Sylvain Tesson e o Conto a Possibilitar Deciframentos

Que coisa estranha é a solidão,
e como se mostra desesperante.
Krishnamurti
(“Comentários sobre a vida”)
Epígrafe para o conto “L’ermite”

Foram muitos os livros do aventureiro, andarilho e contista Sylvain Tesson que resenhei ou comentei ao longo. Suas jornadas programadas têm sempre interesse. Não se trata de apenas percorrer a geografia do planeta, mas planificar a viagem, tentar explicações dos mais variados percursos, mormente aqueles envolvendo a Rússia, a imensa Sibéria e a Ásia Central.

Sylvain Tesson a narrar suas caminhadas é um autor. Ao dedicar-se ao conto, tantas vezes há a invasão de um riquíssimo acúmulo de experiências, e mal sabemos se o autor lida com personagens reais ou imaginários, se o narrador do conto é ele mesmo em episódio vivido, mas não exposto por motivos os mais variados, ou se é a fantasia que aflora. Poderia parecer paradoxal essa bivalência, mas a incógnita da verdade é sedutora.

Em “S’Abandonner à Vivre” (Paris, Galimmard, 2014), Sylvain Tesson dá sequência a essa outra vertente de seu instigante pensar, o conto (vide blog “Une vie à coucher dehors”, 22/03/2014). O autor recentemente teria respondido a uma pergunta relacionada ao porquê de não ter escrito um romance. Tesson entende que conservar longamente um tema imaginário não faz parte de seus planos e que o conto, pela brevidade, melhor se adequa à sua realidade.

A diversidade dos temas e das propostas, mesmo considerando-se determinadas constantes já observadas em “Une vie à coucher dehors”, como o fino ceticismo, uma natural tendência à fatalidade, à desesperança e ao humor por vezes sombrio, traz real interesse à obra. Poder-se-ia dizer que Sylvain Tesson, como arguto observador, tem a somar o talento na criação de metáforas. Uma “usina” de ideias que borbulham sem cessar nesse caldeirão incandescido.  Nos contos, seus personagens – ou ele próprio, numa espécie de alter ego - lutam contra as circunstâncias da existência em que a sobrevivência física ou espiritual poderia estar em jogo. Haveria uma permanente corda esticada, que se pode romper e levar ao infortúnio.

Já o primeiro conto, “Les amants”, revela-nos dois personagens aparentemente inseparáveis diante daqueles que os conheciam. Tesson constrói as duas figuras com seus antagonismos e identidades. Um trágico acidente de moto leva o amante à morte e sua parceira a um coma que, na opinião dos médicos, poderia durar quarenta anos. O acidente penetra no conto nas últimas linhas, sucinto. A velocidade da moto, o choque com um caminhão, a brevidade do relato se coadunando com a vida intensa, “seu amor procedia do fascínio pelo abismo”, escreve o autor. Nenhuma maior informação. O abissal como fim abrupto, inexorável.

Bem atuais os contos “L’exil” e “Le barrage”. Tesson com habilidade constrói o drama dos exilados do norte da África para a Europa, os intermediários mercantilistas que se encarregam desse êxodo, imperioso por falta de recursos mínimos das populações paupérrimas para sobreviver com dignidade. “Le barrage” gira em torno de vasta região inundada na região de Henan (República Popular da China) para a construção de usina. É possível que todo o enredo tenha sido estabelecido para fixar mensagem do pensador Lao-Tsé (571-531 a.C.), pois o imenso lago fez desaparecer sua provável cidade natal. A uma pergunta de um de seus alunos – “Mestre, por que não abrimos um pequeno canal para irrigar todas as plantas de uma só vez?” -, Lao-Tsé responde: “Meu jovem, jamais! Saberíamos quais as consequências?”. Não estaria nessa frase parte do pensar de Tesson?

Em “L’ennuie”, a nostalgia  o desencanto de Tatiana, prostituta que, de seu berço siberiano, vê-se em Paris sob a proteção de um milionário que mantém negócios estranhos.

“L’insomnie” tem interesse especial. Como em flashes, as ideias que surgem na mente do personagem são muito bem elaboradas pelo autor, pois não há angústia ou ansiedade maior, simplesmente a falta do sono. Sob outro contexto, mas a obedecer a sucessão de imagens, situa-se “La promenade”, e Jack, que alugara apartamento em Paris, sai às ruas em busca de ‘histórias” que pudessem sedimentar um texto seu. Tesson cita frase de Nietzsche: “A alegria de compreender o que o outro quer dizer”. Nesses dois contos, as imagens velozes de uma vigília involuntária ou aquelas mais “calmas” e reais, respectivamente, formam um elo de forte interesse.

Em “L’ermite” há muito do próprio escritor, pois, durante travessia, o diálogo com o capitão de um barco na região ártica da Rússia girará em torno de um eremita ao ser vislumbrada sua cabana abandonada. Tesson insere frase instigante: “Esse país, quase a se afundar, prossegue através dos séculos sua trajetória inalterável. Titubeia, mas não tomba”. O conto retrataria talvez parte sensível do autor quando se sua hibernação durante o inverno em cabana às margens do lago Baikal.

Em “Le Train”, Sylvain Tesson retoma tema que lhe é caro, o “pofigisme”, palavra russa sem tradução na língua francesa, tampouco em nossa língua. Ao escrever “Dans les forêts de Sibérie” (vide post, 01/03/2014), o autor já se debruçara sobre o significado essencial da palavra (p.257), onde se lê: “Os russos só pedem que os deixem esvaziar uma garrafa, pois amanhã será pior do que hoje”. No conto em apreço, Tesson explica: “Essa palavra russa designa uma atitude face ao absurdo do mundo e à imprevisibilidade dos fatos. O ‘pofiguismo’ é uma resignação alegre, desesperada frente ao que há por vir. Os russos acolhem as oscilações do destino sem buscar entravar o impulso. Eles s’abandonnent à vivre“.

Os dezenove contos de “S’abandonner à vivre” são fontes ricas em aforismos e metáforas, características que dimensionam o grande talento de Tesson. O leitor encontrará, como em “Une vie à coucher dehors”, esse direcionamento que lhe é, sim, peculiar, o de entender a vida nessa acepção plena do “pofiguismo”. A ambiguidade, que nos leva a considerar contos “reais” e imaginários, propicia ao leitor que frequenta suas obras esse decifrar as duas situações. Na dedicatória que o autor escreveu em meu exemplar, aos 12 de Janeiro de 2014, lê-se que a música “é um meio de ‘s’abandonner à vivre”. Tem ele razão.

No menu do blog (Livros - Resenhas e Comentários), o leitor encontrará a lista completa dos livros de Sylvain Tesson que foram temas para posts desde 28 de Maio de 2011.

I have already  reviewed many non-fiction books by the French explorer and writer Sylvain  Tesson, describing his adventures in remote areas of the globe. This time I’ve read “S’Abandonner à Vivre”, a book of short stories. His characters ─ or  maybe Tesson’s alter ego sometimes , involved in a number of professions  and living in different places, always walk on very thin ice,  fighting  against circumstances in which survival – physical or spiritual – is  at risk. Though  fictional, it’s possible to say that Tesson brings to his writings many of the  memories and experiences of his time spent in the  wilderness.