Navegando Posts publicados em março, 2015

Projeto de Trinta Anos que Chega a Termo (1985-2015)

Há o real e há o irreal.
Além do real e além do irreal há o profundo.
Henry de Montherlant

O grão de areia não impede o fluxo das ondas.
Sylvain Tesson

Na transição das décadas de 1960-1970, após três anos voluntários longe do piano, retomei os estudos. Esse tempo foi determinante. Trabalhara anteriormente parte expressiva do repertório tradicional, mas a perspectiva das décadas futuras, a ter de repetir infinitamente as mesmas obras, causava-me até mal estar. Foi essa a causa essencial de minha interrupção. Ao retornar ao piano após o período “sabático”, que me levou à reflexão sobre o prosseguir, amadurecia a ideia de não apenas tocar aquilo de que gostava, mas preferencialmente também penetrar no repertório altamente meritório e pouco explorado. Estendia-se essa reflexão à criação competente da atualidade. Esse posicionamento não excluiu o repertório tradicional. Fez-me apenas um visitante homeopático. Paralelamente, interessaram-me as integrais, e compositores como Jean-Philippe Rameau, Claude Debussy e Moussorgsky povoaram meus almejos a visar à apresentação da opera omnia para piano. Todavia, o trabalho “arqueológico” chamou-me e, em 1978, iniciava a pesquisa moderna em torno do nosso compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931), que me daria dois gostos imensos: o redescobrir e verificar que, a partir dessa caminhada, quantidade expressiva de estudiosos surgiu. Abria-se, concomitantemente ao debruçamento perene sobre a criação oswaldiana,  um leque que me levaria à apresentação de inúmeras obras extraordinárias do passado europeu relegadas ao ocultamento. Neste espaço sempre insisti em pontos que entendo precisos: o público tem necessidade da comparação, sentindo-se inseguro frente ao desconhecido; empresários e sociedades de concerto apostam basicamente no repertório super ventilado, que traz audiência e, consequentemente, lucro; a crítica, sem formação específica, louva os que se rotularam perpetuadores do repertório consagrado e o intérprete, que preferencialmente se dedica ao repetitivo, tem lá suas razões para que o extraordinário acervo repertorial – jamais o desmereceria – siga seu curso.

Em 1985, quando de um caderno com oito composições em Homenagem a Henrique Oswald publicado pela USP, conversei com um dos compositores, o americano Stephen Hartke  (1952- ), que no futuro desenvolveria brilhante carreira nos Estados Unidos. Nascia “Template”, estruturado a partir do “Sherzo-Étude” (1902) de Oswald, a primeira obra de um projeto. Ricardo Tacuchian (1939- ), com o “Il Fait de Soleil”, seria o segundo a compor Estudo para uma sequência a abranger três décadas. Frise-se que esta obra de 1981 receberia o título de Estudo tardiamente.

Ao descrever o esboço do projeto ao compositor Gilberto Mendes, o respeitado músico incentivou-me, citando seu outro amigo, o pianista e compositor norte-americano Ivar Mikhashoff (1941-1993), que encomendou, entre 1983 e 1991, 127 Tangos para 127 compositores. Considerei em nossa conversa que o Estudo por possibilitar o multidirecionamento, pois um gênero abstrato, poderia motivar uma liberdade não encontrável no Tango, devida à tipificação deste. E haveria sempre a possibilidade da virtuosidade que caracteriza incontáveis Estudos através da História.

Sob outra égide, intrigava-me a técnica pianística do Estudo. Sendo ele, em princípio, o depositário de processos específicos que cada compositor imagina para o modelo, nada mais significativo do que apreender num espaço de trinta anos, fronteira do milênio, a panorâmica do Estudo. Aonde teriam chegado as formulações? Tradição e inovação poderiam caminhar juntas? Pouco a pouco, de 1985 a 2015, recebi Estudos das mais diversas procedências. Alguns compositores foram convidados, outros escreveram espontaneamente. Um aspecto é fulcral nesse universo acadêmico em que a imensa maioria dos projetos têm mais de uma assinatura e são financiados pelo Estado, por Fundações ou pela Universidade. Jamais solicitei apoio e jamais os compositores que abraçaram a causa falaram-me em remuneração. Sob outra égide, o imediatismo torna irreal um projeto tão longo. O carvalho só é exemplo mercê do tempo de crescer, o vinho, da paciente maturação.

