Heitor Rosa e seus contos hilariantes

Então
os sinos irromperam
de alegria
no teu místico voo.
Idalete Giga
(“O Canto da Palavra”)

Heitor Rosa, um sábio, antes mesmo de ter enveredado pela literatura. Professor emérito da Faculdade de Medicina da Universidade de Goiás, ocupou cargos acadêmicos relevantes. Renomado hepatologista brasileiro e autor de inúmeros artigos significativos para publicações científicas de sua área, Heitor Rosa não se restringiu unicamente à medicina. O imaginário, após os horários de uma atividade profissional que prossegue exitosa, levou-o a viagens as mais extraordinárias pela história das práticas médicas, tratamento e posologia. Estudou profundamente ervas e poções utilizadas, mormente  a partir da Idade Média. A sabedoria de Heitor Rosa expande-se de maneira elástica, chegando às práticas mais hodiernas da medicina.

Considere-se que parte considerável desse precioso acervo, que corrobora o conhecimento acumulado durante séculos, encontra-se empoeirada em quantidade enorme de compêndios sobre procedimentos médicos  variados, que permanecem quase sem visitação nas Bibliotecas espalhadas pelo mundo. O desconhecimento e a não frequência a essas raridades tornam inviáveis, na atualidade, compreendê-los em sua abrangência graças à diminuta divulgação. Antolha-se-me que, em  quase todas as áreas, o descaso pelo passado oblitera irremediavelmente a análise precisa do presente.

Conheci Heitor Rosa em Goiânia. Quando na cidade para recitais ou curso estudo em seu apartamento, no piano diariamente frequentado por sua esposa, a professora da Escola de Música e de Artes Cênicas da UFG, Consuelo Quireze Rosa. Conversas com o prezado amigo são riquíssimas nas tantas temáticas abordadas, pois não temos limites nesses diálogos prazerosos. Escritor dos bons, ofereceu-me há anos dois livros referenciais, “Memórias de um Cirurgião Barbeiro” (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2006) e “Julgamento em Notre Dame” (São Paulo, Livronovo, 2009). O primeiro, já lido com todo interesse, espero resenhá-lo ainda neste ano. Nesta última viagem a Goiânia, para participar do VIº Simpósio de Musicologia promovido pela EMAC-UFG, presenteou-me com livro bem anterior, “O Enigma da 5ª Sinfonia” (São Paulo, Ecrituras, 2000).

O debruçamento de Heitor Rosa sobre práticas cirúrgicas, processos de manipulação de medicamentos e instrumental utilizado enriqueceu seu imaginário. Seria possível também entender que as ideias concernentes às narrativas tenham estimulado a pesquisa. Há sempre mistérios a envolver a criação.

Em “O Enigma da 5ª Sinfonia” Rosa apresenta contos, por vezes hilariantes e plenos de humor. Essa alternância conduz o leitor à vontade de continuar a penetrar nas histórias que se sucedem. Frise-se, o médico consagrado está presente em muitos dos contos, não fisicamente, mas a  transmitir seu conhecimento da história da medicina, aplicando-o aos vários personagens, alguns grandes figuras do passado, em situações relativas aos possíveis males que porventura tenham sofrido.

Pleno de humor, o conto “Fiat Lux”, a envolver um suposto cálculo na bexiga de Sir Isaac Newton (1642-1727). Jocoso o fantasioso diálogo com o médico instado a consultá-lo em 1726, mercê de hipotética incontinência urinária do notável cientista, matemático, físico, filósofo, astrônomo, teólogo e alquimista. Insiro parte dessa conversa:

“- Sire, estou certo de que tendes cálculos.
- Isso todo mundo sabe, eu vivo de cálculos. Não vieste de tão longe para dizer-me isso.
- Quero dizer na bexiga…
- E é grave?
- Com mais observação posso calcular a gravidade.
- Não sejais pretensioso. Quem calcula a gravidade sou eu e já fiz isso há vinte anos atrás.
- Está bem. Vou fazer uma fórmula para os vossos cálculos e ficareis sem dores.
- Não. Vós não entendestes nada. As fórmulas resultantes dos meus cálculos já foram publicadas. Sabeis realmente quem sou?
- Acho que quem não entendeu fostes vós, senhor. Estou querendo segredar-vos que tendes uma pedra…
- Se viestes aqui pensando que eu tenho o segredo da pedra filosofal, estais perdendo o vosso tempo, amigo, e sendo impertinente.
- Sois obsessivo, senhor. Desde que aqui cheguei não me deixais concluir o pensamento,  pois há vários minutos tento dizer que tendes uma pedra na bexiga e quero formular um remédio para vossas dores.
- Por que não dissestes claramente? Por vezes eu não sei distinguir as leis da minha natureza daquelas da natureza universal e posso confundir as palavras”.

No desenrolar do conto em apreço, Heitor Rosa demonstra todo um conhecimento das práticas  e medicações àquela época empregadas.

Não menos hilariante o conto que empresta título ao livro, “O Enigma da 5ª Sinfonia”. Partindo de um pequeno tratado sobre percussão clínica de 1761, de autoria do médico austríaco Leopold Auenbrugger, Rosa percorre algumas décadas e “está” em Viena a narrar o diálogo de  médicos a respeito do precioso tratado e o diagnóstico que poderia advir em doenças do tórax e do abdome. Enfim, ei-los diante de Ludwig van  Beethoven (1770-1827), que estaria a sofrer de problemas no abdome. Novamente transcrevo segmento do conto em que o suposto Dr. Rosen (!!!) demonstra o cuidado que levaria ao diagnóstico:

“Minha mão esquerda estava espalmada sobre o abdome, enquanto que um dedo da mão direita martelava firme e ritmicamente sobre um dos dedos espalmados. Os sons iam aparecendo e mudando de timbre à medida que novas áreas iam sendo percutidas. O som maciço nos flancos denunciava uma provável presença de hidropisia, enquanto que do centro da barriga ecoavam os sons de um tambor, acusando a presença de gases nos intestinos. Percuti novamente a área e fui subitamente interrompido por uma ordem imperiosa e angustiada.

