Exemplos Dignificantes
O essencial na vida não é convencer ninguém,
nem talvez isso seja possível;
o que é preciso é que eles sejam nossos amigos;
para tal, seremos nós amigos deles;
que forças hão-de trabalhar o mundo,
se pusermos de lado a amizade?
Agostinho da Silva
(Sete Cartas a um Jovem Filósofo)
Farta literatura, que remonta à Grécia antiga, aos textos bíblicos e a tantos outros ligados à morte, jamais deixou de causar perplexidade. A inexorabilidade do fim receberia interpretações as mais diversas nos vários campos do conhecimento: literatura, poesia, música, artes, religião e ciências. Mors certa, hora incerta é fato inconteste e a grande salvaguarda do homem para que continue a viver “descontraído”. Soubéssemos precisamente o instante do acontecido nossas existências seriam rigorosamente diferentes.
Três amigos queridos partiram. No dia 1º de Janeiro, Gilberto Mendes (1922), que nos deixou serenamente nos braços de sua dedicada esposa Eliane. Escrevi post a respeito do compositor (vide “Gilberto Mendes – In Memoriam” – 09/01/16), um dos maiores músicos brasileiros de música clássica ou de concerto em toda sua história. Brevemente escreverei outro post sobre Gilberto Mendes, pois a revista Glosas, de Portugal, dedicou o núcleo temático de seu último número a essa personalidade singular e amigo extremo.
Do pranteado amigo Roberto Penteado (1934) necessitaria indicar alguns de seus múltiplos talentos. Engenheiro químico, trabalhou durante mais de 33 anos nas célebres Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo que, por muitas décadas, foi uma das mais importantes do país, um verdadeiro império. Roberto exerceria a função de diretor de várias unidades, como sabonetes, pastifício, celulose, biscoitos… Estou a me lembrar de que, já no final dos anos 1960, Roberto desenvolvera biscoito integral à base de fibras, enaltecendo vivamente suas propriedades, hoje consagradas. Pioneiro. Percorreu pela empresa e técnicos da Embrapa quase todo o Brasil. Dirigiria ainda em Curaçao uma fábrica de café solúvel. Em sociedade com firma japonesa, desenvolveu projeto de pesca em alto mar. Um dos homens mais criativos que conheci, muito adiante de seu tempo!
Amante da natureza, com ele conversávamos sobre uma de nossas paixões, o canto dos pássaros brasileiros, pois também tinha um enorme repertório guardado em sua mente. Contudo, foi mais longe, pois conhecia a fauna aquática pátria e identificava com presteza nossas árvores, nomeando-as e evidenciando suas propriedades. Fotógrafo amador, revelava as fotos sempre em branco e preto no mini laboratório improvisado em sua casa. Adorava cutelaria, tendo uma coleção de facas de todo o planeta e com arte fazia cabos para algumas. Amava jazz e, por seu intermédio, passei a apreciar a criatividade de Oscar Peterson, Thelonius Monk, Art Tatum, Erroll Garner, Fats Weller, Count Basie e tantos outros.
Sua esposa, Júlia, é dileta amiga de Regina desde a infância na então aprazível Campinas, tendo estudado piano durante anos com minha sogra, a ilustre e saudosa professora Olga Normanha. Várias vezes o casal e filhos passaram a festa de fim de ano no apartamento de meus pais, quando o congraçamento se dava. Amizade sólida.
Nunca me esqueço de seus relatos da adolescência e um, particularmente, causou-me impacto, pois o pesquisador vocacionado mantinha, no quintal de sua casa em Campinas, serpentes peçonhentas, soltando-as periodicamente para observar suas reações a anteceder o bote certeiro. A uma pergunta sobre o perigo, respondeu-me calmamente que a cobra jamais dá o bote maior do que a extensão de seu corpo. Jogava ao chão um velho chapéu e assistia a reação fulminante do réptil. A lição serviu-me, pois durante mais de dez anos (1970-80), em minhas viagens ao Vale do Paraíba aos sábados para pesquisar arte sacra popular dos séculos passados, não poucas vezes meu saudoso amigo Carlindo Pavan e eu nos deparamos com ofídios venenosos. A imediata visão do comprimento dos répteis trazia-me certezas. Enfim, Roberto era um estudioso. Suas respostas às questões formuladas vinham sempre acompanhadas da explicação científica. Após longa enfermidade, sob os cuidados da carinhosa esposa Júlia, de seus dois filhos, Gustavo e Juliana e dos netos, Roberto Penteado também nos deixou no último dia 22.
O terceiro a partir foi Walter Maria Flesch (1928), nosso vizinho desde 1971. Desenlace no dia 25. Consideremos que vizinho não escolhemos, ele acontece quase sempre pelo acaso. Razões múltiplas impulsionam determinadas pessoas a encontrar um lugar para o prolongamento da existência em novo lar. Já morávamos em nossa casa desde 1965 e o entendimento com a família Flesch, desde o primeiro dia até o falecimento do patriarca Walter, sempre esteve sob a aura da pura amizade.
