O Olhar de Lince e a Escrita Inteligente
Pouco nos importa o modo de expressão
que colocou em movimento a sensibilidade de um artista.
O que desejamos em troca de nossa “incuriosidade” respeitosa
sobre processo emotivo
é que ele não introduza maneiras estranhas
nos modos de expressão que lhe são peculiares.
Georges Migot
Inúmeros foram os posts nos quais inseri considerações do dileto amigo e ilustre compositor e pensador francês François Servenière. A temática gravita preferencialmente em torno da Música, mas tantas vezes, devido ao direcionamento dos posts, Servenière demonstra todo seu vastíssimo acervo cultural que o torna um pensador de estirpe.
Os dois posts a respeito de “Domador de Sonhos”, de Norberto de Moraes Alves, serviram para Servenière considerá-los sob várias facetas, a partir do “sonho” como desiderato almejado. Ao considerar frase de Norberto de que não deveríamos deixar que nossos sonhos se percam no mundo das ilusões, o mestre francês observa:
“Inicialmente, o título do livro de Norberto de Moraes Alves é magnífico, pois evoca o que todos nós somos e o percurso que empreendemos pela vida tão curta como ‘domadores de sonhos’. Deles partimos e tentamos domá-los, na medida de nossas possibilidades, trazendo-os à realidade, partindo do idealismo em direção ao realismo. Acredito que os sonhos mais loucos são realizáveis, pois, como diz meu sogro, com forte pronúncia regional, aposentado e carpinteiro de profissão, portanto muito próximo das coisas da vida, ‘quando se quer, faz-se’. Sim, a vontade é a verdadeira escavadeira da vida, que torna possível as pistas de decolagem de nossos sonhos mais absurdos. Você, eu, meu pai e meu sogro somos exemplos de ‘quando se quer, faz-se’ e estamos longe de ter esgotado essa exigência de sonhos a realizar. O que mais detesto nesse mundo é a procrastinação, tão presente nos políticos clientelistas de nossos países, principalmente nos dias de hoje, que não fazem outra coisa do que surfar sobre as mentiras, que não vivem que da ficção da vida a crédito, levando nossos países à ribanceira sob o pretexto de que a dívida será o único motor das economias modernas, quando na verdade é o principal câncer. Quanto à política e seu cinismo… eu ainda sonho combatê-los, talvez contra moinhos de vento…
A sinceridade raramente casa com a popularidade e com os negócios. Para a composição, a equação do establishment é aquela de juntar-se com as aspirações do público, ou seja, de partir dos anseios deste para a criação de uma obra. A equação do autor autêntico, do artista autêntico, é partir de sua interioridade para o nascimento de uma obra que possa evidentemente encontrar sucesso e se instalar no coração e no espírito das pessoas. A prova evidente do fato das maiores obras da humanidade tornarem-se atemporais reside não somente nesse falar direto aos corações e aos espíritos do público, não fazendo abstração da exigência. Ao acoplar-nos ao desejo do povo, tornamo-nos populistas. Ao aderirmos ao excesso do princípio da exigência, tornamo-nos, inversamente, ideólogos e incomunicáveis. A melhor fórmula já não teria sido aventada pela filosofia chinesa em sua imanente verdade ‘O espírito busca sempre caminho mais longo que o coração, contudo jamais ele irá tão longe’.
Sim, eu entendo, os apóstolos da arte contemporânea pretendem que falar com o coração é vulgar e faz parir romances vendidos nas estações ferroviárias, portanto pateticamente fracos, temática e semanticamente, segundo o princípio por eles entendido como universal ‘Não se faz arte com bons sentimentos’. Norberto de Moraes Alves pretende que ‘não deixemos nossos sonhos perderem-se no mundo das ilusões’.