Um outro aspecto essencial. Como estava a pensar na técnica pianística tradicional e renovada por tantos compositores de mérito, só não quis, voluntariamente, receber contribuições com o auxílio da eletrônica ou, então, destinadas ao piano preparado. A visão in loco de um piano no Reino Unido, basicamente destruído na noite anterior ao meu recital por um intérprete que “preparou” o instrumento de tal maneira que afetou cordas, martelos e até a tábua harmônica, deixou-me chocado. Felizmente, a sala de concertos tinha três pianos à disposição. Estaríamos, nestes casos, em outro compartimento, que não atenderia a desideratos precisos. Conheço inúmeras criações que recebem a colaboração da eletroacústica. Sem entrar no mérito, o piano acústico é suficientemente rico para abrigar, ainda, incontáveis contribuições, independentemente das tendências técnico-composicionais de seus autores.

Dos mais de oitenta Estudos recebidos, provenientes de vários países – Bélgica, Portugal, França, Estados Unidos, Alemanha, Bulgária, Japão – e inúmeros outros Estudos de nossos compositores, a maioria foi apresentada, mormente no Exterior. Considero que determinados Estudos da coletânea estarão futuramente no patamar mais elevado, junto daqueles considerados obras primas, pois não apenas apresentaram inovações técnico-pianísticas como articularam com maestria processos tradicionais acumulados desde o início do século XIX.

A edificação foi lenta, como também aquela voltada às gravações. Tendo perpassado, como a maioria dos pianistas, as excelsas coleções de Estudos de Chopin e Liszt, que têm quantidade enorme de gravações, muitas delas hors concours, importavam-me os Estudos compostos do final do século XIX às primeiras décadas do século XX. Como Alexandre Scriabine (1872-1915) e Claude Debussy (1962-1918) eram e são constantes temas de meus aprofundamentos, gravei na Bélgica a integral desses Estudos para o selo De Rode Pomp. Anos após, foram lançados no Brasil pelo selo Clássicos. Os derradeiros de Scriabine (Três Estudos op. 65) e os 12 de Debussy (1915) contêm ainda a mais precisa modernidade. Pierre Boulez, em entrevista ao jornal “Le Monde” (24/03/2000, p. 35), afirmaria que os Estudos de Debussy, juntamente com obras de Stravinsky (“Sagração da Primavera”), Schönberg (“Pierrot Lunaire”) e Bela Bartok (“Quarteto nº 4″), se fossem compostas hoje, seriam modernas, tão grande as inovações propostas. Em “Témoignages” nº 4 (Université Paris-Sorbonne, 2012), acrescentei “Vers la Flamme”, de Alexandre Scriabine.

Interessou-me gravar na Bélgica seleção dos Estudos que enriqueciam o projeto. Nascia o CD de Estudos Contemporâneos Belgas (selo De Rode Pomp), quando 10 compositores expressivos do país entenderam a dimensão do projeto. Fi-lo logo após em relação aos Estudos Brasileiros (selo da Academia Brasileira de Música), tendo como primeira obra do CD os magníficos “Estudos Transcendentais” (1931), de Francisco Mignone, que a meu ver são os pioneiros do gênero nesse aspecto da modernidade no Brasil. No final de Abril estarei a gravar na Bélgica CD com Estudos franceses, portugueses, da Bulgária e do Brasil. Teremos assim, nesses três CDs mencionados, uma panorâmica do gênero Estudo nessa transição tumultuada dos milênios. Digo panorâmica, pequena aliás, pois repertoriar o que foi criado nesse período pelo mundo seria impensável. Os cerca de oitenta Estudos atenderam a objetivos precisos e entendo que esses foram amplamente atingidos, graças à colaboração dos compositores que acreditaram no projeto.