- Pare! disse Beethoven. Pare, não quero mais sentir este som.
- Perdão, mestre, não tive a intenção de provocar-lhe dor.
- Eu não estou sentindo dores… Ou melhor, minha dor é outra. Eu disse que não quero mais sentir os meus sons.
- O senhor quer dizer que ouviu os sons?
- Não, para ouvir os meus sons eu não preciso escutá-los.
- Não entendi. Mas por que devo interromper o exame? Não compreendo…
- O senhor não sabe e nem deve compreender. Oh! Deus, estas batidas, estes sons batendo à minha porta. É assim que o destino bate à porta?
- Bem, eu não sei… mas não tinha a intenção de incomodá-lo.
- Não é o senhor que me incomoda, é o destino.
- Mas o que tem o destino a ver com meu exame?
Pareceu-me que ele delirava, tal a reação incontrolável que minhas pancadinhas provocaram no mestre.
- Basta, doutor Rosen O senhor não sabe o que está dizendo e nem vou explicar-lhe.
Beethoven vestiu a sua camisa e sem uma palavra dirigiu-se ao piano na sala contígua, sentou-se e decididamente tocou: Sol, Sol, Sol, Mi bemol”.

O narrador, Dr.Rosen, demonstra seus conhecimentos ao transcrever a receita adequada: “Prescrevi-lhe uma poção de ratânia, para tomar às colheradas, e gotas de ipecacuanha. Valeram-me os medicamentos que trouxera de Paris. A medicina francesa enriquecera-se bastante com o conhecimento médico das plantas exóticas com propriedades medicinais, trazidas das mais remotas regiões da terra; essas novas aquisições e suas formulações já podiam ser estudadas na Pharmacopée Royale Galenique et Chymique“. As inúmeras viagens ao Exterior, inclusive estágios prolongados em centros médicos renomados, foram essenciais a Heitor Rosa em seus aprofundamentos sobre a história da medicina.

O conto se desenrola e, para a primeira audição da “Quinta Sinfonia”, o Dr. Rosen foi convidado. Ficaria extasiado ao ouvir o “resultado” das suas batidas percussivas no abdome do compositor e… revindicaria a coautoria temática.

Gargalhei durante a leitura do conto “Regresso ou regressão?”, no qual um comerciante com total idiossincrasia por voos enfim consulta um psicanalista. Todo o transcorrer da narrativa em que o consultado Saul Divino é tratado pelo médico Godofredo, as regressões através do hipnotismo que o levam primeiramente aos tempos de Santos Dumont e, numa segunda sessão, aos de Leonardo Da Vinci, são simplesmente de imensa imaginação.

O auto,  “O achatamento do monte Paschual”, peça em um ato, apresenta com a comicidade necessária e com o conhecimento histórico prévio de Heitor Rosa, a navegação de Pedro Álvares Cabral, desvio da rota e muitas surpresas. Entre os personagens principais: “Pedr’Alvarez Cabral, Capitão Pero Escolar, Pedro Vaz Caminha, Luis Camoens, Frei Henrique Coimbra e o Sururgião”.

“Houve um tempo em que não havia juízes em Israel e cada um fazia o que lhe desse na cabeça ou o que julgasse melhor. Mas depois houve um tempo em que havia juízes. Uma pessoa se tornava juiz por um dos três caminhos: por escolha do povo, por autoaclamação ou por desígnio divino”. Heitor Rosa, em “Juízes Finais”, conduz um longo julgamento de juízes em tempos bíblicos, perante o Sumo Sacerdote Jabeslão e o grupo de anciãos, a resultar na absolvição de todos. Induziria o leitor a traçar paralelismos…

Os dois últimos contos, curtos, mas engraçadíssimos, levam-nos a conhecer Creusa “… que entrou em nossa vida por acaso, ou melhor, só porque precisávamos de alguém que arrumasse a casa”. Creusa, de 120 quilos, estabanada, destruiria, na arrumação e na ausência do “patrão”, dois manuscritos do século X como papel velho, retiraria todos os livros da biblioteca, recolocando-os ao seu critério, passaria bom bril em todos os CDs a fim de limpá-los e… cantava, ou melhor, “gargarejava”.

A nossa vida cultural está às avessas. São os holofotes que “determinam a qualidade” e não o valor intrínseco de um autor. Em todas as áreas culturais. São divulgados ad nauseam autores que, na realidade, têm a “auréola” da mediocridade. Conhece o Brasil Heitor Rosa? Editoras mais representativas no Brasil publicam seus livros? Nada a fazer nesse universo mediático nivelado rigorosamente por baixo.

This post comments on the book “O Enigma da 5a. Sinfonia” (The Enigma of the 5th Symphony), written by the gastroenterologist Heitor Rosa. A serious researcher of medical practices from the past, his stories with fictitious and historical characters blended together completely captivate readers with conciseness, humor and imagination, at the same time giving a lesson on medicine history. It’s time to shed light on this talented and highly underestimated writer whose books deserve better promotion and marketing.