Reflexões que atravessaram os séculos

Verifica-se que o bom procedimento influi na perfeita execução;
dela sendo inseparável.
Tudo deve concorrer para que a perfeição resulte,
pois o menor vício destrói a interpretação.
Jean-Philippe Rameau (1752)

Questionaram-me sobre o ato de observar apregoado nos posts de Agosto, dedicados a Rameau. Entendi que seria enriquecedor traduzir para os leitores segmentos de texto basilar do compositor e teórico sobre a observação como fator essencial para deduções a que chegou. Anteriormente mencionara a obra “Réflexions de Monsieur Rameau sur la manière de former la voix et d’apprendre la musique et sur nos facultés en géneral pour tous les arts d’exercice”, publicada no “Mercure de France” em 1752. Essas “Reflexões…” farão parte de uma das sessões que apresentarei em Goiânia, no curso a ser ministrado na Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, entre os dias 26 e 29 de Setembro. Serão quatro palestras-recitais, em que interpretarei a integral para teclado. Os temas das palestras abordarão sucintamente temas fulcrais relativos a Rameau: “Compositor e Teórico”; “Cravo e Piano – debate estiolado, o instrumento piano e as possibilidades sonoras frente à obra ramista para teclado”; “Querelle des Bouffons – um dos prenúncios da Revolução Francesa”; “Rameau – Debussy, Rameau e seu legado”. No dia 28 darei recital Rameau-Debussy no Centro Cultural da UFG.

A dimensão das “Réflexions…” impede-me de inseri-las por inteiro nos dois posts a que me proponho. Busquei os itens em que o compositor focaliza essencialmente decorrências da observação como meio essencial à teorização que leva à prática. Espírito cartesiano, Rameau tece deduções a partir da arguta observação, que será tipificada e adequada à determinada prática musical que pretende defender, visando à mais correta interpretação musical. “Réflexions…” encerra em seu conteúdo uma inédita apreensão pedagógica e Rameau não despreza, por vezes, as mais simples reações humanas para chegar a conclusões precisas, não se utilizando do condicional. A História dar-lhe-ia razão quanto ao seu antológico ensaio. Frise-se que muitas reflexões permanecem hodiernas tanto pelo aspecto de práticas corretas, como também, hélas, por equívocos que permanecem na pedagogia atual e denunciados pelo compositor em 1752!!!

Para a tradução utilizei-me do texto original francês, sem atualização, publicado naquele ano. Palavras como mesure e nature, como exemplos, têm de ser contextualizadas. Mesure tem várias aplicações.  No caso, seria o tempo, sequência regular da duração dos sons, Há também os termos anima ou andamento, que apreendem igualmente a abrangência do significado. Camille Saint-Saëns (1835-1921) define a mesure ramista como mouvement, no prefácio da edição Durand das  “Pièces de Clavecin”, ao comentar as palavras hardiment, sans altérer la mesure (com brio, sem alterar o movimento, pois), várias vezes inseridas na peça  L’Enharmonique, de 1728. Segundo Philippe Beaussant, um dos biógrafos de Rameau, nature “é um dos conceitos fundamentais da visão clássica do mundo. Quando Rameau fala da natureza, emprega sempre a palavra em seu senso cartesiano”. Em determinados exemplos contidos nas “Réflexions…”, entenda-se também a palavra natureza como predisposição física de um músico. O ensaio foi publicado no ano do início da “Querelle des Bouffons”, contenda estética que se estenderia de 1752 a 1754 entre os partidários da música italiana e os admiradores da música francesa. O termo natureza seria profusamente empregado com significados diferenciados pelas duas correntes.

Houve a necessidade de se dar liberdade à tradução das “Réflexions…”, pois Rameau exercita tantas vezes frases muito longas numa exposição. Importou-me manter o mais possível a coerência e a intenção nos segmentos traduzidos. O leitor entenderá que a divisão em dois posts mostrou-se necessária. Não obstante, esse texto, com precípuo desiderato prático, tem interesse não apenas na área musical e na sua multiaplicação, pois dimensiona a extraordinária capacidade dedutiva de Jean-Philippe Rameau.

