Navegando Posts publicados em fevereiro, 2016

Outras reflexões sobre o tema

O piano ou é fácil ou impossível.
Arthur Rubinstein (1887-1982)
(frase atribuída ao notável pianista)

Conversava com um amigo, músico amador, a respeito de vários temas ligados à área musical. Veio uma pergunta bem pertinente referente à interpretação e às tantas leituras diferenciadas frente à execução. Durante um curto que tomamos em nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, tentei explicar ao João Paulo algumas considerações de músicos renomados e minha posição pessoal sobre relevantes questões.

Hoje temos o YouTube a divulgar ad infinitum intérpretes de todos os níveis. Nome do compositor e título da obra servem para abertura de extenso leque que expõe um sem número de executantes para as composições consagradas, mas também vasto repertório basicamente desconhecido do grande público, tendo, logicamente, raras performances.

João Paulo quis saber a razão de a mesma obra, por vezes, ter interpretações antagônicas, mesmo se considerarmos grandes músicos a tocar. Sob outra roupagem já tratei desse tema, que se está a acentuar hodiernamente. Questão intrincada. As transformações tecnológicas que se deram a partir, sobremaneira, da segunda metade do século XX  influenciaram mais aceleradamente posturas diferenciadas frente à interpretação. Glenn Gould (1932-1982) foi um pianista que rompeu tradições expressamente, razão a acrescer à grande popularidade que o pianista canadense granjeou. Teve e ainda tem admiradores pelo mundo, mas deixou um legado rigorosamente individual. O extraordinário pianista evidencia acurada consciência em todas as suas interpretações, endossadas  em tantos depoimentos colhidos por Otto Friedrich (“Glenn Gould – Uma vida e variações”, 2000). Estimulam opiniões polêmicas tributadas à sua postura frente à obra. Imitações sempre carregam viés caricato, e seu exemplo tenderia a ser único. Sob outra égide, poder-se-ia aventar até que, com o passar das décadas, a discografia de Glenn Gould possa estiolar-se, permanecendo sua herança musical como fato característico de uma época. Talvez. Numa outra leitura, não estaria a interpretação hodierna a romper as amarras da tradição, o que valeria a dizer que Glenn Gould tenda a se fixar no panteão glorioso dos pioneiros? Suposições. Os caminhos por que trilha a Cultura como um todo são imprevisíveis e a mídia sempre esteve atenta às figuras que se destacam muito acima de seus pares, mas também é iconoclasta tão logo revelações denigram esses eleitos.

Vieram a propósito, durante nosso curto, considerações de dois grandes músicos a respeito da interpretação e seus elementos integrantes, como flexibilização de andamentos, dinâmica, percepção auditiva, gestual,  “atualização” da leitura da partitura. Neste último caso, mais e mais está a ser aceita certa arbitrariedade que causa impacto. Dir-se-ia estar havendo um determinado “temor” por parte de intérpretes na manutenção da traditio. Há público caloroso, irreverente até, e concorde com a postura que faz entender a Música de Concerto, Clássica ou Erudita como parte integrante da grande transformação por que passa a Arte no planeta. Mario Vargas Llosa não deixa de denunciar sistematicamente essa ação, que provoca resultados díspares na civilização. Artistas consagrados fazem permanentemente concessão quanto ao repertório não de concerto, gravam obras de cunho popular com roupagem “erudita” e prosseguem carreiras triunfantes.