À guisa de exemplificação, mencionaria compositores que, ao longo desses trinta anos, privilegiaram o projeto mais de uma vez. Da Bélgica, Raoul De Smet (1936-  ) entendeu que a proposta não se extinguiria com apenas um Estudo. Conversamos a cada ida minha ao país e dos seus polidirecionados 15 Estudos transcendentais, apresentei os seis primeiros em Gent e na Antuérpia. Boudewijn Buckinx (1945- ), numa visão totalmente oposta, criou sete instigantes e curtos Estudos pós-modernos, que fazem parte do CD já mencionado. Gilberto Mendes (1922- ), nosso compositor referencial, elaborou sete Estudos ao correr dos anos. Foram surgindo após entendimentos e, desses, dois são versões para piano solo de obras camerísticas.  O saudoso Almeida Prado (1943-2011) compôs os já célebres “Três Profecias em Forma de Estudo” (1988) e o Estudo in memoriam Alexandre Scriabine. As profecias tiveram gravação na Bélgica para o CD de Estudos brasileiros. Podem ser acessados através do YouTube. Paulo Costa Lima (1954- ), da Bahia, enriqueceu a coletânea com quatro Estudos significativos, sendo que três foram gravados em Sofia, na Bulgária, para CD lançado na Bahia. H.J. Koellreutter (1915-2005), Willy Corrêa de Oliveira (1938- ) e Celso Mojola (1960- ) comporiam três Estudos; Mário Ficarelli (1935-2014) e Ricardo Tacuchian (1939- ) criaram dois cada e as obras também integram o CD de Estudos brasileiros. De Tacuchian, a “Avenida Paulista” está no YouTube. Salientaria que Estudos de Gilberto Mendes (“Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos Mares do Sul”), Almeida Prado (“Três Profecias em forma de Estudo”), Willy Corrêa de Oliveira (“Etüde für klavier – Hanns Eiler in memoriam: für das Volk der DDR”), entre outros Estudos Contemporâneos, foram apresentados em recitais nas cidades de Potsdam e Berlin, cinco meses antes da queda do famigerado muro em 1989, pois criados para os eventos. Há uma curiosidade que transmito ao leitor. Quando recebi o programa do recital no Palácio Sanssouci, em Potsdam, indaguei ao Diretor do Hans-Otto-Theater da cidade o porquê de terem excluído “ao povo da DDR”, expresso por Corrêa de Oliveira. A resposta foi imediata e vinda de um cidadão que acumulava o exercício como deputado: “Há dois regimes diferentes, o deles e o nosso (referindo-se à Alemanha dividida). Contudo, só há um povo alemão, pois não existe um povo da República Democrática da Alemanha. Daí termos retirado a menção”.

Os Sete “Études Cosmiques + Automne Cosmique”, do françês François Servenière (1961- ), a “Missa sem Palavras (cinco Estudos Litúrgicos)”, do compositor português Eurico Carrapatoso (1962- ), o Estudo “Et Iterum Venturus”, do búlgaro Gheorghy Arnaoudov (1957- ), o consagrado “Étude V – Die Reihe Courante”, do também português Jorge Peixinho (1940-1995) e “Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos Mares do Sul” de Gilberto Mendes serão objeto de comentários no próximo blog, que abordará o recital na mesma Sociedade Brasileira de Eubiose, marcado para o dia 11 de Abril.

O projeto chega a termo com a gravação do CD mencionado acima, em fins de Abril, na Bélgica. Sinto-me feliz ao verificar que mais de 20 Estudos, dos mais de 80 recebidos, foram editados no Exterior. Creio que o tempo fará compreender que permanecerão.

Nestes oito anos de blogs ininterruptos tenho salientado de maneira repetitiva, mas a atender  convicções essencialmente pessoais, que a grande dádiva de minha trajetória musical foi ter encontrado sendas diferenciadas, não me esquecendo dos percursos. Estes sedimentaram projetos nunca abandonados e propiciaram-me algo inefável, estar sempre a redescobrir a joia rara repertorial ou a apresentar hic et nunc o que está a brotar dos cérebros de compositores bafejados pelas musas.

This post addresses my Etude project, a three decade-long work that began in 1985 with the North-American composer Stephen Hartken’s “Template” and ends in 2015. With more than 80 etudes received for the project, it gives a panoramic view of this musical genre at the turn of the 20th to 21st century. In a recital to be held on 11 April next in São Paulo, I will present etudes written by composers François Servenière, Eurico Carrapatoso, Gheorghy Arnaoudov, Jorge Peixinho and Gilberto Mendes.

