Mário Vieira de Carvalho em Livro Instigante
A música é poesia incorpórea.
Guerra Junqueiro
A relação entre a vida e a morte
é a mesma que existe entre o silêncio e a música
- o silêncio precede a música e sucede-lhe.
Daniel Baremboin
Ensaios do notável musicólogo português Mário Vieira de Carvalho, Professor Catedrático de Sociologia da Música na Universidade Nova de Lisboa, estão reunidos em “Escutar a Literatura – Universos Sonoros da Escrita” (Lisboa, Colibri – C.E.S.E.M., Outubro de 2014). Os textos, que se prolongam de 1996 e 2012, são resultado de apresentações realizadas em congressos e colóquios e publicados posteriormente em revistas acadêmicas. Tem-se, pois, a abrangência do pensamento de Mário Vieira de Carvalho em tema instigante, a cultura da escuta na literatura portuguesa.
Se a poesia sempre esteve através dos tempos intimamente ligada às sonoridades, e a história tem infindável lista de lieds magistrais, em que compositores apreenderam a essência essencial do verso, mormente na Alemanha e em França, se libretos de óperas, adaptados de textos em prosa, resultaram em óperas europeias, tantas delas extraordinárias, empreender o caminho secreto existente no romance ou na narrativa na tentativa de encontrar o apelo sonoro “inaudível” assevera-se da maior complexidade.
Vieira de Carvalho, nessa busca identificadora som-ruído/texto, perpassa panorâmica da poesia, da modinha e da ópera portuguesas, encontrando subsídios determinantes que nos remetem à própria índole do povo português, afeita às sonoridades, ao canto. Pertinente a menção a Almeida Garrett, que traduz essa tradição: “Bem sabes, amigo leitor, que nós não fazemos revoluções, contra revoluções ou coisa que o valha, sem hino. Somos uma nação harmónica, essencialmente harmónica, harmónica a ponto que, tanto mais se acha tudo em desarmonia e desacordo entre nós, tanto mais precisamos de nos mover ao som e compasso de patrióticas cadências”.
Diria que a seleção de textos segue um critério didático. Apesar do distanciamento temporal dos ensaios, Vieira de Carvalho expõe nas duas primeiras partes uma visão basicamente doutrinária e que leva à compreensão plena dos quatro segmentos seguintes, que penetram profundamente no universo sonoro de pelo menos duas obras essenciais da literatura portuguesa: “Viagens na Minha Terra”, de Almeida Garrett (em Outubro um blog será dedicado ao romance e à coletânea homônima do grande compositor português Fernando Lopes-Graça) e “O Crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós, não descartando os outros dois, enfatizando “Os Teclados”, de Teolinda Gersão, e “A Noite das Mulheres Cantoras”, de Lídia Jorge, esses com títulos nítidos.
A leitura de uma obra, tendo-se objetivo preciso e realizada com a mais absoluta experiência e competência pelo autor, resulta numa dissecação subjetiva de materiais sonoros inerentes aos textos estudados, a estabelecer patamares de qualificação e seleção. O leitor habitual não faz esse trajeto e o que lhe interessa é a trama do romance ou narrativa. Culturalmente assim tem sido. Essa visão perscrutadora de Vieira de Carvalho provoca o desvelamento enriquecido de obra percorrida pelo leitor. Penetra-se em outro compartimento, descobrem-se intenções aparentemente submersas de um escritor, pois inconscientemente até este poderia estar alheio ao direcionamento da escuta. Ficaria claro, nos autores estudados por Vieira de Carvalho, um conhecimento musical, mesmo que superficial, que os faz com muita frequência sugerirem sons ou ruídos ou o silêncio. Há que se entender que narrativas ou romances dificilmente prescindem de uma quase imperiosa presença dessas tipificações.
O espaço a que me proponho para os blogs limita-me a abrangência. Mas, para o leitor, exemplos extraídos dos romances de Almeida Garrett e Eça de Queirós podem dar a dimensão da pesquisa realizada pelo autor de “Escutar a Literatura”.