A uma pergunta de João Paulo sobre andamentos das músicas consagradas, comentei que não é difícil constatar que mais e mais intérpretes, pianistas hodiernos como tipicidade, têm dado mostras de que os tempi das obras executadas, quando rápidas, tendem à aceleração ainda maior. Por várias vezes em meus posts referi-me ao exemplo dos esportes, que encontram no cronômetro a aferição que leva às premiações. Recordes são batidos para gáudio de atletas, patrocinadores e multidões. Impossível não perceber veracidade nessa comparação. Os tantos concursos de piano espalhados pelo mundo dão mostras dessa assertiva. Habilíssimos executantes  extasiam  público e jurados através da impecabilidade da interpretação e performances, por vezes acrobáticas e alucinantes no que tange à virtuosidade. Lógico que há que se considerar tantos outros fatores, como a musicalidade, a compreensão estilística, o respeito à forma. Todavia, o jamaicano Usain Bolt e sua incrível marca de 9,58 segundos para os 100 metros rasos (Berlim 2009) é exemplo em tantas atividades. Impossível não considerar que a intensa concentração mediática em torno de recordes não produza efeitos nas mais diversas áreas. Estou a me lembrar de que anos atrás assisti a um concerto no qual os músicos finalizavam com uma obra rápida. Calorosamente aplaudidos, os intérpretes regressaram para a tradicional música extraprograma e um deles, ao se dirigir ao público, disse que tocariam essa última peça de concerto, muito conhecida, aliás, em tempo ainda mais rápido. A performance foi razoável, mas o numeroso público ao final se levantou e aos berros saudou os “virtuoses”. Outros tempos. Saí cabisbaixo. Nada a fazer. A música apenas a serviço do aplauso fácil!!!

O cronômetro a fixar Usain Bolt é exato, irreversível, mas a interpretação musical velocista pode prejudicar a transparência. Há magia e simulação que anuviam nossa percepção. Daniel Barenboim é preciso ao afirmar que o excesso de “velocidade” está contra a possibilidade da percepção auditiva. A consideração do pianista-regente-pensador tem fundamento. Basta o ouvinte comparar as interpretações da Valsa Mefisto, de Franz Liszt, nas execuções da georgiana Khatia Buniatishvili e do russo Daniil Trifonov para tirar suas deduções. Indico os links (fonte YouTube):

Clique para ouvir as duas interpretações:

Buniatishvili

Trifonov

Na de Trifonov tudo está lá extraordinariamente exposto e a compreensão da partitura é plena. Virtuosidade a serviço essencialmente da música. Na interpretação de Buniatishvili, a virtuosidade extrapola, e os dons incríveis da velocista estariam a serviço de seu impulso a visar ao impacto. Quem sofre? A diabólica criação de Liszt certamente, pois nem tudo é rigorosamente transparente e, nesse élan, passagens técnicas ficam comprometidas pela não certeza auditiva de que tudo da partitura lá esteja exatamente transcrito na execução da pianista. Vê-se que haveria, por parte de Buniatishvili, a necessidade de bater recordes. O que é mais preocupante é a recepção calorosa que a pianista recebe do “grande público”. Nunca é demais mencionar a célebre frase francesa épater les bourgeois. Falecido recentemente, Humberto Eco não considerava idiota a legião de seguidores das redes sociais pela internet? Paralelismos? Há que se pensar.

E os compositores barrocos ao piano, questionou-me João Paulo? A nossa extraordinária pianista Antonieta Rudge (1885-1974), em opinião recolhida pelo ilustre compositor Gilberto Mendes (1922-2016), faria menção às escolhas interpretativas no repertório barroco para teclado: “Lembro-me de minha professora de piano, a grande Antonieta Rudge – tive este privilégio – me dizendo que podemos tocar Bach em qualquer andamento, qualquer instrumento, de qualquer jeito, porque a música está na partitura, na sua escrita, no pensamento musical. Sua Arte da Fuga nem especifica a instrumentação. São as notas escritas no papel que devem soar na nossa mente” (“Viver sua Música”, 2014). No que se refere ao andamento, desde que se escolha um determinado, certamente.  Seria o insigne François Lesure (1923-2001) que nos ensinaria com sábias palavras: “não é o instrumento que assegura aprioristicamente a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”.

Desde minha gravação da integral para tecla de Jean-Philippe Rameau executada ao piano, reitero em textos que a única tradição válida de toda a extensa criação para cravo entre os séculos XVII-XVIII vem da transmissão oral mestre-aluno, a ter como instrumentos pianoforte, inicialmente, e piano a seguir. Prolongou-se do final do século XVIII afora, pois o instrumento cravo ficou no ostracismo. Nenhum compositor que permaneceu na história escreveu para cravo durante o século do silêncio para o cravo. Essa tradição da escuta tem certamente ingredientes que podem, por vezes, alterar os tempi, mas não a essência de conquistas inalienáveis obtidas pela interpretação das obras escritas para teclado nos século XVII e XVIII executadas ao piano, como agógica, acentuações, legato e dinâmica, esta última soberana na interpretação, pois possibilitou a oitiva elástica. A afirmação de Antonieta Rudge, mencionada acima, vem ao encontro dessa liberdade que se pode dar à interpretação, desde que elementos básicos da tradição não sejam aviltados. Em situação também próxima, Daniel Barenboim escreveria: “É necessário ser muito rigoroso com aqueles tendentes ao excesso de liberdade, mas de mostrar-se bem livre com aqueles que não têm a imaginação para sê-lo” (“La musique est un tout”, 2014).