 

 

 

 

 

 

 

Quando a amizade Transcende

Aquele é bom,
tudo reza bem dele.
Adágio popular açoriano (Faial)

Foram vários os e-mails. Geralmente breves, traduziam a apreensão da mensagem contida no blog anterior. Uma pergunta merece resposta: “Qual a razão de um distanciamento tão grande durante tanto tempo?” Respondo a Rafael da Silva. São tantas as circunstâncias que nos tornam reféns de determinados bloqueios!!! Ao acabar o curso de Direito, sabia que não iria advogar, pois não tinha vocação, apesar de ter captado tantos ensinamentos. Minha vida é a música, desde a tenra infância, e sabia que um difícil caminho iria trilhar. Família constituída, tive que, por longo período, dedicar-me simultaneamente à atividade outra de sustento, sem declinar de estudos pianísticos, pesquisas e apresentações públicas. Ao entrar na Universidade de São Paulo, a dedicação foi exclusiva à Música. Esse longo período “sedentário” – viagens ao Exterior eram de curta duração, mas sempre ligadas à atividade musical – distanciou-me de Amizades essenciais, sem que, porém, deixasse de nelas pensar com afeto.

Meu colega na Universidade de São Paulo, o ilustre professor Gildo Magalhães, escreveu algo fundamental. “Crônica tocante, suspeito que mais velhos, como eu, podem apreciá-la na sua inteira singeleza e sinceridade”. Realmente, foi da geração que já ultrapassou o cinquentenário que mensagens chegaram. Observação aguda.

Já mencionei que meu dileto amigo, há tempos partner de tantos blogs, o compositor e pensador francês François Servenière, tem olhar de lince. Ao ler na Normandia, na manhã do último sábado, o blog recém-publicado, transmitiu mensagem significativa. Em torno de Gabriel Meirelles de Miranda, Servenière ergue um hino ao entendimento. Ei-lo:

“Magnífica a frase ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Concordo inteiramente com as palavras de seu amigo Gabriel. Deus, na minha concepção, é a metáfora forjada pelos homens desde a antiguidade para expressar a riqueza interior que cada um de nós pode atingir através da corajem, da fé na existência, do trabalho, da empatia, do amor, da amizade…

Lendo o seu magnífico texto, dedicado ao seu amigo distante no tempo e no espaço, mas tão próximo no coração, pensei nos membros de minha família, ilustres farmacêuticos ou médicos, do campo ou de hospitais parisienses, que dividiam os mesmos valores e as mesmas práticas relacionadas à clientela de várias camadas sociais. O blog me fez lembrar de meu avô, Rémy, que, jovem farmacêutico, esteve no hospital de Verdun entre 1914 e 1918, em plena primeira Grande Guerra, tornando-se assistente de cirurgia e, após, cirurgião, por falta de pessoal e forçado pela lei, pois os estropiados tombavam aos milhares. Os mortos não eram o problema maior, centenas de milhares – milhões, no final da guerra -, mas os feridos que, ultrajadamente impossibilitados, tinham de ser ‘reabilitados’ para, talvez, retornar à frente do combate.

Ouvi de meu médico, Dr. Jean-Paul le Cam, especialista em medicina tropical, tendo exercido a função na África do Sul e na Inglaterra, que foi nesses lugares, verdadeiros açougues de guerra, que se forjou a técnica de cirurgia reparadora da qual o mundo de hoje é tributário. Quando li seu texto pensei nesses heróis da medicina. Meu pai foi um desses, pois doentes deslocavam-se 30km, na alta madrugada, dirigindo-se à sua farmácia, única onde podiam obter socorro ou medicamentos. Nada comparado aos pósteros que têm sobretudo vocação para cifras e  otimização do tempo de trabalho. Desgraçadamente, a Idade de Ouro desse espírito está bem longe da visão monetarista de hoje. E, garanto-lhe, ela existiu e teve ilustres representantes.

Chamou-me a atenção um outro trecho de seu texto. A sua formação em Direito na Faculdade de Pouso Alegre, que lembrou-me a que tive em Ciências Econômicas. Não seria esse outro olhar humanístico a permitir a reflexão sobre a sociedade e nossa arte, fruto das ciências humanas fundamentais que tivemos de abordar nessas Escolas? Para mim, foi um desvio – um pouco para provar que nessa área não encontraria meu caminho – antes de aprofundar-me no objeto vocacional, a música. Aliás, recebi todo o apoio familiar para a escolha definitiva. Certamente você o recebeu ambém.

