CDs, DVDs e Partituras

As obras de Lopes-Graça são enigmas.
Por isso o seu fascínio aumenta com o decurso do tempo.
É extraordinária a resistência que oferecem à interpretação -
não só interpretação musical
no sentido da execução (performance),
mas também interpretação
no plano da recepção pelo ouvinte (aesthesis).
Não se deixam apreender ou captar no já conhecido.
Daí a energia que delas se vai libertando,
de audição para audição, de execução para execução.
Há sempre uma nova perspectiva que antes nos escapara,
uma nova dimensão por descobrir.
Mário Vieira de Carvalho

Não foram poucas as vezes que abordei neste espaço a obra do grande compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994). O autor deixou uma produção das mais significativas, incursionando em inúmeros gêneros destinados à música instrumental, camerística, orquestral e coral, mormente à música para piano, seu instrumento eleito. Infelizmente pouquíssimo conhecido no Brasil, Lopes-Graça tem granjeado renome acentuado nos últimos anos no hemisfério norte,  que o coloca entre os maiores compositores dos três últimos quartos do século XX.

Todo autor de talento tem suas impressões digitais impregnadas em cada criação, caracterizando a identidade insofismável e o estilo. Os que permanecem na história têm essas marcas inconfundíveis. A obra do notável é distinguida logo aos primeiros acordes e toda a inventiva que se segue apenas ratifica a certeza do gênio ou do grande talento. Há a necessidade imperiosa do domínio da escrita, precedido do almejo, compartimento este onde fluem as ideias que são rigorosamente distintas em cada compositor maior. Este elege preferências, estrutura sua arquitetura musical, acalenta-a em suas vestimentas diversas, privilegiando o abstrato ou o imagético que possa insistentemente acompanhá-lo, não se descartando o acaso.

Lopes-Graça é um caso típico do amálgama. Se a austeridade voltada ao abstrato quanto aos títulos percorre um sem número de suas obras, como as seis extraordinárias Sonatas e os 24 Prelúdios para piano, numa exemplificação sumária, o olhar de Graça tem a argúcia e o ato amoroso do guardar. A observação será o motivo a impulsionar a ideia musical, a criação e o versar para o papel pautado a genialidade. Dir-se-ia, num plano metafórico, que esse olhar alia o precisão fixada pelo lince ao multidirecionamento característico do periscópio de que é munido o camaleão. Lopes-Graça apreende o au-delà da imagem, metamorfoseia um local físico, dando-lhe grandeza, perscruta a alma de personagens, dimensionando a caminhada dessas figuras queridas – familiares ou amigas – pela História. Assim agiu ao compor os dois cadernos de Natais Portugueses ou os quatro das Músicas Rústicas. Assim também procedeu ao criar Viagens na Minha Terra, a partir da leitura de livro homônimo de Almeida Garrett, ou ainda, numa expansão geográfica extrafronteiras portuguesas, Cosmorama. Assim agiria em duas coleções fundamentais voltadas aos que pulsam ou àqueles que se foram.

No substancial repertório pianístico de Lopes-Graça encontram-se duas séries antagônicas, distintas na criação, no conteúdo, na destinação e no mood. Uma reverencia a vida desde o nascimento, glorificando as núpcias e saudando companheiros de trajetória. Refiro-me às coletâneas das 23 Músicas Festivas (1962-1994) e das nove Músicas Fúnebres (1981-1991), estas  rendendo homenagem a diletos amigos e admiradas figuras que partiram. Ambas as coleções, transcendentais na feitura.

As 23 Músicas Festivas, contraste absoluto às Músicas Fúnebres, são obras de invulgar textura. Gravadas em 2012 pelo notável pianista António Rosado, que anteriormente já prestara essencial contributo à criação de Fernando Lopes-Graça ao registrar fonograficamente as oito suítes In Memoriam Bela Bartok e as seis Sonatas, aceitou o singular desafio e apresenta em magnífica interpretação a coletânea completa (2 CDs). Sempre com o incentivo da incansável Sílvia Camilo, dedicatária de uma das peças da coleção, houve por bem a organização dos CDs – produção Nuno Cardoso -, o lançamento de dois DVDs contendo, o primeiro, o magnífico recital de António Rosado, precedido da apresentação do professor Ruy  Vieira Nery, evento realizado no Centro Cultural de Belém aos 16 de Dezembro de 2012. Num segundo DVD, há entrevistas com os dedicatários, descendentes e amigos. Alguns excertos históricos, filmados com a presença de Lopes-Graça em circunstâncias do cotidiano, enriquecem o projeto, que teve o corolário representado pelas partituras impressas em quatro cadernos (AvA Musical Editions, 2012).