Durante mais de meia hora ficamos a conversar. João Paulo finalizaria suas compras no supermercado e eu, as minhas, já a pensar num tema para o blog.

A chat with a friend was the starting point of this post, a reflection upon some aspects of musical interpretation, in particular that of the same pieces played by different performers and how unlike they may sound. In my view, the performer is free to breathe new life into a work since the basic elements of tradition and the composer’s intentions are not betrayed.

 



Glosas nº 13 homenageia Gilberto Mendes

A música é uma actividade do intelecto.
Não foi inventada pelo Homem,
foi criada com o Homem.
Fernando Corrêa de Oliveira

Não poucas vezes dediquei posts à Revista Glosas, publicação do Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa (mpmp), que, ao pormenorizar-se sobre a criação em Portugal através dos séculos, reserva sempre espaços à produção da música brasileira desde o período colonial. Infelizmente não há minimamente recíproca por parte das raríssimas publicações brasileiras, o que é motivo de louvação especial aos esforços de Glosas.

O núcleo temático de Glosas (nº 11) foi reservado ao nosso grande compositor romântico Henrique Oswald. Artigos e ilustrações enriqueceram a publicação. Em 2014, Edward Luiz Ayres de Andrade, dinâmico presidente do mpmp, disse-me que pretendiam homenagear o mais importante compositor vivo brasileiro, Gilberto Mendes. Estivemos em Santos para longa entrevista do músico ao Edward Luiz e simpático almoço no tradicional restaurante Almeida, um dos preferidos do compositor. A entrevista e outros artigos sobre Gilberto Mendes foram publicados no número que saiu em Novembro último. Infelizmente, a bela edição não chegou a ser apreciada pelo compositor, que nos deixou no primeiro dia deste ano, aos 93 anos de idade.

A entrevista concedida a Glosas revela muitas das facetas marcantes de Gilberto Mendes. Edward Luiz soube extrair conteúdos essenciais da personalidade tão encantadora do grande compositor e humanista. Têm interesse algumas respostas pontuais, que, tratadas sob outra égide em seus livros, dão a entender as amarras libertas de determinadas tendências vanguardistas. A uma pergunta de Edward Luiz “E o que significou Darmstadt em sua carreira?” (as ideias da neue musik, professadas no Festival de música da cidade alemã, influenciaram tendências da vanguarda no Brasil, mormente nos anos 1960), responde Gilberto: “Na verdade nada, porque tudo aquilo eu já sabia. Fomos atrás do que os jornais diziam, de Boulez, de Stockhausen, Berio, Nono, Ligeti… Mas, na verdade, em Darmstadt não havia aulas, eram apenas conferências. E era muito num jogo assim: Ligeti fala sobre Boulez, Boulez fala sobre Berio… – uma panelinha muito bem urdida”. A uma outra pergunta de Edward Luiz sobre transformações de sua linguagem musical, Mendes historia seus caminhos criativos, que foram vários. Em questão sobre a Bossa Nova, Gilberto observa que não há nada de novo na harmonia da Bossa Nova, pois ela “é Debussy”, mas considera “gostosinha a batidinha rítmica” daquilo que denomina “coisa essencialmente carioca, de praia, e eu também sou de praia”.

Em Glosas 13, artigos são dedicados ao notável compositor nascido em Santos: José Lopes e Silva, “No som das vibrações ultra-sónicas…”; Antônio Eduardo Santos, “Veios de uma transmodernidade” e “Um outro gesto sonoro – o teatro musical na obra de Gilberto Mendes”; Luís Salgueiro, “Gilberto Mendes – Alegres Trópicos” e, a fazer parte de minha coluna permanente em Glosas, “Ecos d’Além Mar”, “A mente aberta de Gilberto Mendes”, em que enumero todas as obras que apresentei durante trinta anos de um relacionamento intenso com o compositor.

