos que a música nasça de nosso cérebro, o que é incontornável, colheríamos direitos autorais por ‘trabalho que merece salário’, como quaisquer outros esquemas de DNA – que são na realidade produtos das forjas do Universo -, e,   evidentemente, seríamos induzidos a uma linguagem universal (no sentido primeiro do termo), saída dessas programações primitivas. É para isso que a música serve, religar os seres vivos, todos os seres do Universo, sob uma mesma linguagem ‘universal’, a única, aliás. Idalete não diria o contrário, ela que acredita, como você, na universalidade da música e nos extraterrestres, crendo, ademais que a música será o único elo entre a Terra e outras civilizações, dia mais, dia menos. Julga-se que 50 milhões de planetas existam na Via Láctea e que a probabilidade de outras civilizações extra-terrestres segundo a Equação de Drake, é igual a 1.

Para mim, mesmo que não viva para esse encontro de ‘terceiro grau’, não entenderia uma comunicação com possíveis outros seres do espaço a não ser através da música. É fato que muitos músicos têm inteligência superior. Assim sendo, a música, que possui uma literatura inteligente, a mais avançada no domínio das áreas do conhecimento humanístico, diferentemente de gêneros mais vulgares no próprio segmento, como a música mal feita – esta fatalmente relegada ao esquecimento. A música denominada erudita será o primeiro vetor e testemunho para outros seres vivos do espaço. Como fazê-los compreender Voltaire, Rousseau? Mozart eles compreenderão imediatamente. In fine, os meios primitivos de destruição e de poderio que nos permitirão mudar de dimensão no espaço para a visita a outros sistemas solares saem das despesas militares. Isso é fato, como provaram estudos de economia e política sobre a matéria. Progresso técnico pressupõe, paralelamente, progresso militar ou de destruição. É estranho constatar os limites imediatos desses meios de destruição, se não associados imediatamente ao vetor da paz universal no mundo (e, seguramente, do universo), que é a música. Constatação que parece clara. Para que servem meios de destruição globais e totais, como as bombas mais modernas, se territórios atingidos são esvaziados de toda substância essencial inerente? Construir sobre o deserto destruído? O que restará de um planeta se arrasado pela potência de bombas tão poderosas como o sol? Eis o que me levou esta manhã a refletir sobre os blogs dedicados à Idalete Giga e a Sylvain Tesson. A Arte vocal, a ter Idalete como sacerdotisa, é a Arte fundamental do Universo. Sylvain Tesson faz-nos refletir sobre nossas origens de povos caminhantes e descobridores. Seus últimos posts transportam-nos às origens da vida, da essência do homem e dos povos”. Tradução JEM.

Consideraria que o grande compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1915) buscou com empolgação a união das Artes. Para tanto, imaginou um templo esférico que seria construído em um lago na India e onde todas as manifestações artísticas pudessem se manifestar. O projeto visionário tenderia a uma união totalizante com o Cosmo. A morte levou-o antes da concretização de  ideias com as quais se entusiasmara. Contudo, muitas delas podem ser apreendidas através do “L’Acte Préalable”, texto que introduziria a obra maior sobre o tema, “Mysthère”. Nesse Cosmo há profunda influência da teosofia e de textos de Friedrich Nietzsche (1844-1900), Annie Besant (1847-1933), Ana Blavatsky (1831-1891). O Universo idealizado por Scriabine não tem fronteiras espaciais. Não é extraordinário o fato de o compositor, em sua última fase criativa, escrever em 1912 uma obra tão instigante como Vers la Flamme, composição que, se escrita hoje, seria atualíssima? “Há muitas moradas na casa de meu Pai…” (João, cap. XIV, vers. 2).

Convido o leitor a ouvir Vers la Flamme na extraordinária interpretação de Vladimir Horowitz.

In this week’s post I publish an e-mail received from the French composer and intellectual François Servenière with his views on the subjects of similarities between venturing in unknown territories/unknown musical compositions and music as a universal language, understandable to all beings in the universe.