O compositor inicia o texto: “Em todos os exercícios que têm relação com a Música, seja ela destinada ao Canto, à Dança ou aos Instrumentos, o sentimento do tempo (movimento) e da harmonia é igualmente igual para todos; esse tempo é comum nos animais, pois seus movimentos são sempre iguais, o que significa, a tempo”. Rameau coloca uma questão: “Não vemos nós muitas vezes determinadas pessoas executarem perfeitamente a música compassadamente, mas não sabendo manter essa regularidade ao dançar?” Encontra a possível resposta na distração.

Rameau considera que “aqueles que ouvem música desde a infância e continuamente são mais sensíveis”. Segue o princípio contido no “Discours de la Méthode”, de René Descartes, do simples ao mais complexo, conceito, aliás, que seria repetido inúmeras vezes em outras reflexões a partir da observação.

De interesse a constatação que depreende de uma escuta simples, diria. Rameau comenta, ao ouvir um jovem que não podia encontrar o uníssono ou a oitava de um som e parecia mesmo ter a voz bem desajustada: “Fi-lo emitir um som à sua escolha, pedi em seguida para que gritasse mais forte e rapidamente, sem pensar, pois ele não sabia o significado de mais alto ou mais baixo, e o jovem emite no instante a Quinta do primeiro som; de onde concluo que ele nascera Músico como qualquer outro, e que poderia chegar a sê-lo, se bem orientado. Dois ou três meses após conseguia cantar com justeza e sucessivamente qualquer intervalo. Esse jovem, sem dúvida, sempre ocupado com algumas ideias, jamais prestara atenção não somente às Músicas que o faziam ouvir algumas vezes, nem aos cantos das Igrejas, tampouco aos cantos das ruas ou dos sinos, que certamente ouvia todos os dias. Explica o fato em si que quase todos os iniciantes em música entoem facilmente os menores graus naturais para a voz, como dó, ré, mi, fá, etc., pois estão familiarizados à força de escutá-los; mas, se ouvem sem escutá-los, esses intervalos lhes serão estranhos como quaisquer outras coisas das quais eles não tenham noção: cabe ao Mestre encontrar a causa dessa aparente surdez”.

Mencionei no post ( III ) dedicado a Rameau uma observação, constante das “Réflexions…”, em que ele rememora lembrança retida concernente a um idoso que, aos 70 anos, cantava as fundamentais de uma canção conhecida, o que o levou a deduzir que é natural ao homem essa noção das notas mais graves, conceito maior para suas teorias envolvendo a Harmonia.

Rameau considera a flexibilidade como uma das faculdades da Música, crendo que muitos se julgam incapazes por má formação até física. Apesar de considerar rara essa situação, acredita não ser senão uma desculpa à má orientação recebida.

Na “Méchanique des doigts”, de 1724, Rameau compara o exercício dos dedos ao se tocar cravo com a caminhada e a corrida. Volta a fazê-lo nas “Réflexions…” em termos mais gerais:

“Porque caminhamos? Porque corremos também? Os que se exercitam menos correm pressionados, e isso basta como prova: é que desde a infância nós nos acostumamos a colocar um pé diante do outro sem pressa, sem nos causar incômodo, sem forçar, pois nossos movimentos formaram-se insensivelmente e ganharam velocidade à medida que aumentavam nossas forças e, consequentemente, a agilidade natural na corrida. É verdade que todos correm com diferentes velocidades. Poderemos atribuir como causa as disposições mais ou menos felizes; mas, sem nos pormenorizarmos nas diferenças de temperamento e conformações, que é uma das causas principais, verificamos que o aprimoramento deixa-se ao tempo. Se pudéssemos dedicar-nos a todos os exercícios desde a mais tenra infância, as disposições seriam proporcionais como na corrida, pois não há movimento que não sejamos capazes de realizar, desde que nos habituemos desde cedo”. Rameau adianta que não é à natureza que se deve atribuir a má disposição, mas sim à orientação: “Mais os hábitos se tornam inveterados, mais difícil se torna debelá-los, impossível até, pois não se trata de retornar ao caminho simples e natural que foi descartado, pois nossos mestres, geralmente menos versados nos segredos da natureza e mais naqueles relativos às artes, não buscam preferencialmente as causas”. Causa e efeito estão constantemente nas reflexões ramistas concernentes a cada aluno e Rameau insiste no fato de que a busca incessante para debelar defeitos está no entendimento da causa, a fim de que ” não mais aconteçam” (má execução).