Ascent, título de matéria substanciosa, destaca o músico polivalente português Bernardo Sasseti (1970-2012), talentoso em todas as áreas em que atuou. Glosas bem fez reservando-lhe espaço, inicialmente a reproduzir texto de Sasseti, que implica considerações sobre seus almejos. “Posso também referir que o cinema, a fotografia e a pintura, assim como a actividade de composição original para piano – a qual me dedico com assiduidade – se manifestam, directa ou indirectamente, tanto em Ascent como nas gravações que a antecedem, desde 2002 com o CD Nocturno”. Biografia bem documentada, mas não assinada, revela-nos um compositor que também se interessou pelo teatro e apresenta extensa discografia de Bernardo Sasseti. O artigo de Maria João Neves, “O sonho dos outros – A fenomenologia do sonho de María Zambrano na música de Bernardo Sasseti”, tem interesse pela inserção do pensamento da escritora e filósofa espanhola (1904-1991) e a habilidade com que a autora do texto trabalha com essa aspiração de Sasseti, para quem a música “faz-me sempre sonhar”.

Comovente tributo é prestado à ilustre violoncelista portuguesa Madalena Moreira de Sá e Costa (1915-  ), a comemorar seu centenário. Um texto da homenageada discorre sobre o célebre Fado Burnay, de Eduardo Burnay, precedido por revelações artísticas da violoncelista. Madalena, irmã da ilustre pianista e professora Helena de Sá e Costa (1913-2006) e filha do renomado compositor Luís Costa (1879-1960), teve oportunidade de responder às competentes perguntas de Nuno M. Cardoso e José Carlos Araújo sobre sua longa atividade musical. Entrevista referencial. Substanciosos depoimentos de músicos, ex-alunos e amigos enriquecem ainda mais esse outro núcleo temático de Glosas, privilegiando a violoncelista portuense. Os textos têm as assinaturas de Vasco Barbosa, Isabel Delerue, Paulo Gaia Lima, Gisela Neves, Luiza Gama Santos, Jed Barahal, Jorge Rodrigues, Manuela Gouveia, Maria José Figueiredo, Elvira Archer, Piñeiro Nagy, Bruno Borralhinho, Bruno Caseirão, Ana Filomena Silva, Valter Mateus, Sofia Novo, Fernando Costa, Alberto Campos, Guilherme Cancujo.

Como adendo extra Glosas, Madalena de Sá e Costa e eu demos recital no Porto (Delegacia Regional do Norte, 7 de Janeiro de 1986), apresentando obras de Oswald, Beethoven, Debussy e Filipe Pires. Grande senhora e com memória privilegiada, pois compareceu a um recital que realizei em Braga (2011), conduzida por seu filho, a lembrar-se perfeitamente de nosso evento, que foi prestigiado pela presença de sua irmã, Helena de Sá e Costa.

O espaço a que me proponho impede-me de abordar pormenorizadamente todos os ricos temas assinados por especialistas. Nomeá-los, contudo, faz-se necessário: Luís Salgueiro entrevista o compositor Nuno da Rocha, pleno de ideias inovadoras; as “Irmandades e Ritual em Minas Gerais durante o Período Colonial” são estudadas por Maria Alice Volpi; “Lembrança(s) Suggia: Notas sobre um Espólio” remete-nos à grande violoncelista portuguesa Guilhermina Suggia, mercê do arguto olhar de Luís Cabral; “Em torno do Festival de la Canción Gallega”, José Luís do Pico Orjais elabora um breve apanhado da participação portuguesa nesse importante Festival, mormente a de obras de Frederico de Freitas; “Evocação de Santo Pinto no Bicentenário de seu nascimento”, na qual Maria José Borges evidencia atributos de compositor do século XIX de música dramática e orquestral, que mereceria maior atenção; “Os Cantos Sefardins para voz e piano de Fernando Lopes-Graça” é um texto abreviado de longo estudo analítico a ser publicado por José Maria Pedrosa Cardoso. Foi o ilustre professor vimaranense que nos sugeriu os 12 Cantos Sefardins, apresentados em primeira audição mundial em São Paulo (Unibes, 15/10/2015), tendo Rita Morão Tavares (mezzo-soprano portuguesa) e eu como intérpretes.