Desde minha infância tive contato intenso com a prática médica. O amor e a empatia pela humanidade, encontráveis em tantos médicos abnegados, é um bálsamo e eu senti essa atmosfera nos anos que se estenderam pela juventude. Para mim, um engenheiro matemático que não fala ao coração dos homens é um mau profissional. Mesmo um mecânico que ama o ofício compreende melhor o motor do carro quando este começa a funcionar.

Admiro os que praticam farmácia e medicina, pois são eles engenheiros do corpo (e do espírito, tantas vezes) tendo a capacidade de captar pelo simples olhar e transmitir ao paciente os cuidados necessários a serem tomados bem antes da decisão de um receituário. Quando entro num consultório médico ou farmácia – sei que é sensação generalizada dos pacientes -, sinto-me já quase diagnosticado pela escuta e pela capacidade do médico vocacionado de sentir vibrações. Tudo lá está. A empatia é a vibração que se sente do outro, seu pulsar, sua energia e suas ondas. Sensações que podem ser negativas. Os músicos conhecem bem a simpatia, essa maravilha da ressonância que permite a todos os instrumentos ressoarem entre eles. A orquestra é um exemplo, tão dificilmente podendo ser reproduzida pela informática, quase impossível, artificialmente. Não somos diferentes dos instrumentos, mas somos sim, instrumentos de comunicação viva. Simpatia, empatia, quantas semelhanças! Consequência direta, o efeito placebo. O verdadeiro médico generalista é assim. Inocula confiança no corpo do paciente e este deve encontrar muitas vezes seus medicamentos ‘internos’ para salvar-se.

Artistas, filósofos e místicos são médicos da alma. Salvam os seres pela beleza e pela evocação do melhor da alma humana, materializada pela frase de seu amigo Gabriel Meirelles de Miranda: ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Tudo está dito. Tudo está no fundo de nosso coração, no nosso de profundis capaz de criar compartimentos encantadores, desses que corroboram o salvamento do espírito e da alma nos momentos mais sombrios: ‘a beleza salvará o mundo’ (Dostoievsky, certamente).

Quando li seu texto pensei em meus ascendentes, que disseminaram esse mesmo estado de espírito nas suas regiões de influência, tal qual seu amigo Gabriel. Leva-me a pensar na sábia frase do cantor Sting, que eu espero não trair nesta mensagem: ‘Para mudar o mundo, é necessário começar ao seu redor’. Essas personagens públicas de que falamos são exemplos. A nós retomarmos essa flama e a herança como nossos meios e ferramentas. Mas sempre com o mesmo espírito. Atitude absolutamente contrária à mentalidade que dissemina o ódio, a discórdia e a guerra.

A medicina também tem seus aspectos sombrios, desenvolve formas de pesquisa para necessidades militares com o desiderato precípuo de matar o mais rapidamente possível o maior número de indivíduos. Parte dessa sombra da humanidade devemos combater a partir de nosso espírito positivo em  nossas atividades musicais. O compositor armênio Aram Khatchaturian tem fabulosa e célebre citação, que considera como objetivo ‘uma música que seja bela em si, nem grande nem pequena, mas simplesmente bela, aberta, expansiva, que traduza a felicidade de viver. Há muita feiura e desesperança no mundo para que não as deixemos invadir nossa arte’.

Finalmente, não há acaso em nossos posicionamentos artísticos respectivos, desenvolvidos comumente em nossas linhas hebdomadárias. Fomos influenciados, numa vasta comparação, pelos mesmos tipos de pessoas, pelos mesmos professores, pelos mesmos artistas e os mesmos praticantes da medicina… Todos eles nos falaram simplesmente de uma empatia pela vida e pela humanidade. Generosidade, amor, amizade. Valores que prazerosamente compartilhamos.

O que de mais precioso do que essa prática que também comungamos, o elogio da lentidão!!! Gostaria de terminar meu e-mail semanal a comentar seus blogs por uma observação desses dois rostos na foto do post sobre seu grande amigo Gabriel e que exprimem, simplesmente, felicidade e bondade. Eis o que é ‘realizar-se na vida’ “. (tradução: J.E.M.)

The last post about friendship received much feedback. This week I mention some e-mails from readers on the subject and transcribe passages of a long e-mail from the French composer François Servenière about friendship and also about his family, reminding us that he was born into a family of altruistic doctors and pharmacists, so distant from the business-minded approach of today’s professionals.

