Comentários abrangentes a partir de uma epígrafe

A natureza e o canto dos pássaros,
são minhas paixões, meus refúgios.

Só os pássaros são grandes artistas,
os verdadeiros autores de minhas obras.

Olivier Messiaen (1908-1992)

O post publicado no último dia 20 suscitou manifestações competentes. Leitores entenderam os esforços da equipe da Revista Glosas em manter, já há alguns anos, padrão ascensional. Não é fácil o prolongamento de uma revista especializada, mormente quando a equipe evita publicidades que podem envolver comprometimento. A busca de uma pretendida excelência, almejo real, implica sacrifícios, empenho e despojamento. Ao dedicar posts à Revista Glosas, faço-o na certeza de que temos um exemplo que poderia bem ser seguido em nossas terras. Fui editor chefe da Revista Música da Universidade de São Paulo (1990-2007) e sei das dificuldades na manutenção de um padrão de qualidade, apesar das pressões existentes voltadas às concessões acadêmicas, mais explicitamente ao denominado carreirismo, pois publicar é necessário e tantos são aqueles que buscam um item a mais no currículo movidos pela ascensão docente. Quando isso ocorre, padrões de excelência despencam.

As mensagens, majoritariamente curtas, louvaram a escolha das matérias de Glosas (nº 13), as justas homenagens a Gilberto Mendes, Madalena de Sá e Costa e aos quatro músicos da família Napoleão. Destes, Arthur viveria muitos anos no Brasil.

O compositor e pensador francês François Servenière uma vez mais faz-se presente através de rica mensagem, transmitida após a publicação do post sobre a Revista Glosas. Separei alguns segmentos, a partir de suas reflexões sobre a epígrafe de Fernando Corrêa de Oliveira inserida no post em questão: “A música é uma actividade do intelecto. Não foi inventada pelo Homem, foi criada com o Homem”. Imaginava que a curta sentença poderia gerar polêmica, mercê de conceituação forte, incondicional. Gerou.

“Raramente discordo de seus blogs, mas desta vez dissocio-me da epígrafe de Corrêa de Oliveira. A música não foi criada pelo homem e as duas frases do enunciado deixaram-me em dúvidas. Resultado de introspecções, tenho que a música esteja ligada ao DNA, este, produto das nuvens estelares. O tema tem sido pouco estudado pelas observações de telescópios os mais potentes. Minhas intuições estavam a me dizer que a música era produto do Universo e que a encontramos em todos os lugares onde há vida. Dizer que ‘a música foi criada com o Homem’ supõe também orgulho antropomórfico, pois os animais sabem usá-la de maneira engenhosa. Em nossa primavera, e durante todo o ano em seu país, os concertos dos vários animais nas florestas, parques e jardins deixam-nos sem voz, graças à prática do contraponto e da harmonia com a facilidade exemplar dos virtuoses. Quantas vezes, durante passeios campestres, não me sentei para ouvir essas maravilhas não escritas e com duração apropriada, respirações necessárias, discursos incompreensíveis para nós, mas que para eles, mais do que um jogo, revestem-se em verdadeira comunicação, alegria nessa observação do som repercutido e no divertimento, resultado do eco. Diria mais, uma faculdade de utilizar a técnica do revezamento orquestral que lhes é instintiva e que se torna natural ao humano nas discussões, nos cantos e nas partituras”. Observaria que são tantos os compositores que ficaram extasiados com o canto dos pássaros. Para citar apenas alguns: Clément Janequin (1485-1558), Le chant des oiseaux; Jean-Philippe Rameau (1683-1764), Le rappel des oiseaux; Robert Schumann (1810-1856), O pássaro profeta; Franz Liszt (1811-1886), São Francisco de Assis a falar aos pássaros; Igor Stravinsky (1882-1971), O pássaro de fogo; Maurice Ravel (1875-1937), L’oiseau triste; Olivier Messiaen (1908-1992), Catalogue des oiseaux. Tenho notado, ao longo das décadas, que sempre que inicio meus estudos pianísticos os canários começam a cantar. Invariavelmente. Simbiose? Osmose? Continua Servenière: “Bach não iria me contradizer quando eu sinto a base do Cantus Firmus e do Coral nesses cantos fascinantes dos pássaros. Não posso, pois, aceitar que ‘a música foi criada com o Homem’. Para mim ela precede o humano e muito antecipadamente. Sim, todas as formas documentadas e complexas de nossas bibliotecas e repertórios são fruto inequívoco do espírito do homem, sua realização. Não obstante, entendo arrogância o homem sentir-se o único inventor, sabendo-se que a complexidade da cosmologia nos precede e que nós não fazemos outra coisa que reproduzir, reconstruir e transmitir essas mensagens universais inclusas no DNA através da vida, pelas nossas observações matemáticas originárias do céu. Compreendamos que a inventiva não é o único produto de nosso espírito. Acredito firmemente que a humanidade terá surpresas no dia em que tiver a possibilidade de conhecer outras civilizações extraterrestres. Assim como a Terra não é o centro do universo, a humanidade, por consequência, não deve ser a única representante da inteligência. Trata-se de questão estatística  que deve ter uma solução certa: não somos os únicos no universo e nossa música não é, pois, ‘criação do homem’ C.Q.F.D. (aquilo que seria necessário demonstrar).

Sobre seu grande amigo Gilberto Mendes, homenageado na revista Glosas, diria que é a cruel aventura da vida que nos faz sentir a ausência dos que nos são caros. Quando Gilberto diz que Darmstadt era lugar planificado para conferências, ‘panelinha bem urdida’ entre os compositores, e que nada aprendeu nessas sessões, lembro-me bem do que diziam de Pierre Boulez em seu discurso, quando de sua admissão no Collège de France: ‘seis minutos de música, seis horas de discurso’. Para o material publicado sobre Gilberto Mendes, diria que conheço pouco suas obras, assim como criações brasileiras e portuguesas, exceções ao que encontro no YouTube e as que você interpreta ao piano. Do que eu conheço, posso afirmar que se trata de um compositor sedutor, mestre de um estilo aberto, feliz, aéreo, esclarecido, que se diverte com a música, a transparecer alegria de viver. Qual a razão de, sendo francês, sentir-me tão próximo de suas mensagens traduzidas através das composições? Tenho certeza de que pelo fato de termos o mesmo prisma. A música é uma linguagem complexa, mas como transmitir prazer a quem ouve se nós não tivermos a chama ao praticá-la, compondo. Para nós dois, compositores, e para você, evidentemente, ‘não há teoria: basta escutar. O prazer é a regra’. É o que penso”. (Tradução: JEM).

O pensamento do compositor François Servenière não foi exposto por outro motivo a não ser, primordialmente, sua inclinação clara e inequívoca voltada às manifestações da natureza e à contemplação do universo. Fino observador, passou para o papel pautado obras que traduzem essa admiração: Vertige des saisons, Promenade sur la voie Lactée, Tribulations d’un écureuil Lambda, Études Cosmiques entre outras.

Não fossem as frases do professor Fernando Corrêa de Oliveira inseridas no artigo de Glosas (13º), de autoria de Carla Nogueira e Helena Santana, não teríamos as reflexões instigantes de François Servenière. Basta uma frase para a mente viajar.

The post addressing issue nº 13 of the classical music magazine “Glosas” received much feedback, all praising the quality of the articles published. I transcribe here excerpts from the message with comments by the French composer François Servenière, in particular his thought-provoking analysis of the post’s epigraph, a quotation from Fernando Corrêa de Oliveira: “Music is an intellectual activity. It was not invented by man, it was created with man”.