Recepção Efusiva

Le tonnerre et la pluie ont fait un tel ravage
Qu’il reste en mon jardin bien peu de fruits vermeils.
Charles Baudelaire
(Les Fleurs du mal)

Dos muitos livros de Sylvain Tesson resenhados ou comentados neste espaço talvez tenha sido “S’Abandonner à Vivre” o que mais veementemente chamou a atenção dos leitores. Se as aventuras pelo planeta empreendidas por Tesson causam entusiasmo, mormente pela qualidade da observação de todos os pontos geográficos percorridos e da experiência como eremita em cabana no lago Baikal, em plena Sibéria hibernal, durante longos meses, o conto tessoniano visita com insistência esses lugares através dos personagens que pululam nos vários episódios. São eles artistas, aventureiros, amantes, guerreiros, desiludidos e mais. Seria possível imaginar o narrador heterodiegético por vezes presente. O humor de seus relatos, pela diversidade das manifestações, motiva grande interesse, seja ele fatalista, irônico, desesperançado, divertido ou sem anima voluntária.

Os comentários vieram de Portugal, França e de vários Estados brasileiros. Um deles chegou-me como pergunta, pois Alberto Fonseca gostaria de ter maiores pormenores sobre o conto “L’ennui”, que apresenta a história de Tatiana. Nessa história ficcional, Tatiana vive em pequena cidade siberiana de trabalhadores, com temperaturas que chegam à – 40ºc durante o inverno. Universitária, com bom conhecimento da língua francesa, não encontra outro meio de vida a não ser se prostituir e recitar versos de Baudelaire. Ao conhecer um francês, parte para Saint Rémy de Provence. A trama do conto mostra as aceitações e a acomodação, até que o enfado ganha força. A epígrafe escolhida por Tesson apreende a essência essencial do conto: “No tédio, o tempo se desprende da existência e se nos apresenta exterior” (Cioran – “Entretiens”). Outro questionamento, de Ana Maria Sampaio Martins, tem relação à difusão dos livros de Sylvain Tesson no Brasil. Creio que sob encomenda, pelas vias disponíveis.

François Servenière, compositor e pensador francês, captou elementos que merecem ser estendidos aos leitores. Inclusive a considerar a dedicatória com que o autor me honrou: “pour José que sait que la musique est un moyen de s’abandonner à vivre”.

“Hoje você nos fala novamente de Sylvain Tesson, que nós dois tanto admiramos, e de seu fabuloso livro. Que magnífica dedicatória feita por ele a respeito da música. O que mais dizer! Sim, nós nos abandonamos ao mundo fazendo, compondo, cultivando a música, interpretando-a, abrindo nosso coração sobre nossos instrumentos como se faz naturalmente no ato da improvisação. Logicamente, abandonamo-nos então ao ritmo e às pulsações profundas do mundo, pois, paradoxalmente, distanciamo-nos de nossas sociedades trepidantes. ‘Que coisa estranha é a solidão’, diz Krishnamurti, e nos faz lembrar de que as mais importantes obras nascem nessa situação de isolamento total. Não nos esqueçamos dos ’40 dias no deserto’. Deserto social na vida do impetrante, mas dom maior para o mundo. O fenômeno se repete entre os criadores: isolamento total gerador das maiores obras da humanidade. Não há escolha para aquele que apreende as pulsações do mundo e que ouve em seu de profundis o eco do Universo.

Sobre o livro, paradoxalmente, ainda que viajante e artista amem a vida e a natureza acima de tudo, o ceticismo, o pessimismo, quiçá nostalgia de um mundo ideal estão sempre a visitar esses cérebros espirituais, pois o ideal é inatingível nessas sociedades agitadas e inseguras, completamente voltadas ao materialismo, ao oposto dessa busca do absoluto, quando o material se torna apenas relativo, superficial e passageiro. Necessário sim, mas jamais a trazer satisfação plena.

Eu também constatei essa fatalidade de viver entre os Russos, o ‘pofigismo’ de que nos fala Tesson, uma filosofia de vida impregnada de um entorno imperioso e cataléptico. Como sobreviver na Rússia, na Sibéria, em pleno inverno? Lá, a filosofia de vida encontra sua total realização, incompreensível para os povos ocidentais saciados pela natureza generosa. Senti a sensação desse estado espiritual que lhes é característico quando a orquestra de Voronej gravou minha “Pavane pour un Songe”. Com ênfase! Nenhuma orquestra francesa teria tocado dessa maneira tão expressiva. Não se perturba a aristocracia do Conservatório de Paris… Os músicos franceses são muito protegidos… Tocam bem, limpamente, mas sem alma, salvo exceções. Trata-se de seu métier, desempenham-no bem, mas é tudo. A música não parece ser vital para eles. São tantas as vantagens trabalhistas! Seria necessário entender que no leste europeu há dificuldades enormes, mas a música chora, vem diretamente do coração, da alma, não há reserva quanto à expressão, pois vem das profundezas do povo. Aqui, na França, a música é burguesa e aristocrática, característica de uma elite social.

Sim, há a música neste planeta absurdo, incompreensível para a grande maioria dos artistas. Nenhuma novidade sob o manto do sol, a alma foi verdadeiramente deixada ao abandono. Não obstante o fato, somente as artes podem ajudar nesse caminho permanente para Damasco, como reza o preceito. Reli ontem, na sala de espera de um médico, um número especial da expansão do caos econômico que se agiganta, mercê das dívidas acumuladas por toda parte, por todos os países, por todos os bancos… Sim, a arte e a solidão dos grandes espaços apresentam-se como refúgios nestes tempos turbulentos!”. (tradução JEM).

A divagação de Servenière a partir de uma simples dedicatória de Sylvain Tesson, que tem tudo a ver com o s’abandonner à vivre – a música e as artes -, serviu pois ao compositor para expandir seu pensamento em direção à possibilidade de serem as artes, e a música em particular, atenuantes ao que está por vir.

This week’s post addresses e-mail messages received from readers regarding Sylvain Tesson’s book “S’Abandonner à Vivre”. Taking the dedication in my copy of the book as starting point, the French composer François Servenière establishes an interesting relationship between shutting oneself off from the world – in his words, listening to the echoes from the universe – and the great achievements of the human mind.