No ensaio “A Cultura da Escuta na Novelística de Garrett: Viagens na Minha Terra“, Vieira de Carvalho apreende subjetivismos da escuta, como os determinados pelo arguto ouvir da avó cega da personagem Joaninha ao distinguir passadas individuais. Escreve: “…que pelo facto de ter cegado, desenvolve uma hipersensibilidade auditiva que lhe permite ‘ver’ aquilo que transcende o alcance do olhar da neta”, e retoma a narrativa de Almeida Garrett “Mas ouço eu… Espera, é Frei Diniz: conheço-lhe os passos”. Vieira de Carvalho em seu ensaio capta todas as possibilidades automáticas (passos) e outras mais que apreendem a presença do audível, seja ele de qual natureza for. A voz de Frei Diniz, que o estudioso menciona em sua multiplicidade de entonações, é analisada a partir das várias interpretações que Garrett dá à fala do frade: “voz fraca e tênue, mas vibrante e solene, do íntimo do peito”, “falas sepulcrais”. Entende Vieira de Carvalho ser esse personagem sinistro – também em sua dimensão “sonora” -, a figura mais escutada de “Viagens…”, pois dele “escuta-se o terror da Inquisição”. Em oposição absoluta, a voz de Joaninha, personagem da trama amorosa com Carlos, traduz segundo Garrett, “doçura”, “pureza” e “que retinem dentro da alma e que não esquecem nunca mais”. Vieira de Carvalho, ao se debruçar sobre a interpretação que Garrett oferece às tantas vozes desses dois personagens e outras mais de outros protagonistas do romance, apreende o que considera “atributos de caráter”, a evidenciar a maestria do autor do romantismo português. Tantas outras manifestações sonoras são evocadas por Vieira de Carvalho, que observa: “E, na cultura da escuta que desse modo revela, a sua própria experiência de escutar as aves, o vento, a natureza, o meio envolvente, funde-se com a sua experiência de expectador de ópera e de teatro”. Ficaria evidente a identidade de Almeida Garrett com as artes, a música e o humanismo, qualidades que são transparentes em “Viagens na Minha Terra”.
Ao escrever “O Som e a Escuta na Emergência do Estilo Queirosiano: O Crime do Padre Amaro“, revela-nos o autor compartimentos próximos ao ensaio anterior, mas em um deles Vieira de Carvalho demonstra “virtuosidade” na apreciação: o silêncio. Quantos não foram os estudos sobre o tema silêncio escritos por autores de áreas tão diversas? Importa considerar no caso a riqueza do pormenor, e o silêncio adquire fundamento essencial no romance de Eça de Queirós. Após reler a edição crítica de duas versões da obra (1876 e 1880), Vieira de Carvalho faz comparações pertinentes, a evidenciar diferenças por vezes sensíveis entre as duas. Num segmento do ensaio “Escutar o silêncio” o autor se impressiona pela quantidade de citações desse silêncio dimensionado, mercê da pluralidade. Busca reuni-los para que não percamos a sua adequação às situações, díspares por vezes. Eis algumas das incursões no romance de Eça de Queirós, pois há os silêncios adjetivados: silêncio “comovido”, o “grande silêncio” , silêncio “chocado”, “silenciozinho desconsolado”, silêncio “repreensivo”, silêncio “intratável”, silêncio “sombrio acabrunhado para o fundo da poltrona”, silêncio “rancoroso”. Vieira de Carvalho enumera aqueles silêncios não adjetivados, sugeridos, e os silêncios partilhados, como o “chá silencioso”. Tantos outros exemplos de silêncio pululam no romance. Cataloga-os: silêncio ambiente, “silêncio como sintoma contextual que interfere com os estados psicológicos das personagens”. Não se atém apenas a esse tópico essencial no romance, pois o ilustre professor, nesse exercício da escuta, penetra em outros universos sonoros de “O Crime do Padre Amaro”, tratados com a mesma profundidade.
Essa breve resenha visa fundamentalmente a apresentar a riqueza que se pode extrair de uma leitura, desde que haja um interesse precípuo. A leitura de um romance pode ser pormenorizada, a depender do autor e da temática exposta, em áreas de interesse: mobiliário, vestuário, gastronomia, fauna e flora, cultura da leitura dos personagens e tantas mais áreas. Exemplos existem, e nas Academias espalhadas pelo mundo teses têm focalizado esse caminho desvelador. Em “Escutar a Literatura”, Mário Vieira de Carvalho abre um campo extraordinário para infindáveis “outras leituras”, que possibilitam tantas outras viagens perscrutadoras. Um livro exemplar.
The book “Escutar a Literatura” (Listening to Literature), written by the distinguished Portuguese musicologist Mário Vieira de Carvalho, addresses a niche still little explored by academic researchers and readers: the world of sounds in literature. With focus on Portuguese novels, he offers a fresh perspective on a subject generally ignored by readers, opening the way to a wide range of “new readings” of a literary work.
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