Considerações Relevantes
Na realidade, o único terreno de experiência
é o compositor no momento que está a compor,
e o único observador possível é esse mesmo compositor.
André Souris
Sempre que abordo um tema técnico de minha área, faço-o com prudência. Sei que para muitos leitores a abordagem pode se apresentar um pouco árida. Contudo, a não vinculação que sempre tive, desde o primeiro post de Março de 2007, com qualquer mídia de ampla divulgação escrita, falada ou de imagem, dá-me a possibilidade de “narrar” o meu cotidiano mental e transmiti-lo. Sendo a música uma das minhas prioridades temáticas, por vezes assunto mais teórico surge e, na medida do possível, busco “amenizá-lo” para os que me proporcionam, certamente, o estímulo maior para a continuação do pensamento-texto.
O post de 26 de Abril suscitou inúmeros posicionamentos a respeito do denominado sistema temperado de afinação. Séculos após sua sedimentação, há ainda o que se dizer a respeito. No texto em apreço concentrei-me nos instrumentos de teclado, mormente o piano, pois o substancioso artigo de Adolfo Salazar El Clave Temperado dava ensejo a essas observações.
O compositor e pensador francês François Servenière escreveu-me logo a seguir, ampliando o leque relativo à afinação. Expandiu observações, a considerar a orquestra igualmente e a magia da afinação diferenciada para os muitos instrumentos. Faz igualmente outros comentários sempre pertinentes e ricos. Transmito-os ao leitor com algumas semanas de atraso, devido a outros posts já agendados. Comenta:
“Precisamos voltar aos fundamentos da música e explicar os harmônicos de um denominado som fundamental, o que permite esclarecer o leigo sobre a questão…, assim como o que deriva dessa explicação. O temperamento é, como você bem demonstra, um progresso, mesmo se outros instrumentos permitam todas as variações de altura e também da massa do som orquestral. O que torna rica uma orquestra é justamente a não exatidão do temperamento entre os diferentes grupos de instrumentos, suas qualidades e defeitos inerentes a cada executante e instrumento, os harmônicos próprios para cada material, o que demonstra a análise de Jean-Baptiste Fourier (1768-1830). É impressionante e antiperfeccionista, mas é fato. Diga-se, o ouvido dos instrumentistas não é o mesmo. Há diferença de escuta entre o intérprete de teclado que ouve com os dois ouvidos; aquele de instrumentos de cordas que pode escutar com um ou dois, a depender da dimensão do instrumento e sua posição sobre seu corpo; o executante de instrumentos de sopro que também trabalha com a ressonância de seu crânio; o cantor que fará vir de sua garganta e de seu ventre e que até pode ficar, por vezes, incomodado pela ressonância em seus ouvidos. Apesar da evolução da afinação através de séculos e milênios (http://home.scarlet.be/johan.broekaert3/Tuning_French.html ), haveria particularidades de interpretação das percepções de altura dos sons muito diferenciadas, o que é lógico. Isso pode ser sentido nos estilos de música e nas regiões onde são praticados. Alfred Tomatis colocou em evidência a diferença da altura do som e a problemática dos instrumentos em regiões úmidas, secas, ao nível do mar ou na altitude. A depender dessas circunstâncias, o som produzido não é o mesmo em função das proporções do gás utilizado (azoto, oxigênio…).
Sob outro aspecto, a eletroacústica e suas ilimitadas variações autorizam-nos a pensar que a música e suas cores são infinitamente variadas, como o são as cores do arco-íris, com nuances sem conta entre todos os tons. Ao mesmo tempo, pelas cores do céu a humanidade também definiu, a partir de Pitágoras, as cores fundamentais (amarelo, vermelho, azul), cores secundárias misturadas às primeiras e, enfim, todas as variedades de cores decorrentes de todas as misturas seguintes. Na música dá-se o mesmo. As cores fundamentais são o temperamento e seus 7 graus principais, etc… Depois vêm os semitons, os sustenidos, os bemóis. Com todas as inversões potenciais decorrem a 7ª, a 9ª e a 11ª (Servenière se refere aos intervalos)… e, a partir daí, a serpente morde a cauda… Inútil irmos em direção ao microtonal, pois todas as cores potenciais estão presentes. Adicione a essa efervescência potencial as monstruosas variações naturais tonais dos instrumentos e das vozes e você terá o arco-íris de que falávamos acima. Não estaria evidente? Qual a razão de se querer recriar artificialmente, pela eletroacústica e o microtonal, uma situação que existe naturalmente pela acústica original e o temperamento, se este é utilizado com todas as suas potencialidades? O problema da música microtonal é que ela se diferencia pouco do arco-íris. Mostra-se tão vasta em cores, em nuances e em sons e tão pouco precisa em temperamento (em nossos idiomas essa palavra também designa caráter e personalidade), pois, paradoxalmente, ela não tem mais caráter, temperamento, tampouco personalidade. Eis a realidade acústica, semântica e simbólica. Quando você fala dos compositores eletroacústicos adeptos da última geração de instrumentos eletrônicos e vivendo de subvenções para as encomendas de obras que terão uma, quiçá duas apresentações, observei que eles funcionavam por vezes como fornecedores-testadores de softwares. Seria aproximadamente o caso do arquiteto que, ao utilizar um software de arquitetura, acabasse por trabalhar só com software. É o que se passou no IRCAM, como todos sabemos. Um pedreiro utiliza sua pá para fazer cimento. No dia em que essa pá passa a lhe interessar mais do que o muro a ser construído, seria melhor que ele mudasse de métier! Tive colegas que foram testadores de softwares e que, originalmente, foram músicos. Eis a armadilha da modernidade eletrônica. Esses passos sempre me foram estranhos. Escolhi os melhores softwares para que eles me ajudassem no plano prático, gráfico e sonoro. O importante é que a música estava dentro de mim. Como você, que escolhe para suas gravações os melhores instrumentos Steinway, que só existem a partir do aperfeiçoamento que vem do cravo, do pianoforte… Não sou criador de software, como você não é fabricante de piano. Em seu e-mail você escreve algo relevante em que eu também acredito. Na literatura, como na música, o alfabeto e a gramática não mudaram nada ou quase nada através dos séculos. Hoje, os ‘modernos contemporâneos’ gostariam de mudar a gramática e a ortografia, até o alfabeto. Imagine um pouco o ‘beco sem saída’ que representa esse projeto insano! Tentar a mudança das cores do planeta, seu alfabeto, suas línguas? Estamos realmente na Torre de Babel! Que pretensão desses falsos demiurgos? A pretensão maior vem quando eles explicam suas proezas intelectuais incríveis… na mais bela língua de Molière, de Shakespeare, de Goethe, de Camões, de Cervantes ou de Dante. Veja bem, eu acreditava que eles queriam mudar as cores do mundo, seu alfabeto, sua gramática, o próprio mundo. Pensei que gostariam de nos fazer passar da ‘obscuridade à luz’, nós, pobres ignorantes e cegos, como eles diziam. Ter-nos-iam mentido? Ideologia Mentirosa implica Duplicidade de Comportamento, implica Resultados Calamitosos. São fatos universais”. (tradução J.E.M.)
A periódica inserção de posições de François Servenière, que muito me honra com seus e-mails sempre provocadores, ajuda-nos a observar uma outra percepção, no caso do músico francês que está permanentemente a buscar na criação seu foco de vida.
My post of last April 26 was about the well-tempered tuning with focus on the keyboard. Now I transcribe François Servenière’s views on the tuning of various instruments, with worth reading comments about the electroacoustic music.