O substancioso artigo de J.A. Gonçalves Guimarães, “Os quatro músicos Napoleão”, tem muito interesse. O estudioso apresenta sucintamente a saga dos Napoleões, do pai Alexandre, nascido em Bergamo, na Itália (1808-1886), e dos filhos portugueses Artur (1843-1925), Aníbal (1845-1880) e Alfredo (1852-1917). O segundo e o terceiro se notabilizariam como intérpretes e compositores, sendo que Gonçalves Guimarães se pormenoriza em Artur, menino prodígio, verdadeiro globetrotter em sua época, pois a viajar pela Europa e Américas, apresentando-se diante da nobreza e de músicos afamados que lhe rendem altos elogios. Estabelecer-se-ia no Rio de Janeiro, onde continuaria sua atividade de pianista, professor e proprietário de editora de música, obtendo grande repercussão nas várias atividades. Deve-se à editora a publicação de inúmeras obras do repertório pátrio, de Portugal e de alhures e de suas próprias composições, que mereceriam ser frequentadas pelos intérpretes. Gonçalves Guimarães, ao tratar dos irmãos, fá-lo de maneira a estabelecer um elo que sempre existiu entre eles, apesar de apenas Artur ter ficado sob a guarda do pai, que o acompanhou pelo mundo até a maioridade. Na discografia dos Napoleões menciona, entre outras gravações, peças para piano de Artur gravadas por Sylvia Maltese e Clélia Ognibene (duo), Waldelly Mendonça e Philip Martin para selos diversos. De Alfredo, cita o Concerto para piano e orquestra nº 2, pela Orquestra Nacional da BBC de Gales, conduzida por Martyn Brubbins, tendo Artur Pizarro ao piano ((Hyperion).

Rubricas de interesse e assinadas por Luzia Rocha, Pedro Cravinho, Tiago Hora, Sílvia Sequeira e pela equipe do Museu Nacional da Música completam Glosas 13.

Reitero o esforço do mpmp que faz publicar a Revista Glosas, a valorizar a música portuguesa e dando substancial espaço para a música brasileira. Ratifico que não há recíproca concernente a essa literatura específica no Brasil. Inúmeras vezes já escrevi que nosso país insiste em ignorar a música portuguesa. Intérpretes minimamente conhecem ou sequer ouviram criações de compositores portugueses e nossas publicações acadêmicas, seguindo caminho similar, passam ao largo. Estou a me lembrar de que, durante muitos anos (1990-2007), fui o redator chefe da Revista Música da Universidade de São Paulo. Reservei, desde o primeiro número, cerca de 30% dos espaços para artigos de ilustres compositores, intérpretes e musicólogos em contribuições originais. Despertava e instigava a comparação. Foram mais de trinta artigos!!! Creiam os leitores, havia aqueles que me questionavam, pois gostariam de vê-la a proporcionar colaborações em “quantidade maior”, friso, de docentes e pesquisadores das muitas universidades brasileiras (sic). Nomes internacionais da maior respeitabilidade estão inseridos nos muitos números publicados até minha aposentadoria. No que concerne a Portugal, Elisa Lessa, Humberto d’Ávila, Jorge Peixinho, José Manuel Bettencourt da Câmara, José Maria Pedrosa Cardoso, Nancy Lee Harper, Ruy Vieira Nery e Sérgio Azevedo fazem-se presentes ao longo dos anos.

O ato efetivo de Glosas ao estender a mão, dando espaços sensíveis à música brasileira, não deveria ser incentivo para que façamos o mesmo, mormente se considerarmos a riqueza da composição portuguesa? No mínimo, Glosas, nessa abertura generosa, mostra o caminho a ser novamente seguido. Doravante haveria terra fértil?

This post is about issue nº 13 of Glosas, the voice of classical music that is the only one to cover all the countries that share the Portuguese language. This issue is very special, since a large segment is dedicated to the Brazilian composer Gilberto Mendes, who recently passed away. I also comment briefly on the remaining wide variety of topics addressed by the music magazine, in special the tribute paid to the great cellist Madalena Moreira de Sá e Costa celebrating the centennial of her birth.