Clique para ouvir, com António Rosado ao piano, de Fernando Lopes-Graça:

“Para as bodas de José Pedro e da Paula”

Comecemos pela obra editada criteriosamente e com a revisão de Rosado. O texto do pianista e musicólogo João Espírito Santo elucida a divisão em quatro volumes a partir dos dedicatários. O número um, “Para crianças”, contém seis Músicas, a focalizar miúdos beirando até o primeiro lustro, e mais a intrigante Para um “canarito” recém nascido. Sílvia Camilo, filha do saudoso Viriato Camilo, é lembrada na Música 3, Para os três anos da Sílvia. O segundo volume, “Para Bodas e outros Festejos”, agrupa sete Músicas Festivas. Claude Debussy, em La Boîte à Joujoux para piano (1913), introduz a assim conhecida Marcha Nupcial de Mendelssohn, a comemorar o casamento da boneca com o soldado. Em sua 21ª peça, Para as Bodas de José Pedro e da Paula, Lopes-Graça também irá lembrar-se da consagrada marcha. José Pedro, festejado pelo compositor em seu primeiro natalício (Música 3), é-o também na dedicada à celebração que dá início ao convívio conjugal. O agrupamento do terceiro volume leva o título “No aniversário de jovens amigos”. Lopes-Graça sempre estimulou o músico emergente. Não desmente a assertiva ao se lembrar de Maria Alina, Nuno Barroso, do próprio João Espírito Santo em seus 15 anos e os 18 do também pianista Miguel Borges Coelho. Estímulo que teve consequências exitosas. Como esquecer o convite de Lopes-Graça ao jovem que eu fui para um primeiro recital em Lisboa na Academia de Amadores de Música, aos 14 de Julho de 1959? Num quarto volume, “No aniversário de velhos companheiros”, lembrar-se-á de amigos de longa data em seus natalícios, que vão dos 66 aos 90 anos de idade, caso da grande amiga e ilustre crítica e musicóloga Francine Benoît, pranteada que será na Música Fúnebre número 7, Moimento a Francine Benoît. Quanto à dedicada a Vasco Gonçalves, general que foi Primeiro-ministro de Portugal (1974-1975), Lopes-Graça recordar-se-á de Jornada, poesia de José Gomes Ferreira musicada pelo compositor e que faz parte das Marchas, Danças e Canções (Seara Nova, 1946). O tema da marcha também é encontrado na Música Fúnebre nº 3, Morto, José Gomes Ferreira, vais ao nosso lado”

Clique para ouvir, com António Rosado ao piano, de Fernando Lopes-Graça:

“Para os 70 anos de Vasco Gonçalves”

Músicas Festivas apresentam uma armadilha. O título poderia sugerir obras de circunstância apenas, mercê das dedicatórias, por vezes singelas, mas nunca desprovidas de razão. A coletânea tem cumeeiras da mais absoluta virtuosidade, e elas são muitas, possíveis de serem realizadas por pianistas da mais alta estirpe. A transcendência em tantos segmentos, o lirismo inerente em não poucas passagens, a puerilidade latente quando se volta à criança e o domínio absoluto e multi-direcionado de uma escrita pessoal, mas que não esquece compositores eleitos e expressamente admirados em sua pena como literato, fazem-no o nome maior da música em Portugal do século XX, quiçá de sua história.

A escolha de António Rosado para projeto tão ambicioso que resultou amplamente, não poderia ser mais adequada. Certamente um dos mais importantes pianistas de toda a trajetória do piano em Portugal, intérprete respeitado do repertório sacralizado e que tem prestado contributo insofismável, através de gravações referenciais, ao grande Fernando Lopes-Graça.

Quanto às mencionadas Músicas Fúnebres, obra de profunda austeridade, foram por mim gravadas na Bélgica (2010) para o selo PortugalSom/Numérica em álbum (2CDs) com outras composições de Lopes-Graça e lançado em 2012 em Portugal.

Finalizo a ratificar o desconhecimento quase absoluto que se tem no Brasil da monumental obra de Fernando Lopes-Graça. As Sociedades de Concerto insistem na mesmice e apenas a complacência as faz introduzir alguma obra nova que, geralmente, não será mais repetida. A profícua e importante obra coral do ilustre compositor português não frequenta repertórios e os pianistas pátrios passam ao largo por uma das mais significativas produções para piano do século XX. É preciso que mentes se abram…

This post addresses the album (two CDs and two DVDs) recorded by the great Portuguese pianist António Rosado with the 23 Músicas Festivas (Festive Pieces) composed for piano by Fernando Lopes-Graça and dedicated to friends to celebrate special occasions. Interviews with the pieces’ dedicatees or their descendants enrich Rosado’s work.