 


Reflexões em Cabana Isolada na Margem Ocidental do Lago Baikal

O que é a solidão?
Uma companhia que serve para tudo.
Sylvain Tesson

Mais uma narrativa de Sylvain Tesson acompanhou-me na recente viagem à Europa. Outras obras do autor narravam as longas caminhadas pelo planeta ou estágios nômades quando de bivaques em altas árvores ou nas cumieiras de igrejas ou catedrais. O pensamento sempre vivo de Tesson, amante da solidão, foi-se transformando ao longo dos anos. Ainda jovem (1972- ), Sylvain Tesson acumulou uma experiência menos voltada ao que agita a vida do citadino e mais intensamente ao que lhe vai à mente através da observação, que leva também à comparação.

Seria possível supor que as narrativas, comentadas em vários livros e resenhadas nos diversos posts, estivessem sob a direta influência do constante movimento. As prolongadas caminhadas de Sylvain Tesson, sob temperaturas extremas, acima e abaixo de zero, faziam-no narrador do cotidiano premente, metamorfoseado a cada dia através de paisagens as mais variadas, dos costumes de povos diferentes, de personagens que cruzavam seu percurso. Ao resenhar para o blog L’Axe du Loup – De la Sibérie à l’Inde sur les pas des évadés du goulag e Petit Traité sur l’Immensité du Monde (28/05/2011), La Marche au Ciel – 5000 km à pied à travers l’Himalaya – em companhia de Alexandre Poussin – (25/02/2012), Éloge de l’Énergie Vagabonde (16/03/2013) e Sous l’Étoile de la Liberté (12/10/2013), ficaria nítida a vocação do geógrafo, andarilho, wanderer, vagabond que observa o mundo que está a ser percorrido, memorizando e transcrevendo, à medida da trajetória, os mínimos detalhes. A reflexão está presente, mas a necessidade de continuar o percurso leva Sylvain Tesson mais acentuadamente à observação das sucessivas imagens, sejam elas de encantamento, de denúncia ou da desesperança. O ato voluntário desse caminhar solitário já não estaria a apontar para o desencanto da vida urbana?

Em Dans les Forêts de Sibérie (France, Gallimard, 2011), Tesson encontra a sua tebaida, que lhe propiciará a emersão do pensador. Como bem diz meu amigo François Servenière, “Tesson é um pensador de nosso tempo, sobre nosso tempo”. Quando de sua caminhada, durante muitos meses, de gulag siberiano a Calcutá, ao margear o lago Baikal em seus 700km de extensão, teve a convicção de que retornaria um dia. Esse regresso dar-se-ia em contexto outro, pois permaneceria em cabana alugada no sul da Sibéria, na margem ocidental do lago, durante parte de inverno, primavera e metade de verão, ou seja, conheceria as transformações sazonais. Meses a passar como eremita. “Os homens que ressentem dolorosamente o tempo passar não suportam o sedentarismo. Em movimento eles se acalmam. O desfilar do espaço lhes dá a ilusão do controle do tempo e suas vidas adquirem o fascínio de uma dança de São Guido. Eles se agitam. A alternativa é o tempo do eremita”.

A voluntária opção pela pequena cabana de madeira (3×3) teve longa gestação. Isolou-se  a dezenas de quilômetros de quaisquer outras cabanas ou povoações. Levou provimentos indispensáveis para a sobrevivência física e 90 livros para a mental. Enumera autores e títulos das obras, assim como todo o material de que dispôs. Não faltaram as muitas garrafas de vodka, fumo e pimenta. “O Tabasco permite que comamos não importa o que, tendo-se a impressão de estar comendo alguma coisa”. Duas janelas. Em frente àquela voltada para leste instala uma mesa e apreciaria o lago e suas metamorfoses. Serve-lhe para tudo: refeições, leitura, escrita e bricollades. “Fechado em seu cubo de madeira, o eremita não suja a Terra. Observa as estações dançarem a giga do eterno retorno. Privado das máquinas, ele cuida de seu corpo. Cortado de toda comunicação, ele decifra a língua das árvores. Liberto da televisão, descobre que uma janela é mais transparente do que uma tela”. O desprezo pela tela evidencia-se em outro contexto:  “Podemos também fechar os olhos. A pálpebra é a tela mais eficaz entre si mesmo e o mundo”. Não poupa a fotografia: “O mundo, obcecado pela imagem, priva-se de degustar as misteriosas emanações da vida. Nenhuma objetiva fotográfica captará reminiscências que uma paisagem desvela em nossos corações”. A visita de dois amigos pintores, que permanecem curto período, fê-lo refletir sobre “a infinita superioridade da pintura em relação à foto. Esta fixa o ponto preciso do instante em seu fluxo de duração e o apresenta já finalizado. Os antigos não estavam totalmente errados ao entender o clichê fotográfico como um roubo. O quadro propõe uma interpretação histórica do momento, que viverá muito tempo sob as pálpebras de quem o contempla. Ele não interrompe o curso do tempo: sua confecção é fluida, inscrevendo-se num longo intervalo de composição”.