 

 

A crítica política em versos do jurista Ives Gandra

Esclareço que os termos mais duros,
nos versos relacionados ao poder,
são destinados aos cidadãos já condenados.
Quanto à incompetência governamental,
apenas reitero o que escrevi
em artigos jornalísticos ou pareceres jurídicos.
Ives Gandra da Silva Martins
(Extraída da Breve Introdução à obra)

Petulância e incompetência
Há no governo de sobra,
Seu veneno, na indecência,
Lembra peçonhenta cobra.
(quarteto de 28/02/2015)

Autor de dezenas de livros a abordar áreas do Direito, o notável jurista Ives Gandra tem na poesia, desde a juventude, uma de suas paixões. Traduz-se essa verve poética num também sem número de livros em que privilegia temas essenciais do condicionamento humano, a família, o amor, o cotidiano. Não por outro motivo ocupa cadeira na Academia Paulista de Letras, um de seus orgulhos, a somar-se a tantas outras Academias que honra com seu prestígio.

Como irmão, Ives não deixa, a cada publicação, de me enviar o novel livro com simpática dedicatória ao casal. Foi com prazer que li seu novo diário, que, junto àquele neste espaço resenhado, forma um conjunto invejável (vide blog “Meu Diário em Sonetos”, São Paulo: Pax & Spes, 4 vol., 2010, 21/05/2011). O presente “Meu Diário em Sextetos”, também apresentado com o nome completo do autor, Ives Gandra da Silva Martins, tem características, diria, mais abrangentes (São Paulo: Pax & Spes, 2016). Razões poderiam explicar essa assertiva.

O jurista poeta, aos 81 anos de idade, adentra mais profundamente o benfazejo espírito de síntese, e a forma sexteto, multum in minimo, é resultado de longa decantação. Diria que arabescos são dispensados e Ives penetra na senda estreita da essência essencial. Debruça-se, a interpretar seu entorno – fundamento da existência -, sem deixar, porém, a visão mais hermenêutica – mas em termos acessíveis – dos amplos temas que afligem hoje a imensa maioria dos brasileiros. Nessa altura da vida, livre das amarras que fatalmente levam o profissional a manter convivência “politicamente correta” com adversários tantas vezes ferrenhos durante a fase mais intensa da carreira, Ives sobrevoa e vê a floresta da vida sem concessões. Não que tenha cessado a brilhante carreira como advogado, mas o tempo da dissecação de cada árvore dessa floresta passou e, vê-la do alto, após tantas conquistas, deu-lhe a sabedoria serena.

“Meu Diário em Sextetos” apresenta um sexteto para cada dia do ano e, ao fim de cada mês, duas ou três quadras. Divide-se o livro em três compartimentos preferenciais: a família-religião, o declínio físico e a crítica política. O primeiro, fulcro de uma paz advinda de seu catolicismo convicto e da família como estrutura fundamental ao equilíbrio pleno, tem em sua esposa, Ruth, o epicentro, pois tantos são os sextetos a ela dedicados que se torna nítida a união indelével. O declínio físico, que não altera minimamente o pensar em ebulição e a defesa de princípios que apoia com fervor, está presente em muitos breves poemas. Artrite, artrose, doença autoimune, nada impede que, apesar do sofrimento expresso em versos, o corajoso Ives percorra, ainda hoje, o país inteiro a pregar aquilo que entende justo, correto, honesto e voltado à democracia almejada e ao cidadão comum, sem dele selecionar ideologia. O terceiro compartimento representa a síntese absoluta das centenas e centenas de artigos ou pareceres jurídicos expostos ao longo da vida, com uma ressalva. Se tantas vezes Ives teve de se conter – assim acredito, após leitura de infindável número de artigos publicados na grande mídia através das décadas -, pela tipificação profissional e também pelo coleguismo “diplomático”, não mais o faz nos sextetos. São estes transparentes, cristalinos como a água mais pura. Aponta a corrupção, estilhaça para o leitor a incompetência deste governo que desde 2003 aí permanece. Não poupa Lula, tampouco a criatura Dilma. Uma força moral o conduz ao desvelamento pleno e com que autoridade, diria, vocação libertária!!! Seus sextetos crítico-políticos são o filtramento de tantos de seus pareceres e artigos.

