Desdobramentos

Sou como bandeira de longe agitada.
Pressinto os ventos a vir, e devo dar-lhes vida.
Enquanto embaixo nada se mexe ainda:
As portas se cerram, suaves e nas chaminés há calma:
As janelas sequer tremem e a poeira ainda assenta.

Então súbito percebo as tormentas e como o mar me excito,
Me estendo e me enrolo pendente,
Lanço-me e estou só totalmente
Na grande tormenta
.
Rainer Maria Rilke

O post precedente teve competente recepção, a partir da epígrafe de Rainer Maria Rilke (1875-1926), que me foi enviada pelo professor de Ciência da Comunicação da USP, Gildo Magalhães. O poema, adequado ao post anterior, é-o também para o presente. Magalhães traduziu-o.

O momento único por que estamos a passar, com  o último ex-presidente muito mais altissonante do que a atual detentora do poder, é prova inconteste da nau sem rumo. A presidente, a acatar nos bastidores sucessivos aconselhamentos que emanam de seu criador, evidencia com clareza que não é líder, trazendo ao cidadão comum – esse que tenho auscultado – a nítida certeza de fraqueza que se traduz, obviamente, num governo acéfalo. O semblante da senhora mandatária tem-se mostrado mais do que nunca cerrado e sombrio. As imagens televisivas e as fotos não mentem. Quanto ao último ex, tornam-se patéticas e desesperantes suas manobras para não naufragar.

São de François Servenière, sempre atento pensador e compositor de mérito, observações argutas que perpassam o tema, mas se aprofundam na interpretação do termo pofiguismo, trazido das entranhas da Sibéria para o Ocidente  por Sylvain Tesson em seus livros. Interpretei o termo, associando-o à nossa realidade, após observar e arguir inúmeros cidadãos comuns de todas as camadas sociais. Entendi como oportuna a inserção das considerações do notável músico, que me tem honrado com seus comentários hebdomadários.

“Sou como você, adoro Dostoïevsky e pelas mesmas razões. Os títulos que me marcaram mais foram O Idiota, leitura universal, e Crime e Castigo. Nos anos 1980 li Soljenitsyne e confesso-lhe que sou naturalmente mais atraído pela literatura e a música russa do que pela francesa.

Também adoro o termo pofiguismo, ‘resignação alegre, desesperada frente ao que virá’, segundo Sylvain Tesson. Creio, contudo, que o termo é ontologicamente eslavo e oriental – Inch’Allah – e encontra sua origem semântica nesses territórios imensos e na impossibilidade para o humano de se projetar em direção a um horizonte controlável. A Terra tem infinitas terras geladas e desertos áridos intransponíveis. Ilustres geógrafos nos ensinam que a mentalidade de um povo estará sempre ligada à ontologia de seu território. As ideologias que dela se inspiram têm as mesmas lógicas, o mesmo DNA. Reconhecemos nessa acepção a fatalidade bem oriental que encontramos no Islã e nos habitantes do Leste. Na Europa Ocidental, avançamos em direção ao oceano, a resultar na vontade de ultrapassar o imaginário e a realidade, desejo inscrito, aliás, em nosso  gene, a decorrer o otimismo na perspectiva de um melhor horizonte. Avançar em direção a uma nova fronteira faz parte do cerne do pensamento do ocidente europeu, que conquistou numerosos territórios graças à mentalidade ligada à geografia de ponta lançada no oceano.