À medida que os meses passam, Tesson absorve mais acentuadamente os impactos do entorno. A rotina é quebrada por passeios pela neve espessa ou gelo a  -30 no grande inverno; pelos necessários cortes de pequenas árvores para abastecer a lareira da cabana; pela pesca imperiosa; pelas constantes subidas às montanhas da região (1.500, 2.000m). Uma das frases de seu diário apreende a essência do wanderer ora sedentário, mas sempre curioso: “Apraz-me a ideia de subir as colinas para descobrir o que há do outro lado de meus domínios”. Faz o buraco no gelo e espera. Menciona o salvelino, peixe abundante no lago, e essa é sua principal fonte de proteínas. Periodicamente visita, após caminhadas ou deslizando pelo Baikal durante dias, vigilantes das reservas em torno do lago. Raramente, visitantes forasteiros, caçadores ou pescadores, ao verem a cabana, entram e convivem em torno de defumados e vodka, partindo a seguir. A rotina dimensiona a observação e nada escapa ao olhar de lince do autor, lince sempre mencionado, pois o felino deixa as marcas na neve e Tesson entende-as amigas. Admira, durante primavera e verão, a quantidade de pássaros migratórios. Apologia da vida.

Em forma de diário, Dans les Forêts de Sibérie estende-se de 9 de Fevereiro a 28 de Julho de 2010, ininterruptamente. “Tudo que resta de minha vida são as notas. Escrevo um diário íntimo para lutar contra o esquecimento, oferecer um suplemento para a memória. Se não conseguirmos transplantar fatos e gestos, para que viver: as horas passam, cada dia se apaga e o vazio triunfa. O diário íntimo, operação comando empreendida contra o absurdo”.

Permanecer praticamente sedentário propiciaria a eclosão de pensamentos originais. E seria nessa teia criada em torno do pensamento que emanam qualidades maiores de Sylvain Tesson, como a facilidade de associar imagens e situações; realizar, apesar da pouca idade, um balanço da condição humana; estabelecer fronteiras precisas entre o estressar das cidades e o isolamento a que se propôs. Ferramenta essencial para o bom escritor ou poeta, Tesson, ao utilizar-se da metáfora, dá ao processo a volúpia da metamorfose. “O imprevisto do eremita são seus pensamentos. Rompem o curso das horas idênticas. É necessário sonhar para se surpreender”. Eremita dono de uma “usina” de ideias. Paul Brunton, em Un Ermite dans l’Himalaya (vide post 07/12/2007), observava que o eremita vocacionado tem como objetivo chegar ao êxtase ao conseguir ter apenas um pensamento, fazendo evaporar outros simultâneos. Trata-se, segundo Brunton, de missão quase impossível. Pouquíssimos conseguem através da ascese. A mente de Tesson é povoada de ideias e pensamentos, contrariamente ao que escreve Brunton.

A mensagem eletrônica da amada que rompe relação leva Tesson à depressão. Durante dias, seu diário registra o desalento a partir do despertar: “quando acordo, ainda na alvorada, há o momento agradável, instante a preceder a consciência a se lembrar e o coração se contrair”. Refugia-se na leitura: “Os livros são mais confiáveis que a psicanálise. Eles dizem tudo, melhor do que a vida. Numa cabana, misturados à solidão, formam coquetel lítico perfeito”.