Selecionei muitos deles entre os que se atêm à especificidade crítico-política e à endêmica corrupção que teve acelerada evolução após 2003. Não obedeci à cronologia, pois dia após dia os sextetos foram sendo escritos, muitos pontuais após as desastrosas medidas governamentais de 2015, ano preciso que reúne a criação poética do livro.

Sobre Dilma e Lula, não cessa de apontar a incompetência, a ignorância e até… a loucura.

Disse Dilma que vai bem
Seu governo e que também
Não mudou a sua trilha,
Ou é mentirosa ou cega,
Esta louca que navega
A “Versailles” de Brasília.

O Brasil se desfigura,
Vive só de sinecura
E da esquerda truculenta,
Quanto mais ele vai mal,
Do mundo não tendo aval,
Mais se esconde a “Presidenta”.

Foram seis meses corridos,
Os ânimos revestidos
De repulsa ao mau comando,
Com seu ar tão prepotente
E seu jeito incompetente
Dilma afunda com seu bando.

Dilma vive prepotência
Com enorme incompetência
Em governar o Brasil,
Nunca tanto se roubou,
Mas sempre faz o seu show,
Num de pólvora barril.

Todos querem Dilma fora
E a presidente não cora
Em ver o gesto do povo,
Seu fracasso é retumbante
Mas ela bem segue avante
E quer fracassar de novo.

Mais uma fala na classe,
Falando no negro impasse
Que Dilma pôs o Brasil,
Nunca vi roubarem tanto
Que a todos nós causa espanto,
Descarados, sem ardil.

Se não ladra, foi omissa,
Eis a única premissa
Neste assalto a Petrobras,
Que a Polícia Federal
Descubra a origem do mal
Pra nação estar em paz.

Dilma cai como um foguete,
Foi o Brasil seu joguete
Para afundá-lo de vez.
O povo desesperado
Não sabe para que lado
Caminhar a cada mês.

Dilma não sabe o que diz
Para a nação infeliz
Que seu governo gerou,
Desce por ladeira abaixo,
E seu governo eu bem acho
De ingovernança dá show.

Esta fala com mentira,
que do sério a mim não tira,
desta horrível presidente,
preciso ter muita fé
para que mantenha em pé
a vontade de ir à frente.

Bem afunda meu Brasil
E o povo está num barril
De pólvora a explodir.
É Dilma a mãe da inflação
E seu governo ladrão
Devia daqui partir.

Dom Pedro no dia sete,
Num gesto que se repete,
Proclamou a independência.
Há muito que este país
Passou a ser infeliz
Com Dilma na presidência.

Quanto mais a presidente
Mostra ser incompetente,
Mais luta pelo poder,
Desgraça a nação inteira,
Que segue na sua esteira,
Sem mesmo sobreviver.

Nosso país tem futuro,
Será, sem Dilma, seguro,
Pois haverá governança,
Enquanto a turba do assalto
Viver do roubo bem alto
Não há qualquer esperança.

Dilma e Lula que tristeza,
Afundaram com certeza
O meu Brasil tão querido,
Seus amigos saqueadores
São da pátria traidores
Tirando-lhes sonho e vida.

É Lula um agitador,
Tisna a sua presidência,
Parece mais “batedor”
Do que ter sido “excelência”.

Lula perde as estribeiras
Sente ser lançado às beiras
Por verdades reveladas,
Sendo quase analfabeto
Fez das palestras projeto
Com que recebe boladas.

Quanta verdade escondida
Quanta mentira vertida
Neste mundo tresloucado,
Quando se fala em PT
Tudo que sempre se vê
É o patrimônio roubado.

Este assalto permanente
De um partido indiferente
Ao que é público e privado,
Tornando seu o dinheiro,
Ganho pelo brasileiro,
Tem que ser bem apenado.

Ives Gandra insiste no termo canalha. São vários os sextetos que expõem essa categoria instalada em Brasília:

A canalha de Brasília
Que o fruto do roubo empilha,
Assaltou de todo lado
Nunca tanta podridão
Do Governo em seu porão
Foi ao povo desventrado.

O poder sempre me enerva,
É sempre a mesma caterva
Que o mantém com suas tralhas,
Os poucos de bons princípios
Desabam nos precipícios
Derrotados por canalhas.