Observe a história e os principais países colonizadores da Terra: Inglaterra, França, Portugal, Espanha… Bem anteriormente, os Homens do Norte, Normandos escandinavos. Mais do que o atrelamento à nossa mentalidade, há nosso pensamento geográfico, que pensa sempre além dos limites dessa linha sobre o mar. Não por acaso terem sido os descendentes desses povos europeus aqueles que tiveram a vontade primeira de se ‘aventurar’ fora da Terra em direção ao espaço, a partir de Jules Verne. Os orientais teriam sido incapazes. Seria bem isso que eles nos condenam hoje, mesmo que inconscientemente. Seria notória sua incapacidade de se projetar fora desse território findo. Sob outra égide, diria que é bem mais simples atravessar o mundo pela via marítima do que por terra. Os nômades aquáticos foram bem mais longe, física e mentalmente, do que os nômades terrestres, pois as terras novas retêm  mais rapidamente seu homem. Sabe-se hoje que, ao longo do Danúbio, o avanço dos povos a pé foi feito na proporção de 25km por geração, não mais… Na vontade insaciável de um mundo melhor, desde que o homem encontrasse uma terra melhor ou mais fértil, ele fincava raízes. A terra emergida impediu-o de avançar rapidamente, por comodidade. Para que ir mais longe se tudo está bem onde me fixei?”. Apenas para lembrar ao ilustre amigo Servenière, não fosse a intrepidez, a volúpia, a coragem, mas também o espírito aventureiro, por vezes com escusos propósitos, das Bandeiras conduzidas pelos bandeirantes rumo ao oeste, não teria o Brasil suas extensas fronteiras.

Continua Servenière: “O mar causou efeito inverso sobre o cérebro humano. O imenso vazio oceânico, apesar de vida intensa em suas águas, levou o homem, mercê do aperfeiçoamento dos meios de navegação, a destinos desconhecidos. O temor e a angústia do soçobrar no vazio não impediram as aventuras. Quanto à Terra, é ela concreta e o mar, abstrato.

Creio que a natureza nos torna o que somos. Você escreve sobre o fatalismo do povo brasileiro frente à corrupção. Tenho lido a respeito e sobre os baixíssimos índices de popularidade da presidente. Você associa esse fatalismo em seu país ao termo  pofiguismo, proposto por Tesson. De meu lado, acredito nessa pujança da natureza que impõe ao homem sua maneira de pensar. Habitantes das estepes siberianas, da Ásia Central e dos desertos gelados ou tórridos teriam o mesmo fatalismo que deva existir naqueles das florestas exuberantes do Brasil. A natureza sempre será superior. Na Europa ocidental sabemos domar a natureza, pois ela é menos pujante, mais dócil, mais maleável às mãos do homem. Penso que essa perspectiva geográfica explica muito as diferenças das mentalidades, tanto terrestres como marítimas. Pelo menos, assim entendo” (tradução: JEM).

Quanto à nossa floresta amazônica, a tragédia está a se abater sobre ela, arrastada atualmente, em tantas áreas, por correntes que chegam a derrubar numa só cartada inúmeras árvores centenárias, sem que essa ação seja exemplarmente punida. Acrescente-se, como exemplos, duas outras tragédias, a do Mar de Aral, hoje com pouco mais de 10% de sua capacidade, em virtude dos planos insanos da ex-URSS; a que se abaterá sobre as populações ribeirinhas às margens do sofrido leito do São Francisco nessa “planejada” transposição do rio, o que tornará  esses povos tão indefesos como aqueles do agonizante Mar de Aral. Evidências de que o MAL, originário dessas catástrofes alhures e em nosso solo, advém da corrupção. Numa outra esfera corruptiva, Mensalão e Petrolão exemplificam essa endemia que se alastrou pelo país, mormente a partir de 2003. Compete à mídia competente e esclarecida revelar sem tréguas as operações do Lava-Jato. Observar, apenas observar, apesar de desesperanças…

In this post I transcribe message from the French composer François Servenière with reflections on the issue of what Sylvain Tesson calls “pofiguisme”, something we can understand as fatalism. According to Servenière, the resignation shown by people from Eastern Europe or Islam is a consequence of their harsh geography: arid grasslands and scattered oases, barred from contact with the sea. On the other hand, for people of Western Europe, living by the sea in a more docile environment , it is easier to tame nature, modify it and go searching for new horizons.