 

 


Amizade que Desafiou Tempo e Distância

Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem.
Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor:
o que temos pelos outros.
De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.
E é por isso talvez que a grande amizade e o grande amor
são aqueles que dão sem pedir,
que fazem e não esperam ser feitos;
que são sempre voz ativa, não passiva.
Agostinho da Silva

Em Portugal, não por outro motivo, quando se quer grafar o nome do verdadeiro amigo, escreve-se com A maiúsculo. A dádiva da amizade sempre esteve além de uma percepção cotidiana. O Amigo é, existe, e tempo e distância não obliteram a intensidade do afeto.

No capítulo CCXIX de “Citadelle”, de Saint Exupéry, essa obra monumental que, no dizer de sua irmã, Simone de Saint-Exupéry, “aborda todos os problema da destinação humana e do condicionamento do homem”, o autor conta a história de dois amigos jardineiros que trabalhavam com espírito fraterno, encontravam-se sempre para o chá ao entardecer, trocavam confidências e ideias sobre plantas. Diálogo em poucas palavras. Quando passeavam juntos olhavam flores, árvores e o céu. Gestos com a cabeça eram o suficiente para a compreensão da fauna e da vida. Certo dia, um mercador contratou um deles para juntar-se à sua caravana por algumas semanas apenas. Mas vicissitudes mil levaram-no aos confins do mundo. Separados, não tiveram mais contato. Decênios se passaram e o jardineiro sedentário recebeu um dia carta de seu velho amigo. Emocionado, apreende o breve escrito: “Esta manhã podei minhas roseiras”. Três anos se passaram e o jardineiro a pensar na distância separando-o do amigo e em como responder à sua carta. Enfim, seu amo encontra um emissário que poderia ser portador da resposta, que atravessaria desertos e mares até seu amigo ausente. Dias a rabiscar e a rasurar a mensagem, que chega enfim a termo. Feliz, entrega ao amo. Dizia apenas: “Esta manhã, eu também podei minhas roseiras”.

Conheci Gabriel Meirelles de Miranda no final dos anos 1960. Médico e cirurgião em Pouso Alegre, Minas Gerais, Gabriel é uma das mais ilustres figuras da cidade. Foi aos recitais de piano que dei no Conservatório Estadual de Música de Pouso Alegre, a convite da professora Horma Valadares. No início dos anos 1970 prestei vestibular para curso na Faculdade de Direito do Sul de Minas e durante anos, até  a conclusão em 1975, frequentei semanalmente a cidade, pois as aulas eram oferecidas às sextas-feiras à tarde e à noite e aos sábados pela manhã. Ao todo, 18 aulas!!! Viajar de carro naquele período era uma aventura, pois a Fernão Dias oferecia apenas uma pista, curvas mal planejadas, acostamento por vezes inexistente, asfalto pleno de crateras. Como acréscimo, ausência do cinto de segurança que passaria a ser obrigatório a partir de 1994. Todos os anos alguns alunos perdiam a vida nessa perigosa viagem. Optei pelo Direito, pois créditos em música que obtivera em Paris não eram aceitos àquela altura nos recentes cursos universitários em São Paulo. Gostei do curso de Direito que me deu, primeiramente, condição de entrar na Universidade de São Paulo em 1982, lá permanecendo até 2008. Apesar de jamais ter exercido a profissão de advogado, em Pouso Alegre adquiri bases jurídicas que me foram úteis, e dezenas e dezenas de pareceres emiti na USP quando, a convite de vários reitores, integrei algumas das mais importantes comissões da Universidade.

Essa premissa pessoal faz-se necessária. Naqueles anos em que cursei a Faculdade, quase todas as sextas-feiras, após as aulas, por volta das 23h45min, o Dr. Gabriel, como sempre foi chamado em Pouso Alegre, estava a me esperar para irmos comer uma pizza. Tranquilo a fumar seu cigarrinho, andar lento, fala serena, Gabriel ensinou-me, sem o saber, a entender a vida “pausadamente”. Mostrava-me, ao narrar episódios de sua vida desde a infância, uma outra maneira de compreender o outro. Jamais o vi intranquilo. Quantas não foram as vezes em que, na pizzaria, ficávamos silenciosos. Estar juntos era por si só motivo de alegria interior. Nossas confidências tinham o dom da viagem mental. Imaginávamos um mundo ideal.