Natural de Blumenau, Santa Catarina, conheceu Eneida Landsmann Jungers durante o curso de odontologia na Universidade de São Paulo. Casaram e tiveram quatro talentosos filhos, Fernando (engenheiro), Maria Cláudia (jornalista), Maria Elisa (professora) e Maria Helena (médica) e onze netos em plenas realizações. Assistimos mutuamente ao crescimento de nossos filhos e as realizações que advieram em suas trajetórias eram motivos de júbilo confesso de parte a parte. Walter e Eneida, casal de dentistas, impecáveis na educação de seus filhos, viveram amorosamente a expansão familiar.
Naqueles primeiros tempos, apenas casas existiam em nossos quarteirões. Hoje são elas raridades. Portões baixos, ausência de grades nas janelas e portas. Outra realidade. Por vezes Flesch e eu jogávamos pingue-pongue em casa do vizinho da frente, o sempre lembrado seu Chico, prática essa realizada a poucos metros do portão sempre aberto que dava para a rua! E essa diversão se dava à noite! Outros tempos. Pairava a descontração, a violência era algo raríssimo. Presenciamos o crescimento desmesurado de nossa cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Espigões se ergueram e personagens surgiram já sem laços com essa tradição que se esvaíra, pois a maioria não se enraíza, permanecendo no anonimato.
Tendo adquirido terreno em condomínio em Ibiúna, levamos certo dia nosso amigo para visitá-lo. Fizemos piquenique e a foto registra a descontração. Creio que foi em 1975. Não tendo vocação para casa de campo ou praia, vendi anos após o referido terreno.
Lembro-me de episódio que nos marcou muito. Nos anos 1970, Flesch e eu fomos convidados a visitar um loteamento no Mato Grosso do Sul. Saímos do aeroporto de Congonhas e faríamos escalas em Bauru e Três Lagoas. O avião de dois motores turboélice, ao sobrevoar Bauru, teve de abortar a descida e regressar a São Paulo, pois detectaram um problema que só poderia ser solucionado na capital. Após algumas horas reiniciamos a viagem com aterrissagem em Bauru e continuação do voo até Três Lagoas. Lá chegando, já a nossa espera estava piloto de pequena aeronave monomotor. Mostrava-se ansiosíssimo, pois com o atraso e já no final da tarde o avião teria de partir imediatamente, já que não dispunha de instrumental para voo noturno. Chegamos com certa tensão nas fronteiras da escuridão. Dormimos numa tosca construção de alvenaria e permanentemente o telhado era irrigado pelas águas de um afluente do rio Sucuruí, devido ao calor sufocante. No dia seguinte, num jipe, percorremos o empreendimento e vimos emas, pássaros tantos e até uma imensa jiboia que, assustada, mostrou-se bem ágil na fuga. Às refeições, pescado fluvial, carne de caça e ingredientes mais. Regressamos à tarde. Ficou como lembrança, nesse breve convívio, o espírito curioso de Flesch, que queria tudo saber, assim como sua proverbial tranquilidade e senso de fino humor. Ao longo das décadas, não poucas vezes lembramos com prazer essa breve, mas inesquecível, “aventura”.
Longe de serem diários nossos contatos, quando se realizavam jamais deixaram de ter o dom do congraçamento. Nossos olhares traduziam o prazer do encontro. Sabíamos separados por um muro, mas entendíamos que, se necessário fosse, o atendimento mútuo seria imediato. Jamais houve uma rusga sequer entre nós. Particularmente, meu contato com Flesch dava-se sob vários aspectos. Adorava música – pianista amador – e esse fato fez com que nossos estudos pianísticos, os de Regina e os meus, fosse qual fosse o repertório, jamais provocassem uma reclamação sequer. Logicamente, à noite estudava com o pedal abafador acionado para minimizar sonoridades.
Exatamente dez anos menos jovens do que Regina e eu, o casal sempre mostrou-se ativo, discreto e cordial. Aos domingos, Flesch, sem camisa, mesmo em dias mais frios, cuidava de seu jardim com desvelo. Domingo é dia de futebol e conversávamos sobre o esporte bretão, ele palmeirense fervoroso e eu então torcedor de um time que existiu no passado, Portuguesa.
Sinto ter perdido três referências que me eram caras. A amizade é uma dádiva preciosa e, não por outro motivo, Amigo na acepção escreve-se com A maiúsculo em Portugal. Gilberto, Roberto e Walter permanecem em nossos corações, indelevelmente.
Last January I lost three dear friends: Gilberto Mendes, Roberto Penteado and Walter Maria Flesch. Friendship is a precious gift. Writing this post recalling their full, meaningful lives and the fond moments we have shared together is a way to keep their memories alive. Though the pain has simply to be endured, they will live on through such recollections.
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