O que se ouve pelas ruas

Quando alguém constrói um navio,
não se preocupa com os rebites, nem com os mastros,
tampouco com as pranchas da ponte.
Trabalho findo, enclausura dez mil escravos
e alguns capatazes munidos de chicotes.
E a glória do navio se expande.
Jamais conheci um escravo que se vangloriasse de ter vencido o mar.
Saint-Exupéry
(Citadelle, cap. LXXVIII)

Um dos traços marcantes na literatura de Fiodor Dostoïevsky (1821-1881) é sua capacidade de observação e a apreensão de pormenores que poderiam parecer irrisórios, atribuindo-lhes importância. Essa observação só se torna possível através da memória, que retém as lembranças. Perfila entre os personagens de seus romances essa profunda qualidade de perscrutar a alma humana. Diversidade de personalidades em obras que perduraram: Os irmãos Karamazov, O Idiota, Crime e Castigo, O Eterno Marido, Aldeia de Stiepantchiko e seus habitantes, entre tantos livros consagrados, evidenciam esse penetrar a alma humana. Observar é inalienável qualidade na extraordinária obra de Dostoïevsky, autor que me fascinou quando de meus estudos em Paris durante a juventude. “Aprendi a conhecer o povo russo, como poucos o conhecem”, escreveu Doistoïevsky a um amigo, quando o autor de Recordações da Casa dos Mortos esteve preso na Sibéria. Esse observar, encontrável em tantos outros autores eslavos e em particular no compositor Modest Moussorgsky (1839-1881), tem muito a ver com aquilo que Sylvain Tesson coloca, sob outro contexto, como pofiguismo, quando estagiou no lago Baikal, na Sibéria. A palavra, sem tradução em França como na língua portuguesa, remete-nos àquilo que, no entender de Tesson, “é uma resignação alegre, desesperada frente ao que virá”. O adepto do pofiguismo não se agita frente ao infortúnio, aceita-o (vide obras resenhadas do autor no item Livros do menu). Apreende o que vê e tende à nostalgia.

A premissa se faz necessária em virtude desses tormentosos momentos  que o país atravessa, eivado de “certezas” anunciadas e desmentidas poucas horas após pelas autoridades que as divulgaram. O comandante de um barco à deriva não tem as mesmas “decisões”?

Como cidadão, gosto imenso de auscultar pessoas das mais variadas camadas sociais, assim designadas. Dão-me a medida do termômetro, sem que necessário seja ter de recorrer às pesquisas, que colocam abaixo de dois dígitos a popularidade da presidente de plantão. O que impressiona é que, do profissional liberal ao empresário, do laborioso caixa de um supermercado ao professor esclarecido, do estudante que realmente estuda ao motorista de táxi, as estatísticas confirmam essa triste constatação. Sob outro aspecto, aquilo que Tesson observa como pofiguismo na alma e no viver do povo russo amolda-se perfeitamente ao que assistimos, uma resignação “nostálgica”, um aceitar todos esses desacertos como se eles fossem irremediáveis. O cidadão observa, recolhe-se e sente que a chaga da corrupção que se agigantou geometricamente a partir de 2003, está aberta e purulenta. Sinto, nessa auscultação e no observar semblantes após respostas, um quase que desânimo. A triste dificuldade da presidente em ser coerente, ao menos no respeito à construção das frases, o que leva à frequente ininteligibilidade de sua fala quando improvisa o discurso, assim como o despreparo na direção do país, desconcertam a população. A presidente não mais consegue falar em rede nacional, pois o panelaço será a instantânea resposta da população. A segurança de um navio está em seu timoneiro. A suspeição que sobre ela recai, a envolver “desatenção” a tantas irregularidades cometidas em sua gestão, desacredita-a. Os terríveis males que vinham dos dois governos que antecederam seu primeiro mandato só foram dimensionados. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, em recente pronunciamento, avalia como “método de governança criminosa” a gestão petista. E persiste a corrupção, essa mãe de toda administração, tanto pública como privada. Enraizada até o lençol freático. É claro que, e isso também observei,  quando se trata de um militante petista, nada a fazer, pois ele tem frases feitas, repetições ad nauseam dos pronunciamentos em recintos propícios que realiza o último ex-presidente. Nessas bravatas, FHC está sempre presente, apesar de há bem mais de uma década ter encerrado seu governo. É possível entender uma obsessão clara do último ex pelo seu antecessor.

A observação me levou ao cerne desse pofiguismo. Os que tenho ouvido e que acompanharam o Mensalão e assistem à interminável e desastrosa novela do Petrolão,  nascida no governo do último ex-presidente, estão revoltadamente resignados. Entendem que um modelo de governança está estiolado, mas preferem cuidar de um dia a dia cada vez mais restrito quanto à realização pessoal e acesso aos bens que, anos atrás, apontavam erroneamente para um Xangri-lá que se sabia a “aparência” da realidade,  amplamente anunciado pela mídia esclarecida como bolha a explodir logo adiante, o que está a ocorrer, hélas.

Para os meus generosos leitores, sugeriria esse auscultar junto às diversas camadas sociais. Leitores de vários rincões deste imenso país poderão ter respostas aproximadas. É só começar.

Enquanto panem et circenses estiverem distraindo parte do povo, mercê do futebol e sua imensa divulgação, dos shows e festivais que vão do rock pauleira ao sertanejo brega e das novelas com anestésicos enredos, que ocupam os principais horários televisivos, o povo brasileiro estará resignado. É de se louvar aqueles que protestam e se organizam pacificamente na busca de uma conscientização necessária. Baluartes. O último rebaixamento do Brasil por importante agência internacional, a Standard & Poor’s, minimizado grotescamente pelo último ex, que a exaltara em 2008, é sinal de alerta, a apontar para tempos difíceis que deveremos passar. Pacificamente, desse pofiguismo atávico deve o povo brasileiro tomar consciência e colaborar no sentido de que sejam encontradas soluções que sobretudo não onerem ainda mais o já super tributado cidadão brasileiro. Os cortes de gastos são rigorosamente necessários. Estariam os governantes, em todas as esferas, dispostos a renunciar às incríveis mordomias que se auto outorgaram?

Para finalizar, relato o que ouvi de um diplomata francês, décadas atrás. Dizia ele que um seu colega voltava do Médio Oriente em classe turística e encontrou um colega brasileiro, que estava a viajar na primeira classe. À indagação deste no sentido de viajarem juntos, o francês teria respondido: “não pertenço a um país rico”. Nada a acrescentar.

This post addresses the ability to observe day-to-day life as expressed by Dostoïevsky, Saint-Exupéry, Sylvain Tesson and the man in the street and the entrenched inertia of unhappy Brazilians to change the status-quo.