Quanto mais vejo a canalha,
Que o Brasil tanto atrapalha,
Empoleirada em Brasília,
Eu continuo a gritar,
Com outros, para levar
O país a boa trilha.

As vezes tenho vontade.
Pois parece-me verdade
Dizer o que o povo espalha,
O poder vive do achaque,
Que ganha maior destaque,
Quanto mais se faz canalha.

O saque da canalhada,
Que jamais teve parada
Liquidou o meu Brasil,
Muitos estão na cadeia,
Outros tecem sua teia
Na busca de um bom ardil.

Em Curitiba falei,
Aborrecido com lei
Escrita pelo Supremo.
São bandidos, são canalhas
Os governantes que as tralhas
Põem no povo em peso extremo.

Sobre o Fisco e o STF:

Um difícil parecer
Eu principio a escrever
Sobre o Fisco sem moral.
Tais horríveis publicanos
Ao mundo só causam danos,
Pois dedicados ao mal.

“Longa manus”, o Supremo
Transforma seu ato extremo
Esteira do Executivo,
Se o Governo faz apelo
Nunca decide, em seu zelo,
De ser um mero adesivo.

Não poucas vezes o jurista poeta está a apontar a podridão governamental instaurada, a mentira deslavada, o inchaço da máquina pública e a corrupção à solta, endêmica, mas que teve aceleração progressiva a partir de 2003:

Todo o excesso tributário
Tem sempre um destinatário
Sustentar corrupção
E quem quer se aboletar
Sem precisar trabalhar
Nos cabides da nação.

A podridão cada dia
Tira do povo a alegria
Quanto mais é revelada.
O retrato faz-se mórbido
Pois este governo sórdido
Finge não saber de nada.

Da algibeira sempre tira
O governo uma mentira
Para o seu povo enganar.
Do roubo nada sabia,
Apesar de cada dia,
O roubo solto deixar.

Cada dia um novo saque
Merece em jornais destaque
Deste Governo malandro,
O mar de lama é tamanho,
Que não me parece estranho,
Nele descer de escafandro.

Quando vejo meu país,
Triste, abatido e infeliz
E os governantes felizes
Dá vontade de gritar
E toda a lama esfregar
Na ponta de seus narizes.

São a mentira e a promessa
Para a qual jamais há pressa,
As armas dos governantes.
Nada fazendo de novo,
Sempre sufocam o povo
Muito mais que meliantes.

Todos amigos do rei
São mais de cem mil, eu sei,
Convidados sem concurso.
Obama tem quatro mil.
É que no pobre Brasil
O roubo está sempre em curso.

Ter poder pelo poder
Mesmo sem o merecer,
É próprio do governante.
Mandar tem suas delícias,
No peculato as premissas,
O que o torna delirante.

Quanto mais podre o poder
Mais busca se defender,
Negando o mal praticado.
Ataca os acusadores
Os tornando “mal feitores”,
Pelo crime demonstrado.

Faz-se o governo malandro
E nem mesmo de escafandro
Se desce ao mar de sujeira,
Precisamos nos livrar
Desta podridão sem par
Cortando-lhe pela beira.

República e monarquia
Se comparo dia a dia,
A República falhou.
O Brasil em sobressalto
Tem a moral no asfalto,
Onde a lama é que dá show.

E em nostálgica esperança:

Apesar da incompetência
De um governo cuja essência
Foi o roubo sem limites,
Eu creio no meu Brasil
Que sob um céu cor de anil
Ao futuro faz convites.

Para o leitor de meu blog, diria que essa coleção de sextetos, a acentuar o desalento do jurista Ives Gandra, tem, como belo contraponto, a família. Evidencia nesse segmento o caráter impoluto do Homem, a dimensionar ainda mais, todas as críticas aos desvarios dos últimos desastrados governos.

My eldest brother, the prominent Brazilian jurist Ives Gandra, is also a poet with a significant number of poetry books published. The last one, Meu Diário em Sextetos (My Diary in Sestets), comprises 365 poems in sestet form, one for each day of 2015. It may be divided into three sections: family/religion, physical decline and the Brazilian political crisis. In the last one, he touches the weak spots and, without constraints, denounces the corruption, incompetence, ignorance and cynicism of the current government. I selected for this week’s post some of such verses that fulminate against political chicanery.

 

 

 

 

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