Descende de notáveis médicos que permaneceram na história mineira: seu avô, Olinto Deodato dos Reis Meirelles, foi um dos fundadores da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte e prefeito da capital mineira de 1910 a 1914; seu pai, médico ilustre também, Custódio Ribeiro de Miranda, responsável pela construção do hospital Samuel Libânio em Pouso Alegre e prefeito da cidade de 1951 a 1956.

Na cidade mineira, Gabriel Meirelles de Miranda teve toda uma vida dedicada à medicina. Inicialmente, trabalhou com seu pai no hospital Samuel Libânio, onde não apenas exerceu a atividade, como foi diretor durante cinco anos.  Especialista em cirurgia geral, clínica geral, pediatria e obstetrícia, seu diagnóstico preciso granjeou-lhe reputação inconteste. Na Faculdade de Medicina da Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí assumiu a cadeira de cirurgia geral. Sua dedicação à medicina fê-lo continuar até fins de 2010 o ensino na cadeira de professor de Ginecologia!!!

Estou a me lembrar de que Gabriel atendia pacientes no consultório montado em sua casa. Causava-me admiração a diversidade daqueles que o procuravam, dos vários níveis sociais. Gabriel dispensava a mesma atenção, não se importando com patamares sociais. E sempre com a mesma serenidade. Ele, como bom samaritano, a atender tantos doentes sem buscar a menor remuneração. Sim, ela existia na única forma de gratidão dessa gente simples: um frango, ovos, legumes, frutas, uma lágrima. Confessava-me que essas oferendas simbólicas representavam o que de mais precioso o sofrido paciente podia oferecer. Eu, já naqueles anos de reestruturação, contava-lhe meu desiderato voltado à divulgação de obras excelsas, mas escondidas. Dizia-lhe, nos meus trinta e poucos anos, que tinha consciência de um tributo a pagar, mas correria o risco. E corri sem me arrepender, apesar do preço saldado. Gabriel encorajava-me.

Convivi com sua esposa, a saudosa Aparecida, e com seus cinco filhos adoráveis. Regina acompanhou-me algumas vezes e a amizade familiar frutificaria. Aos sábados, antes de regressar a São Paulo, passava por sua casa para me despedir e não foram poucas as oportunidades em que almocei junto aos seus. Sob outro aspecto, quando, por motivos vários – a ausência de um professor ou a infausta morte de um colega na fatídica estrada – não havia aula, ia à sua morada e estudava no piano da edícula.

Findo o curso de Direito, retornaria à Pouso Alegre para o casamento de sua encantadora filha, Maria Leonor, com o jovem médico José Carlos, hoje professor e diretor do Instituto de Patologia José Carlos Corrêa. Umas poucas vezes mais encontrei-me com Gabriel, quando vinha a São Paulo visitar um de seus filhos. Almoçávamos e trocávamos confidências, como sempre. Passaram-se decênios e um silêncio se fez. Não é raro o fato entre grandes Amigos. Distância, atividades tantas não provocaram névoas. Restaria para sempre o afeto da amizade inquebrantável.

O acaso tornou possível o acesso de seu telefone em Pouso Alegre através de bom amigo que mora em Jaguariúna, Mário Sérgio Mariottoni, pois seu irmão é médico na cidade mineira. Após uma distância temporal incomensurável, cerca de 40 anos, telefonei-lhe. Imediatamente Gabriel, com firmeza, disse meu nome. Dupla emoção. Tanto para dizer… vontade mútua de um encontro. Deu-se. Seus netos marcaram jantar em São Paulo, na morada de um deles. Encontrei Gabriel nos seus 92 de idade. Nossos olhares traduziram no silêncio bem mais do que as palavras. Muita comoção. Noite mágica a não ser esquecida. Uma certeza ficou desse “primeiro” encontro. Naquela noite, juntos, nós dois podamos nossas roseiras.

P.S. Ao acessar dois links o leitor poderá conhecer essa figura extraordinária, simplesmente Gabriel, como sempre quis ser chamado.

Dr.Gabriel – “Nós, homens, verdadeiros deuses”

TVFuvs: Homenagem ao Dr. Gabriel Meirelles de Miranda

On the priceless gem of friendship and my bond with Gabriel Meirelles de Miranda, a doctor I knew in the city of Pouso Alegre in the sixties, a deep relationship that time and distance did nothing to diminish.