Idalete Giga Interpreta Pintura Cósmica de Luca Vitali

Na terra das estrelas,
não há brilho menor.
P’ra que ser melhor?
Viva a luz da vida,
multiplique-se, divida:
viva a vida.
Sendo o senhor, só Amor.
Seja, plante que o sol,
garante.
Sofra a safra, seja
amante!
Luca Vitali
(Amo-te-me)

O post de 26 de Dezembro (“Mais um Ano se Esvai”) suscitou, por parte da dileta amiga Idalete Giga, várias considerações. Chamou-me a atenção a leitura que a ilustre especialista portuguesa em Canto Gregoriano realiza da tela Níquel, do saudoso amigo e notável artista plástico Luca Vitali. Antes de inserir a interpretação de Idalete, precisaria circunstâncias que me levaram, em duas gratas oportunidades, a ouvir a palavra “guardião”, termo que adquire transcendência a partir do instante do acontecido, momento único a ser retido e a implicar responsabilidade.

Ser guardião não é ter a posse de um bem, posse esta que, segundo o ilustre jurista alemão Rudolf von Ihering (1818-1892), é a aparência da propriedade. Ser guardião apreende condições ético-morais. Compete a ele guardar com o maior zelo o que lhe foi confiado.

Estou a me lembrar que em 1980 apresentei, em quatro recitais no MASP, a integral para piano de Claude Debussy. Ao ler noticiário nos jornais, Gerard Killick, empresário na área de turismo, ligou-me a dizer que tinha uma surpresa para mim. Desconhecia o senhor, mas compareci ao seu escritório. Após amenidades, disse-me que sua mãe, a francesa  Ada Killick (1898-1978), fora a última professora de piano de Chouchou Debussy (1905-1919), única filha do grande compositor, morta precocemente vítima de difteria. Com carinho Ada guardara as três últimas cartas de Chouchou escritas após a morte do pai, desobrigando-a das aulas. Cartas muito bem redigidas, que revelavam o talento singular de Chouchou. Gerard abre uma gaveta e entrega-me um rolo de papelão bem manuseado, a conter as três cartas e respectivos envelopes. Comovido, disse-me que doravante seria eu o guardião dessas sensíveis missivas. Alguns anos depois, conversando sobre as cartas em questão com o saudoso e ilustre musicólogo francês François Lesure Diretor do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale em Paris e maior especialista em Debussy na segunda metade do século XX, mostrei minha intenção de doá-las ao Centre de Documentation Claude Debussy, instalado no mesmo prédio, à Rue Louvois, 2. Um ano após, concretizei a doação. As cartas foram publicadas no apêndice de meu livro “O Som Pianístico de Claude Debussy” (São Paulo: Novas Metas, 1982) e, bem tardiamente, nos “Cahiers Debussy” (Paris: Centre de Documentation Claude Debussy, nº 31 / 2007).

Luca Vitali sempre soube que Níquel era meu quadro preferido da Série Cósmica, constituída de sete acrílicos sobre tela. Poucos dias antes de sua morte pintou o oitavo da série, Outono Cósmico, e dedicou-o ao compositor e pensador francês François Servenière. Fui o portador do grande tubo a conter a tela, entregando-o ao músico francês. Após a morte de Luca, seus filhos organizaram uma exposição onde estariam expostas telas e desenhos do pintor para vendas informais. No dia da inauguração, um aguaceiro derrubou árvores diante da casa onde se realizaria a exposição, na rua Surubim, no Brooklin, e a mostra foi adiada sine die. Um dos filhos de Luca, o bom músico improvisador Rodrigo, também sabia de meu interesse pela tela. Em meados de 2015, Rodrigo liga-me, a dizer que traria Níquel à minha casa. Emocionei-me quando Rodrigo afirmou que ele e o irmão Alexandre decidiram que eu seria o guardião da grande tela de seu pai (90,0 x 140,0). A pintura doravante, até o fim de meus dias, ficará sob minha guarda. Coloquei-a na parede que corresponde ao lance da escada. Não há como não contemplá-la e admirá-la várias vezes ao dia.

Voltemos à querida Idalete Giga. Após a leitura do mencionado post, a amiga pormenoriza-se na tela de Luca e sua interpretação sensível e onírica é tão expressiva que resolvi partilhá-la com os amigos neste ainda início de 2016. Idalete acompanha as mutações da cor. Entende os níveis, vê e sente beleza no todo e o resultado não só é expressivo, como unificador. Eis sua mensagem a descrever Níquel:

“Foi muito oportuno e também uma homenagem ao querido e saudoso Luca Vitali ter inserido no seu último post a sua pintura Níquel, da Série Cósmica. É uma das que mais me impressionam. Ele utilizou e combinou cores para simbolizar (na minha humilde opinião) tudo o que se relaciona de forma harmoniosa com a LUZ versus Trevas. Olhando a pintura, no fundo, à esquerda, aparece o esplendor do laranja, que simboliza a autoconfiança, o conhecimento prático, a prodigalidade, a coragem, a genialidade e a vitalidade. Mistura de forma sábia o laranja com o dourado. Este simboliza a iluminação espiritual. Na esfera maior, o azul e o violeta estão também quase fundidos. O azul simboliza o espírito da verdade, categoria mais elevada da inteligência. É a cor da contemplação, serenidade, santidade, reflexão, harmonia. A cor violeta é a cor do Mestre Espiritual, simboliza a perenidade, a nobreza, o espírito artístico, o misticismo. A esfera menor (satélite da esfera maior) aparece-nos em primeiro plano, mostrando o esplendor da cor prateada em sintonia com a cor azul. A cor prateada simboliza o fio de ligação à inteligência cósmica. Ilumina o caminho. É a pura contemplação….”.

A interpretação de Idalete calou-me fundo, pois diariamente a tela diz-me algo. A pintura de Luca Vitali, quando penetra no universo cósmico e abstrato, é de riqueza absoluta. Em nossos encontros semanais para os almoços às terças-feiras no Natural da Terra, em minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, sempre falava com fervor do Cosmos. Sob outra égide, estou a me lembrar de que, certo dia, Luca, Marisa, sua dedicada companheira de tantos anos, e eu fomos à uma exposição de pintura contemporânea. Confuso ao ver tantas tendências, indaguei-lhe “O que é realmente bom nessa mostra?”. Luca, com aquela maneira tranquila de dizer as coisas com sentido, respondeu-me: “De longe percebo o talento. A arte abstrata nunca poderia ser mistificação, e aqui há muitas”. O prêmio Nobel de literatura Mario Vargas Lhosa não mais frequenta mostras de arte contemporânea, mercê desses desvios na arte ( “La Civilizatión del Espectáculo”).

Ao olhar Níquel todos os dias, verifico a diversidade do gestual, o esmero com o acabamento, a inclinação de Luca sempre voltada à sinceridade e ao respeito íntegro relacionado à sua arte. Idalete apreendeu a essência essencial de Níquel, apesar de ter visto a pintura através da ilustração. Revela Idalete uma profunda sensibilidade e sua interpretação enriqueceu meu universo visual que terá, doravante, sempre um novo olhar, uma nova leitura…

After seeing my dear friend and late Luca Vitali’s painting “Níquel” in one of my posts, Idalete Giga ─ also a friend, teacher and choral conductor living in Portugal ─ gave me her own interpretation of Luca’s work, which grabbed her attention through the use of colors. Revealing great sensibility, her particular view enriched and deepened my own reading of the painting. In this post I transcribe Idalete’s message, so as to share with readers her meaningful relationship with “Níquel”.