Atualíssimas palavras vêm a seguir. O compositor explica claramente que os mestres, “unicamente ocupados com os efeitos, julgam nossa capacidade de execução somente através desses efeitos, chegando tardiamente a constatar um vício difícil de ser corrigido, e não retomando novamente o caminho traçado. Adia-se: entende-se melhor continuar com os defeitos, imputando-os à natureza, e é dessa maneira que o estudante se consola e o mestre se desculpa”. Diria que, ainda hoje, o imediatismo e a necessidade de resultados, que favoreçam mais determinados mestres e menos o aluno, podem provocar sérias lacunas no desenvolvimento técnico-interpretativo. Sob outro aspecto, o professor “concurseiro”, que visa primordialmente a preparar alunos para concursos de instrumento, não estaria a negligenciar a formação homogênea do músico, preocupado que está em se valorizar através de vitórias, tantas delas de Pirro?

Rameau a seguir tece reflexões sobre atributos que devem existir para a harmoniosa evolução do jovem músico, “os felizes hábitos que denominamos disposições e que consistem em conservar a leveza natural nos movimentos, perdida caso haja preocupações como a ansiedade e as interferências”. O compositor entende que diversos motivos podem prejudicar a execução, como “excesso de interatividade, a pressa em se chegar rapidamente aos objetivos e, nesses quesitos, o mestre é muitas vezes responsável pelo fato de não saber controlar a empolgação de um iniciante. Tantas vezes a prática sem sucesso não é compreendida na origem e a causa seria que a natureza não foi poupada”. Compreenda-se que nessa visão rumo a uma pedagogia eficaz, Rameau volta-se à natureza como aptidão.

É de se admirar o senso profundo de observação contido nas “Réflexions…”, tema a que Rameau se dedica após seus tratados teóricos, aprofundando-se na problemática visando ao  bom desempenho interpretativo, que durante mais de dois séculos a seguir, foi permanentemente estudado na pedagogia musical e comentado por professores e músicos. Escreve sobre o canto e o instrumento e indica vícios e defeitos que têm de ser sanados, como a voz trêmula contraindo a glote, caretas que evidenciam contração, as várias posições incorretas dos dedos sobre o cravo, que podem indicar igualmente execução contraída, má orientação, tudo demonstrando não estar o executante preparado, a merecer estudar para que não persistam esses equívocos que levam ao mau desempenho.

Rameau aborda igualmente o gesto na arte da dança e, como mencionei nos blogs de Agosto a ele dedicados, a observação ramista estende-se igualmente a outras áreas. Aconselha-se junto aos especialistas. Fá-lo a citar exemplos no que tange às armas e ao adestramento, “como explicaram-me os mais famosos mestres dessas Artes”.

No próximo post tecerei ainda comentários sobre essas “Réflexions…”, um dos textos mais esclarecedores sobre a área da pedagogia musical, indicando acertos quanto à sua aplicação e presságios relativos a vícios, qualidades e equívocos que persistem após mais de dois séculos e meio do memorável texto do grande teórico e compositor.

After four posts dedicated to J.-P.Rameau in August, this week I will focus on his work as music theorist, that to this day persists as one of the most influential contribuitions to music pedagogy.