Um duo exemplar

Não nos tornamos poetas a partir de uma manhã primaveril,
mas sim pela exaltação do poema.
André Malraux

Quando do curso que ofereci em Goiânia sobre a obra para teclado de Jean-Philippe Rameau, em Setembro, tive o grato prazer de estar com a pianista Ana Flávia Frazão, professora da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Ofereceu-me DVD e CD em que apresenta, com o violinista alemão Laurent Albrecht Breuninger, obras importantes do repertório específico: Heitor Villa-Lobos, “Segunda Sonata-Fantasia”; Edino Krieger, “Sonâncias”; Henrique de Curitiba, “Sonata 87″ e  Camille Saint-Saëns, “Sonata op. 75 nº 1″.

Não poucas vezes neste espaço ressaltei a prevalência que existe de gravações realizadas em centros importantes do hemisfério norte. Há toda uma tradição voltada à arte de gravar, que vai desde a grande especialização dos engenheiros de som às salas escolhidas sob o aspecto acústico, à presença sempre de instrumentos – no caso o piano – de primeiríssima qualidade e o profissionalismo inerente a todos os envolvidos no processo. Essas também são as razões que me levam a gravar na Europa desde 1995. Não há parâmetro comparativo com o que temos no Brasil, apesar de esforços e da maior boa vontade dos envolvidos nesse mister. Sob outro aspecto, se oportunidade houver para o pianista brasileiro (no caso) estabelecer vínculos com  excepcionais instrumentistas de países onde a música erudita tem tradição e constância qualitativa, o aprimoramento se tornará mais acelerado devido, inclusive, ao ambiente e à salutar concorrência com maior número de músicos relevantes.

De há muito admiro a arte pianística voltada à música de câmara de Ana Flávia Frazão. Tive o prazer de participar do júri, juntamente com as ilustres professoras Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005) e Glacy Antunes de Oliveira, quando do ingresso de Ana Flávia na carreira docente junto à EMAC-UFG.  Já se apresentava como uma camerista de altíssima qualidade. Estudou em Goiânia com Ivana Carneiro e, na EMAC, na classe da professora Consuelo Quireze, tendo igualmente recebido a colaboração do pianista Luiz Medalha. Ana Flávia Frazão aperfeiçoou-se na Alemanha, de 1994 a 2002, como aluna da Escola Superior de Música de Karlsruhe. Na categoria Piano-Música de Câmara obteve a nota máxima no Konzertexamen.  Premiada em concursos internacionais, Ana Flávia já se apresentou no Japão, Estados Unidos, Europa, Argentina e em vários centros brasileiros.

Quanto ao violinista Laurent Albrecht Breuninger, trata-se um de instrumentista notável. Após estudos com Josef Rissin na Escola Superior de Música de Karlsruhe, aperfeiçoou-se com mestres absolutos: Henryk Szering, Ruggiero Ricci, Aron Rosand e Ivry Gitlis. Em 1997 obteve o segundo prêmio num dos mais importantes concursos do planeta, o Rainha Elizabeth, na Bélgica. Colecionou vários primeiros prêmios em outros significativos concursos na Europa e no Canadá.

Tive o grato prazer de ouvir e ver o DVD com as obras que também constam do CD mencionado. Encantou-me em todos os sentidos. Formam um duo rigorosamente entrosado e exibem, durante o transcurso do programa, todas as qualidades excelsas que encontramos nos mais destacados duos internacionais. Lirismo, virtuosismo abrangente sem jamais exceder os limites, fraseado impecável, senso profundo da agógica, da acentuação e da dinâmica, compreensão formal e estilística e, fundamental, a naturalidade sem qualquer artifício são algumas das muitas virtudes do duo.

Apraz-me considerar que Ana Flávia soube transmitir a Laurent Albrecht o gosto pela camerística brasileira. Independentemente da integral para violino e piano de Villa-Lobos, por eles gravada em 2012, constam do CD em apreço outras obras de autores pátrios significativos. Considere-se que pouco a pouco a qualitativa música de câmara brasileira penetra nos repertórios internacionais. Menciono a mesma integral de Villa-Lobos, anteriormente gravada pelo excelente violinista belga Paul Klinck com outro laureado no Concurso Rainha Elizabeth ao piano, Claude Coppens (Anvers, 1996). Em 1995 gravei em Bruxelas, para o selo PKP, a integral de Henrique Oswald para violino e piano com Paul Klinck.

A gravação de Ana Flávia e de Laurent Albrecht apreende todos os quesitos encontráveis na magnífica “Sonata-Fantasia nº 2″,  de Villa-Lobos. Uma plasticidade no tratamento da frase musical é explícita. Sob o aspecto de entrosamento, a impecabilidade mostra-se evidente entre os dois instrumentistas e corrobora a afirmação que ouvi certo dia, do renomado compositor mexicano Mario Lavista (1943- ), de que não é necessário usar um sombrero e enorme bigode para afirmar-se nascido no México. A compreensão de Laurent Albrecht da anima brasileira é integral.