Na cabana não se tem a obrigação de reagir a tudo. Evita-se, segundo o autor, a resposta às questões. Entende o caráter agressivo de uma conversação. Ser obrigado a responder ao interlocutor. Afirma que “todo diálogo é uma luta”. O isolamento e os poucos contatos com russos, que habitam outras moradias distantes, fê-lo atento à característica por ele entendida como fundamental à alma russa, “o acolhimento resignado de qualquer coisa”. Tesson  designa esse estado de alma como pofigisme, sem tradução em francês, tampouco, ao que saiba, em português.

Dois cães fizeram-lhe companhia nas derradeiras semanas. Terá de deixá-los em lugar seguro antes do retorno à França. A eles se afeiçoa. Três dias antes da partida (26 de Julho), deposita em seu diário suas mais íntimas confissões. Refletem o metamorfose após a longa estadia. Profissão de fé.

“Eu vim até aqui sem saber se teria força para ficar e parto a saber que voltarei. Descobri que habitar o silêncio é rejuvenescer. Apreendi duas ou três coisas que muitos sabem sem recorrer ao isolamento. A virgindade do tempo é um tesouro. O desfilar das horas é mais trepidante que o devorar quilômetros. O olhar não se cansa jamais de um espetáculo esplendoroso. Mais conhecemos as coisas, mais elas se tornam belas. Encontrei dois cães, alimentei-os, um dia eles me salvaram. Falei aos cedros, pedi perdão aos salvelinos e pensei nos meus. Fui livre, pois, sem o outro, a liberdade não conhece limites. Contemplei o poema das montanhas e bebi chá enquanto o lago tintava cores. Matei o desejo do futuro. Respirei o suspiro da floresta e segui o arco da lua. Penei na neve e esqueci minha pena no alto das montanhas. Admirei a velhice das árvores, cativei mésanges (passarinho),  entendi que tudo que não faz reverência à beleza é vaidade. Dirigi o olhar para a outra margem. Conheci semanas de neve silenciosa. Amei ter calor em minha tebaida enquanto a tempestade descarregava seu rancor. Saudei o retorno do sol e dos patos selvagens. Tirei a carne de peixes fumegantes e senti a gordura dos ovos de salvelinos refrescando minha garganta. Uma mulher me disse adeus, mas as borboletas pousaram sobre mim. Vivi as mais belas horas de minha vida até a recepção de uma mensagem e as mais tristes após. Inundei a terra com minhas lágrimas. Perguntei-me se seria possível obter a nacionalidade russa, não pelo sangue, mas pelas lágrimas vertidas. Assoei sobre o musgo. Esvaziei litros de veneno a 40º e gostei de urinar em frente da Buriácia. Aprendi a sentar-me diante de uma janela. Fundi-me ao meu reino, sentindo o odor do líquen, comi alho selvagem e cruzei com ursos pelos caminhos. Minha barba cresceu, o tempo a desfiou. Deixei a cova das cidades e vivi seis meses na igreja das taigas. Seis meses como uma vida. É bom saber que, numa floresta do mundo, bem longe, há uma cabana onde qualquer coisa é possível, situada não muito distante da alegria de viver”. Tradução: JEM.

O leitor poderá assistir a um longo documentário abordando a temática de Dans les Forêts de Sibérie. Sylvain Tesson narra sua saga solitária e a sobrevivência nesses meses de isolamento. Vale a pena conferir.

Comments on the book “Dans les Forêts de Sibérie” (translated into English as “The Consolations of the Forest: Alone in a Cabin on the Siberian Taiga”), written by the French geographer and explorer Sylvain Tesson. He gives an account of his six-month exile to a wooden cabin on the banks of Lake Baikal in a sub-zero temperature. Alone with his books and two dogs, he reads, fishes, collects logs, drinks vodka, wanders around in communion with nature and writes the book, a thought-provoking study of vanity, ultimate solitude and the pleasures of being the master of his own time.