Música e Literatura em Período Efervescente

A interpretação mais perigosa
é certamente a ideia literária ou filosófica
penetrando os meios de expressão que lhe são exteriores,
na intenção absolutamente insuportável de comentá-los,
como se esses meios ou processos não bastassem a eles mesmos
em suas manifestações artísticas.
Georges Migot – compositor francês (1891-1976)

Os dois posts anteriores suscitaram mensagens eletrônicas e conversas informais com leitores atentos. Uma das perguntas que guardei referia-se à básica ausência do tema romantismo, em sua essencialidade, frise-se, nos debates acadêmicos, pois quando focalizado torna-se evidente o viés histórico, estético, social e ideológico. Atributos como emoção, sentimento, afeto e… coração passariam ao largo das discussões.

Mencionaria o livro referencial de Russel Jacoby (vide post “Os Últimos Intelectuais” – Realidades bem Próximas. 21/03/2009), em que o autor defende a ideia de que o desaparecimento da boêmia, que propiciava a reunião em torno de uma mesa descontraída de escritores, poetas, artistas e intelectuais, sustou a criatividade. Emergiam desses encontros os grandes conceitos que, sem intenções maiores, seriam aceitos, resultando normas e estéticas que passariam naturalmente, em princípio, a vigorar na sociedade. Acrescentaria que o espírito romântico na primeira metade do século XIX em França contempla essa visão mais “leve”, e o salão aristocrático, uma outra atitude frente à descontração do pensar, tem alguma semelhança, paradoxalmente, com a mesa de boêmia. Russell Jacoby enfaticamente acredita que o recolhimento do acadêmico universitário ao campus tenha sufocado o livre pensamento, pois o professor estaria preocupado com a sua sobrevivência e com a ascensão na carreira.

Outros leitores comentaram as citações de autores que escreveram sobre música, do século XIX a meados do século XX. Argumentaria que, apesar de farta literatura mais recente a respeito do período, onde desponta um excelente livro do pianista e musicólogo Charles Rosen (1927-2012) -  (“The Romantic Generation”, Harvard University Press e traduzido sob o título “Geração Romântica”, São Paulo,  Edusp, 2000), a apreensão de autores franceses que viveram o período ou posteriormente desvelaria o cerne da essência romântica através da tradição propiciada pela leitura ou pela oitiva. Como a focalização dos posts teve propósito específico, as posições desses críticos, musicólogos e musicógrafos franceses do passado encontram, pois, minha explicação devida para que a inserção se dê. Tenho imensa precaução quando me deparo com “análises” hodiernas sobre o período, utilizando seus autores ferramentas que prosperam durante certo período, para estiolarem-se tão logo outro ferramental surja. É fato da contemporaneidade, acalentado prioritariamente pela Academia.

Reflexão igualmente sensível sobre a eclosão desse “eu” interior está expressa pelo extraordinário musicólogo espanhol Adolfo Salazar (1890-1958) – (vide Resenhas e Comentários no menu).  Afirma sobre os primeiros decênios da “instauração” do romantismo: “A partir desse momento, o músico que não tenha um assunto pessoal que possa ser contado será um músico estéril.  A grandeza de sua obra estará relacionada com o modo segundo o qual passa a descrever a identidade de sua paixão com a paixão que move o Universo. L’Amor che muove il sole e l’altre stelle” (1941).

O posicionamento do compositor e pensador francês François Servenière, logo após o post de 21 de Junho último a respeito do romantismo a eclodir naquela primeira metade do século XIX em França, apenas ratifica todas as observações que foram assinaladas nos dois posts anteriores. Transmito-o aos leitores: “O romantismo não é uma época, mas um estado de espírito. O romantismo vivia no espírito dos humanos antes da fixação temporal no século XIX. Apenas deu-se nome a essa impregnação do espírito humano através dos séculos.  Continua a persistir sob quaisquer pressões e continuará no presente e no futuro. O romantismo está centrado sobre o extravasamento  dos sentimentos humanos, o “eu” permanente de cada ser confrontado com um outro. Não acredito que esse estado de espírito possa desaparecer no coração dos homens e das mulheres e, por extensão, nas obras criadas pelos humanos. Trata-se de uma permanência do espírito humano. Enquanto homem e mulher existirem, suas canções, suas grandes músicas, seus filmes, suas fotos, suas obras de arte e seus livros continuarão a falar do que é o epicentro da vida humana: a relação com o outro, os sentimentos, o amor. Não se trata de uma opinião, mas de um fato. Por que a música e a arte contemporânea são tão pouco populares? A razão é simples. Elas não falam mais do amor. Tentemos escrever uma canção de amor ou uma berceuse com o material da música contemporânea! Impossível. Seria como tentar construir uma casa de bonecas com cimento armado ou um vaso de porcelana com vigas metálicas. Resultado, essa arte não mais dialoga com o coração de homens e mulheres. O romantismo, como estado de espírito, nada tem de intelectual ou de científico como definição de uma época, pois não deveria ser datado, tampouco fixado a uma época determinada, pois fala ao coração dos homens e externa a emoção. Se as obras ditas contemporâneas têm sido tão secas em expressão, é porque os sentimentos foram proibidos de se manifestar. Há vida no deserto? Não! A vida existe em torno dos poços, de determinados pontos e cursos de água, em torno das ‘lágrimas da Terra’. Sem água não existe vida. Sem lágrimas, ausência de sentimentos e de relações afetivas. A Terra chora para nos alimentar. Quando o homem não mais versar lágrimas, estará distante da conformidade da Criação, do Universo. Nesse estado, os homens são inúteis para os outros. Vangloriam-se, sentindo-se superiores à natureza da qual eles saíram e que recusam. Tornam-se secos, estéreis e deixam de suprir os outros. Parece-me uma lógica fundamental” (tradução: JEM)

A mensagem de François Servenière, assim como o pensamento do filósofo Henry Beer mencionado no post de 21 de Maio, apenas consolidam o verso de Dante Alighieri citado por Adolfo Salazar. O espírito romântico que também poderia ser entendido como eterno: L’Amor che muove il sole e l’altre stelle, último verso do “Paradiso” (XXXIII, 145) da “Divina Commedia”.

The last two posts about Balzac’s “Illusions Perdues” and the French Romanticism in the first half of the 19th century had so much e-mail feedback from readers that I resume the subject once more, this time addressing some of the key issues raised by readers.


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