Ninguém melhor do que o próprio compositor Edino Krieger (1928-  ) para opinar sobre a gravação de sua obra “Sonâncias II”: “É um privilégio para um compositor ter uma obra executada e perpetuada em CD por instrumentistas excepcionais como o violinista Laurent Albrecht Breuninger e a pianista Ana Flávia Frazão. Eles aliam à perfeição virtuosística da técnica uma compreensão musical que valoriza o conteúdo expressivo da obra”. “Sonâncias II”, composta em 1981, explora inúmeras capacidades do violino e do piano. Krieger entende-a como “uma grande cadência virtuosística em tempo livre, sem barras de compasso”. Há, em determinados trechos apontados na partitura, a intervenção livre do pianista. Sob outra égide, “Sonâncias” desenvolve-se nos limites extremos da dinâmica, mormente nos limites dos ffff dos clusters ou em momentos introspectivos nas baixas intensidades.

De Henrique de Curitiba (1934-2008) o duo apresenta a “Sonata 87″, dividida em três andamentos; “Allegro – de batuque”, “Lento e cantabile – de toada”, “Vivace – de xaxado”. A “Sonata 87″ (composta em 1987) é  estabelecida na pulsação, e a obra evolui ricamente a expor – os títulos assim demonstram -, a diversificação rítmica. Maiúscula interpretação da significativa “Sonata 87″. A versão para violino e piano deriva de composição anterior, a “Suíte Brasileira”, vertida para vários conjuntos camerísticos. Henrique de Curitiba é um desses nossos compositores que estariam a merecer divulgação maior. É triste verificar que alguns dos mais destacados criadores brasileiros são praticamente esquecidos post mortem.

A magnífica “Sonata op. 75, nº 1 em ré menor”, de Camille Saint-Saëns (1835-1921), finaliza o CD. Um dos maiores compositores do período, extraordinário pianista, primeiro verdadeiro globetrotter como músico, percorreu o mundo a tocar, inclusive no Brasil, onde se apresentou em duo pianístico com Henrique Oswald (1852-1931) aos 5 de Julho de 1899 no Salão Steinway em São Paulo. De sua vastíssima obra, destaca-se também a camerística. Compositor que percorreu parte da longa era romântica, tem inclinação ao virtuosismo não desprovido de intensa expressividade. A belíssima “Sonata op. 75 nº 1″ (1886) traduz esse envolvimento. Uma das melhores obras do período, tem todos os ingredientes para ser muitíssimo mais divulgada. Contudo, mercê dos repertórios repetitivos que se prolongam através das décadas, o público geralmente tem de ouvir a Sonata para violino e piano de Cesar Franck. Extraordinária obra, mas não única. A interpretação do duo Breuninger-Frazão da criação de Saint-Saëns é simplesmente empolgante, da mais absoluta qualidade.  O leitor poderá ouvir, ao acessar o link, o “elétrico” Allegro molto da Sonata op. 75 nº 1 de Camille-Saint-Saëns. A gravação foi realizada no interior da Escola Superior de Música de Karlsruhe, na Alemanha. Desnecessário ratificar sua qualidade.

Clique aqui para ouvir o Allegro Molto da Sonata op.75 no.1, de Camille Saint Saëns, com Laurent A. Breuninger ao violino e Ana Flávia Frazão ao piano. Gravação realizada na Alemanha, divulgada no CD “Sonâncias”.

Na longa conversa que mantive com Ana Flávia no mês de Setembro em Goiânia, após meu recital na cidade, mostrou-se ela com intenção de gravar a “Sonata” para violino e piano de Henrique Oswald, conhecedora da gravação que Paul Klinck e eu realizamos. Encorajei-a nesse sentido e vou propor-lhe uma excelente obra do período, a “Sonata Saudade”, de Óscar da Silva (1870-1958), compositor português de mérito e pianista virtuose, para compor, quem sabe, um belíssimo CD, pois há certa identidade entre as duas composições.

Aos 78 anos não mais tenho necessidade de causar melindres em afirmações. Contudo, acredito que Ana Flávia Frazão se apresenta hoje como a nossa mais representativa pianista dedicada à música de câmara, comparável, dúvidas não tenho, aos nomes mais significativos em termos mundiais. Quanto a Laurent Albrecht Breuninger, simplesmente um violinista da mais alta qualidade. Um Mestre.

My comments on the CD of the violin-piano duo formed by Laurent Albrecht (violin) and Ana Flávia Frazão (piano) with works by Camille Saint-Saëns, Edino Krieger, Henrique Curitiba and Villa-Lobos. I found it an extraordinary achievement in terms of artistry and technical qualities. The remarkable German violinist Laurent Albrecht Breuninger is a second prize winner in 1997 of the Queen Elizabeth Competition held in Brussels, and pianist Ana Flávia Frazão, first prize at the chamber ensemble competition in Kyoto in 2001, is in my view the best chamber music pianist in Brazil today.