Sob a égide dessa frase, e para resistir ao Maelström que representa a constatação de um de seus últimos posts, ‘a arte foi invadida pela massificação, que não subsiste que através do efêmero’; é necessário criar e escrever obra que se sustente. Essa perenidade não acontece evitando-se as tentações da sedução, escrevendo-se uma música antimusical ou antissedução, mas criando, ao contrário, uma música tão ou mais sedutora do que aquela que por vezes é encontrada no estilo efêmero e no turbilhão do alto consumo. Que fique claro, essa música sedutora e envolvente tem de possuir qualidades intrínsecas de elevada condição estrutural e semântica, repleta de prazeres e de surpresas e embasada na técnica segura. Todo o material da música atual está disponível, instrumentalmente ou sob o prisma composicional. Construir uma obra que seduza, feita sob a égide hedonista, mas a responder a critérios de qualidade extrema, tornou-se exigência para o futuro da arte renovada, em todos os seus domínios. Isso é possível, pois ‘há ainda muitas obras primas a serem escritas em dó maior’. Nossos antepassados em França, Debussy, Ravel e mais recentemente Messiaen e Dutilleux, fizeram essa façanha, como em todos os centros. Villa-Lobos, Guarnieri, Mignone e Oswald em seu país, Lopes-Graça em Portugal, assim como tantos nos países do Leste e nos Estados Unidos… Nada é impossível, tudo se pode, em todo lugar e sempre. Nada resiste ao trabalho e ao espírito.
É evidente o aspecto empresarial em torno das obras atuais mais ventiladas. Seria necessário o pouco provável retorno a um renascimento artístico, único capaz de suscitar novamente grandes obras e fazer emergir grandes artistas, certamente escondidos hoje no ‘anonimato’, como você bem lembra em seu post, artistas ligados ao preceito dos antigos atenienses – ‘verdadeiro, belo e justo’-, ontologicamente impregnados da síntese e da simplicidade.
Todos os sintomas sociais estão presentes sobre a Terra para mostrar não somente a necessidade do retorno às virtudes ‘clássicas’, mas também a vital impulsão pela busca da fé em outra coisa que não os ‘produtos de consumo correntes’ – mesmo os produtos artísticos tornaram-se de ‘consumo corrente’. Não mais satisfazem parcela da população, mas enriquecem muitos. Quanto ao espírito?
Falando dos artistas que são apresentados como modelos poderosos do show-business atual, consideremos que outros extraordinários artistas não são evidentemente promovidos a contento, ou mesmo quase nunca, apesar de não termos o recuo histórico para analisar. Leis do mercado. Contudo, mesmo nos Jogos Olímpicos aquele que sai primeiro nem sempre cruza a linha final. É a fábula do coelho e da tartaruga.
O círculo é vicioso, pois perdedores e vencedores, segundo os critérios das mídias à maneira do Maesltröm, não vivem todos num mesmo planeta. De um lado, o sucesso e meios financeiros imensos, do outro uma ausência de sucesso e meios financeiros limitados que impedem a aparição pública de obras mais exigentes e inovadoras.
Malgrado todas essas constatações, os artistas, sejam eles de geografias diferentes e de talentos e méritos vários, sejam quais forem suas linguagens, gêneros ou estilos, todos estão restritos ao idêntico paradigma, aquele do ‘hic et nunc’, que demonstraria que a posteridade tem raramente a possibilidade de reavaliar méritos e talentos ‘post-mortem’ do artista. Reconhece-se a força de uma obra também através da capacidade do artista se produzir, seja lá a qual preço. Nessas circunstâncias, não há consolação ou vitória exterior, mesmo se carreiras são feitas de repescagens permanentes e os destinos do tipo fênix, que renasce das cinzas.
É injusta, mas a lei da vida estabelece a seleção natural e esta é cega. Sem concessão. Sem ter plano preconcebido, preserva contudo os melhores, aqueles que transmitirão o bastão à geração seguinte. A natureza fixa regras aplicando-as de maneira darwinista implacável , tanto nas artes como em todas as áreas. ‘Struggle for life’ é o motor central e genérico de todas as existências sobre a Terra. A concorrência é rude, mas ela o é desde os espermatozoides. Nada mais fazemos do que continuar o processo.
Uma força imensa está presente em cada um de nós. Há aqueles que sabem aproveitá-la, dominá-la e fazer da vida algo excepcional, como existem os que passam ao largo, mesmo se considerarmos que a vida não presenteia no início as pessoas da mesma maneira. Sabe, contudo, distribuir cartas ao longo da existência, ao mérito, precisamente.
A vida não é justa ou injusta, ela é. Eis o que me levou à reflexão sobre seus dois textos em torno de ‘Domador de Sonhos’, de Norberto de Moraes Alves. Continuemos a ser indomáveis e obrigado por seus artigos sinceros e lúcidos, se bem que tristes, se considerarmos certos talentos”. (tradução: J.E.M.)
Once more I transcribe e-mail message received from the French composer François Servenière, now with his views on a subject addressed recently: our dreams and the chances of making them come true and the difficulties to determine why so many talented artists live in obscurity, while others, maybe not so qualified, succeed in capturing media attention.
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